domingo, 28 de dezembro de 2014

Um Big Brother ilustrado para a era Snowden.

Alguns livros são intemporais, outros são oportunos. Um livro que seja as duas coisas aos mesmo tempo é mais raro, mas depois das revelações de Edward Snowden, o ex-assalariado da CIA que mostrou ao mundo como o governo americano espia toda a gente – os seus próprios cidadãos, chefes de Estado, nações rivais e nações cordiais –, as vendas de 1984, de George Orwell, dispararam na Amazon.
Publicado em 1949, o clássico de Orwell é uma distopia sobre um Estado totalitário que controla tudo e todos – não só as acções, mas também os pensamentos e os desejos dos seus cidadãos. Para alguns, a realidade revelada por Snowden é orwelliana; para outros, Orwell mal podia imaginar o estado a que as coisas iriam chegar.
É isso que escreve o editor do The Guardian Alan Rusbridger, um dos jornalistas que teve acesso a Snowden e escreveu sobre as suas revelações em primeira mão, no prefácio de uma nova edição ilustrada de 1984, publicada pela inglesa Folio Society que, desde 1947, faz questão de fazer livros bonitos com grande literatura (Ulisses de Joyce, O Monte dos Vendavais e Shakespeare tiveram o mesmo tratamento visual).

A edição conta com ilustrações de Jonathan Burton. A capa é o rosto inquietante do Big Brother, olhando-nos onde quer que estejamos. (Jornal Público)

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Artista retrata a sociedade com ilustrações que estão a dar polémica. Veja porquê.

Chama-se Luis Quiles, é um artista espanhol, e sem medo utiliza a paixão pela arte para criticar a sociedade. No fundo, "desenha para denunciar".



Com nome artistítico de Gunsmithcat, Luis Quiles, marca a diferença pela forma como retrata a sociedade contemporânea nos seus trabalhos. Com sarcasmo, frieza e sem rodeios, Gunsmithcat, denuncia temas como aprostituição, a homofobia, a exploração, a fome, as drogas e as redes sociais.
Numa entrevista ao jornal italiano Il Fatto Quotidiano, o artista diz que "a tecnologia mudou a forma como comunicamos. Não quer isto dizer que seja pior do que no passado. É simplesmente diferente. Por um lado, com a Internet, é mais simples. Por outro, é também mais fácil de nos isolarmos da realidade".
Quanto às críticas, Luis Quiles diz que apesar de haver pessoas que agradeçam e que valorizem o trabalho que faz, e como o faz, há também "quem não concorde e que o escreva publicamente". Contudo, "é difícil silenciarem-me".

Para o futuro, o artista espanhol está a pensar recorrer ao crowdfunding (angariar fundos para o projecto através da Internet) para publicar um artbook com todo o seu trabalho. Até lá, vai continuar a "desenhar e denunciar". (DN – 16.Dez.2014)










sábado, 6 de dezembro de 2014

Tudo o que queremos na vida aborrece-nos na literatura.


