sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Morreu Zé da Guiné, ícone da boémia e cultura dos anos 1980.


Morreu na sexta-feira Zé da Guiné, personalidade marcante da vida nocturna e cultural da Lisboa dos anos 1980. Sofria há mais de dez anos de uma doença degenerativa do foro neurológico, impeditiva de qualquer actividade. Morreu durante a noite, no Hospital de São José, em Lisboa.
Nos últimos anos, passava por dificuldades materiais, tendo-se avolumado as iniciativas públicas, promovidas por amigos artistas, cineastas, jornalistas ou músicos em seu auxílio e foi produzido o documentário Zé da Guiné – Crónica de Um Africano em Lisboa, da autoria de José Manuel S. Lopes, que reflectia a sua vida, desde a chegada a Lisboa, nos anos 1970, passando pela sua relevância na fervilhante actividade cultural e na vida boémia dos anos 1980.
O realizador lembra o amigo como alguém que "teve a particularidade de ter modificado os hábitos de Lisboa, tanto na forma de estar como de usufruir da cidade". "Foi um precursor e arrastou outras pessoas nesse movimento", diz ao PÚBLICO. "Não consigo encontrar outra pessoa como ele: inovador, de espírito aberto, aventureiro e, ao mesmo tempo, cuidadoso, amigo e óptimo em relações públicas." Durante 14 anos, continua, lutou contra a doença, esclerose lateral amiotrófica, a mesma que vitimou Zeca Afonso, "o que revela a sua grande capacidade de luta e resistência."
Como escreveu na altura da homenagem Miguel Esteves Cardoso numa crónica no PÚBLICO: "Zé da Guiné é um grande artista. Não foi só uma inspiração, um exemplo e um catalisador, embora também fosse essas coisas. Criou ambientes e criou mentalidades. Abriu caminhos e diversões. A noite de Lisboa era fechada, triste, mesquinha e clandestina antes do Zé e do Manuel Reis [Frágil/Lux], cada um à maneira dele. Contra todas as más vontades, burocracias, pessimismos e letargias, estes dois artistas públicos conseguiram abri-la, alegrá-la, engrandecê-la e mergulhá-la no presente."

Natural da Guiné-Bissau, onde nasceu a 4 de Janeiro de 1959, José Osaldo Barbosa teve uma passagem breve pela guerrilha na luta pela libertação. Chegou a Lisboa nos anos 70, depois do 25 de Abril.
No final dessa década, foi ele um dos primeiros a aventurar-se no território de prostitutas e de má fama que era então o Bairro Alto, abrindo o espaço Souk. Mais tarde, viria a embarcar no projecto Rock House (mais tarde, Juke Box), assumindo várias funções, entre elas a de porteiro, participando na emergência do Bairro Alto como o lugar por excelência de afirmação da Lisboa cultural dos anos 1980.
Era conhecido de todos, artistas, músicos, cineastas ou jornalistas. De alguma forma, era um símbolo de uma cidade que, depois do 25 de Abril, se queria abrir à modernidade e ao exterior. Não é por acaso que muitas das publicações de referência internacionais da época – como a revista inglesa The Face –, quando abordavam as dinâmicas culturais em ligação com as actividades nocturnas da época, o procuravam.
Uma das suas paixões era a moda, tendo sido uma personalidade inspiradora, assistindo à emergência da geração que consolidou a moda em Portugal através de iniciativas como as Manobras de Maio.
Mas o projecto onde se envolveu e que talvez mais marcas deixou foi as Noites Longas, ao largo do Conde Barão, em Santos, num palacete do século XVI, que mais tarde viria a albergar o B. Leza e que hoje se encontra desactivado. Ideia partilhada com Hernâni Miguel, viria a transformar-se numa das experiências mais cosmopolitas da época.

A meio dos anos 1980, era ali que a Lisboa artística se misturava, até de manhã, com a Lisboa castiça do Cais do Sodré e do mercado da Ribeira e com a Lisboa do roteiro das discotecas africanas. Depois dessa aventura, surgiram outras, como a abertura, já nos anos 1990, do Be Bop, no Bairro Alto, onde se ouvia jazz, a sua grande paixão. (Jornal Público – 01.11.2013)

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