quinta-feira, 19 de julho de 2012

Hoje já ninguém escreve cartas...



“Ninguém é mais solitário do que aquele que nunca recebeu uma carta.” Elias Canetti
Uma caligrafia bonita, esculpida, morosa.
Como Cargaleiro a cinzelar mármore, Manuel Beja debruça-se com cuidados de artesão sobre a folha de papel branco e desenha as capitulares com vagar e minúcia de estilete-BIC. Uma caligrafia ornamentada, quase barroca, que enche de orgulho o antigo ferroviário, reclinado na velha cadeira de mogno entronizada no terreiro de luz do Abril-em-flor beirão. “Toda a gente me gaba a letra”, aventa com um sorriso empinado nos óculos garrafais que tentam iludir as cataratas do octogenário escrevinhador. “Nos Escalos, antigamente, a minha mãe era das poucas que sabia ler e escrever e era assim que ganhava mais uns trocados para alimentar sete filhos. Lia e escrevia as cartas para o povo. Acho que lhe herdei o jeito”.
Imagino a letrada camponesa no Largo dos Escalos como os escribas que montavam banca e tinteiro no Largo do Pelourinho de Lisboa no final do século XVI para escreverem cartas galantes a soldo; ou Florentino Ariza, personagem de “Amor em Tempos de Cólera” de Garcia Marquez, dedilhando a sua angústia em cartas de amor mercenárias forjadas para outros amantes se amanharem nos montes de Vénus; ou os ardis do amor por escrito que uma freira do séc. XIX ministrava, ensinando a simular o pingo de uma lágrima a pontuar uma carta de saudade.
As cartas de amor são como retratos amarelecidos com a usura do tempo. Já não se escrevem cartas de amor como antigamente, aliás já ninguém escreve “Meu amorzinho, meu Bébé querido” como Fernando Pessoa escrevia a Ofélia.
Na era do “fast-love” dos piropos via SMS, dos “chat´s” e da internet, o romantismo lacrado num envelope perfumado é um romantismo extinto: “Quem me dera no tempo em que escrevia/ Sem dar por isso/ Cartas de amor/ Ridículas / A verdade é que hoje/ As minhas memórias/ D`essas cartas de amor /É que são ridículas”.
Ti Manel contorna o sobrescrito com a língua, para acicatar a goma que sela as palavras esculpidas: “É para o meu irmão que está em França. Hoje em dia, já ninguém escreve cartas por causa do telefone. É tudo mais fácil. É pena, já nem o carteiro vem à nossa porta e uma carta escrita tem outra graça.”
Desde que Ti Sebastião, o antigo carteiro do “giro” de Castelo Novo se reformou, as quintas semeadas no sopé da Gardunha já não recebem com alegria o estardalhaço da motorizada zundape-alada deste Mercúrio rural, fintado a canzoada para entregar o correio, dois dedos de conversa e boa disposição: “Agora as caixas de correio estão concentradas em caminhos de acesso às quintas e já não se entrega a correspondência ao domicílio como antigamente. Muitas vezes os carteiros nem conhecem as pessoas. No meu tempo não era assim. Íamos a todas as quintas, mesmo as mais remotas. Conhecia toda a gente e ao longo dos anos fui ficando amigo de muitos deles. Vi gente nascer, crescer, casar, partir e fui vendo esse mundo rural morrer devagarinho”, conta Ti Sebastião enquanto prepara a pauta para o ensaio da Banda de São Vicente da Beira, da qual é maestro.
Empunha a batuta com as mãos que durante anos cavaram o fundo da sacola de carteiro, garimpando cartas que traziam as novas – boas e amargas -, a esperança e a angústia.
O mestre de música sabe que o homem que inaugurou a moderna indústria dos correios com a invenção do selo postal em 1837 era também maestro?
Sir Rowland Hill, administrador do Correio inglês, venceu a casmurrice da Câmara dos Lordes e impôs uma reforma postal que consagrava um sistema de padrões tarifários que permitia aos Correios Ingleses cobrar antecipadamente pelos serviços prestados, bastando colar um comprovativo do pagamento sobre a encomenda.
Nascia assim a lambidela no selo postal, gesto universalmente repetido da Gronelândia ao Burkina-Fasso, que permitiu aos serviços de correios de todo o mundo crescerem e democratizar esse sistema de comunicação tão antigo como a própria escrita e cujos registos mais ancestrais remontam a 2.400 AC no Egipto, quando os sigmanacis – velozes mensageiros – percorriam grandes distâncias a pé, de cavalo ou a camelo, carregando os papiros e correspondência com que os faraós mandatados pelo deus Sol, subjugavam o seus domínios à beira-Nilo.
Os comensais que uma vez por mês se agremiam na casa do Ti Sebastião na Soalheira para uma patuscada são a reencarnação desses sigmanacis e dos peregrinos, escudeiros, almocreves, correios-mores, correios a cavalo da mala-posta e de todos os homens que ao longo da história da humanidade carregaram o poder da palavra escrita para reis, senhores feudais, corpo eclesiástico e derradeiramente … para o povo: “É uma almoçarada de carteiros, alguns já reformados, outros no activo. Sempre serve para nos mantermos em contacto, trocarmos histórias ou até ensinarmos alguns segredos da profissão aos mais novos.”
A banda afina a marcha, o sisudo oboé abafa a fanfarronice do cornetim, o mesmo que serve de símbolo ao cavaleiro do logótipo dos CTT, que sopra com estribilho as novas de um mundo em permanente mudança, um mundo em que já ninguém escreve ao Ti Manel: “Até a reforma é depositada no banco. Só recebo publicidade do Jumbo e recibos da água e da luz. Hoje em dia, a única coisa que leio é o Jornal do Fundão para ver os resultados dos Escalos nos distritais e saber quem morreu por lá”.
Todas as quintas-feiras, Manuel Beja desenferruja o reumático que lhe atravanca o andar, no quilómetro e meio que separa a sua quinta da caixa postal junto à ordenha colectiva.
Todas as quintas-feiras, Ti Manel caminha até ao mundo exterior ao seu lameiro, que hoje lhe entra pela televisão e pelo telefone, com o coração acelerado pela secreta e irreprimível esperança de ter uma carta do seu irmão Carlos, emigrado em França.
A mesma esperança renovada e amarga que levava o velho coronel de Gabriel Garcia Marquez a desesperar todas as sextas-feiras a carta da pensão do seu filho morto na revolução, a carta de um tempo que já não volta, a carta que nunca chega: “Estou à espera de uma carta urgente – disse ele – é de avião.
O administrador procurou nos compartimentos classificados. Quando acabou de ler, repôs as cartas na letra correspondente, mas não disse nada. Sacudiu as palmas das mãos e dirigiu ao coronel um olhar significativo.
- Devia chegar hoje de certeza – disse o coronel.
O administrador encolheu os ombros.
- A única coisa que chega de certeza é a morte, coronel”.

retirado de: 
http://www.a23online.com/2011/08/12/carteiros-do-fim-do-mundo-ja-ninguem-escreve-ao-ti-manel/

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