O mexicano David Toscana escreveu um romance que é um delírio quixotesco. O Exército Iluminadonarra a empreitada delirante e impossível da reconquista do Texas aos gringos, a bordo de uma carroça.
O que mais impressiona em O Exército Iluminado, o romance do mexicano David Toscana (n. 1961), é o delírio quixotesco a que um professor de História e um grupo de cinco crianças com atraso mental se entregam. Partem da cidade de Monterrey numa carroça puxada por uma mula para reaver o território do Texas, perdido para os EUA numa guerra de há mais de um século. “Na minha infância ainda se viam os buracos das balas nos antigos edifícios coloniais de Monterrey, a cidade onde cresci”, lembra o autor em conversa com o Ípsilon. “Brincávamos muito imaginando uma guerra com os EUA, e que no fim conseguíamos recuperar as terras a Norte do rio Bravo. Venho de uma família em que se contavam muitas histórias dessa guerra, vinham de geração em geração. Este romance trouxe-me uma grande nostalgia da infância.”
A empreitada delirante em que este exército absurdo de crianças se vê envolvido é organizada por um seu professor, Ignacio Matus, antigo maratonista. Em 1924, durante os Jogos Olímpicos de Paris, e por não ter dinheiro para viajar para França, Matus corre pelas ruas de Monterrey a distância da maratona à mesma hora que a prova decorre em Paris. Com o tempo que faz, ficaria classificado, caso tivesse ido, em terceiro lugar. Desde essa altura começa a importunar por carta o atleta americano medalhado para que este lhe envie o troféu (acabará por recebê-lo 44 anos depois). Mais ou menos entre a alegoria e o delírio épico, Matus (a quem também chamam general, “o último dos heróis nacionais”) sonha com a busca do impossível, uma forma de redimir as crianças das suas limitações, mas também de se redimir a si próprio. “Hoje vi-me à cabeça de um exército de milhares de homens; íamos em direcção ao Texas, com as botas enlameadas, murmurando uma canção.” Essa alegoria leva também à rebeldia, e o gordo rapaz Comodoro anuncia aos colegas de escola na sala de aulas: “Meninas e cavalheiros, estamos perdidos, não temos outro remédio senão ir apanhar gringos.”
O fracasso e a melancolia são temas comuns aos anteriores romances de David Toscana, O Último Leitor e Santa Maria do Circo (ambos publicados pela Oficina do Livro). “A literatura deve falar do fracasso, da dor, da morte, de tudo o que não queremos que esteja presente na nossa vida. A literatura precisa de conflito para que no fim haja pelo menos a ambígua possibilidade de uma redenção”, diz Toscana. “Não gosto de romances policiais porque sei que o crime vai ser desvendado. Interessa-me mais a história de um detective fracassado, que entra em crise, que não consegue resolver o mistério, encontrar o culpado. Os meus romances terminam de uma maneira um pouco ambígua, mas as personagens já lograram qualquer coisa.” Em O Exército Iluminado, em que a derrota é uma constante, os perdedores são levados ao limite por um sonho, e de certa forma é isso que os redime.
 O poder da linguagem
A linguagem deste romance é clara e directa, cuidada, impondo um ritmo constante à acção, conseguindo alternar passado e presente, quase dissimulando as fronteiras entre os diálogos e as descrições, os pensamentos e as geografias. Ao leitor cabe ir juntando os pontos de vez em quando. Este domínio da escrita é uma das virtudes da obra de David Toscana, para quem “a linguagem é a literatura”. “Não uso a linguagem para contar alguma coisa, conto uma história para usar a linguagem. Como leitor interessa-me também sobretudo a linguagem. A história contada pode ser muito interessante, mas se a linguagem não me seduz, abandono-a”, diz. O seu uso obedece, nos romances de Toscana, à percepção estética que o autor tem da personagem e à que quer passar ao leitor, daí ter de ser tão eficiente. “A linguagem é o que dá mais trabalho ao escritor, e é o que a maioria dos leitores menos nota, poucos são os que sublinham os livros pela linguagem.”
Mais do que um modelo, o Dom Quixote de Cervantes é a inspiração dos romances de David Toscana. Isso era bem visível em O Último Leitor, que trata de um Quixote que lê e que conhece o mundo através dos livros. As aventuras imaginárias enchem também O Exército Iluminado, mas é sobretudo o seu heroísmo trágico, tão quixoteano, o ponto central. “O Dom Quixote fez-me como escritor”, confessa Toscana, “foi depois de o ler que decidi ser escritor. O Quixote é por vezes descuidado com a linguagem, por causa das repetições, mas muito cuidado quanto ao ritmo e às imagens, o que é uma forma criativa de usar a linguagem.”


Para além das influências de Cervantes, Toscana confessa-se fascinado pelas personagens um pouco loucas de Juan Carlos Onetti, pela falta de lógica, pela atmosfera opressora e sem saída dos seus contos. Mas também pelos romances do chileno José Donoso e pelas suas personagens desadaptadas, e pela capacidade de dizer muito em poucas palavras da escrita de Tchékhov. “Aprendo muito com eles”, diz, sublinhando porém que os escritores de quem mais se gosta “não são necessariamente os que mais nos influenciam.”

Mais do que a verosimilhança de uma história, é o poder de sedução dessa mesma história que interessa a David Toscana. Não exige – e isso é evidente neste seu romance em que um grupo de crianças parte para desafiar os “gringos” – que a história seja verosímil, que respeite a lógica. E dá o exemplo de A Metamorfose, de Kafka: “O que faz Kafka para que a história seja verosímil? Nada. Se tentasse que aquilo fosse verosímil, deitava tudo a perder. Imagine-se que recorria a explicações com o DNA e as mutações para explicar como Gregor Samsa se transforma num insecto. O que interessa é o que seduz.” (Jornal Público)

domingo, 30 de novembro de 2014

O dia em que o cante saltou do Alentejo para a eternidade.


Há 21 meses que trabalhavam na candidatura e ontem foi o dia de ouvir o "sim". Com lágrimas, nervosismo e louvores
"A minha senhora ligou-me logo a dizer que já tinham rebentado os foguetes", diz Carlos Paraíba, ensaiador do grupo coral da Casa do Povo de Serpa, ao telefone, de Paris, horas depois de saber que o cante alentejano já faz parte da lista do Património Cultural Imaterial da Humanidade. A mulher estava em Serpa, cidade que promoveu a candidatura do género musical. A confirmação chegou ontem, pouco passava das 10.00 (mais uma hora em França). À emoção do momento juntaram-se as lágrimas dos 22 homens que se apresentaram ao Comité Intergovernamental da UNESCO e cantaram Alentejo Alentejopara mais de 100 delegações internacionais. "Estava tudo muito comovido, nas era a chorar de alegria", explica.
Carlos Arruda, 28 anos, lançou a moda, na qualidade de ponto do grupo coral da Casa do Povo de Serpa. "Foi um misto de sentimentos", conta." Orgulho, alegria, sentido de responsabilidade, um pouco de nervosismo...". É um dos mais jovens elementos, e já canta desde os 13 anos, caso raro entre os cantadores.

Ele e a comitiva deveriam voltar a Portugal da mesma maneira que chegaram a Paris na segunda-feira: de autocarro. No entanto, já depois de terem recebido a confirmação da Unesco, a TAP ofereceu a passagem de regresso aos membros do grupo e responsáveis da candidatura. E a primeira atuação aconteceu em Orly antes de embarcar no Voo do Cante, nome dado à viagem. (Diário de Notícias)

domingo, 23 de novembro de 2014

Volta à História de Portugal com Fernando Rosas.


O século XX português, entre o Regicídio (1908) e o 25 de Abril de 1974, visto a partir da Rua do Arsenal, é o tema do episódio inaugural da série televisiva História a História, que este domingo começa a ser exibido na RTP Internacional. O autor é Fernando Rosas, que nesta sua volta a Portugal diz sentir-se bem mais confortável do que quando correu o país em campanhas políticas e eleitorais.
Uma camisa (verde, nesse dia) debaixo dos tradicionais suspensórios (que também vão variando de cor), o gesto largo e expressivo, a palavra fácil e clara de professor, o à-vontade bem conhecido de tantas presenças televisivas… É com esta imagem que, a partir deste domingo, o historiador Fernando Rosas (n. Lisboa, 1946) vai entrar nas nossas casas com a série História a História. Numa primeira fase, o conjunto de 13 episódios vai ser exibido, semanalmente, no horário nobre da RTP Internacional, e na RTP África (30 de Novembro); em Janeiro entrará também na grelha da RTP nacional.
“Em cada episódio vamos contar uma história a partir de um lugar, de uma actividade, de uma personagem ou de um conjunto delas”, explica Fernando Rosas na apresentação que faz ao PÚBLICO, no meio de mais um dia de filmagens, em Ílhavo, desta sua experiência nova no formato documental televisivo.
O primeiro episódio tem por título Rua do Arsenal, uma História Política do Século XX. Com base nesta rua da Baixa de Lisboa nascida da reconstrução pombalina, Fernando Rosas conta a história do século XX português, desde o Regicídio de 1908 até ao 25 de Abril de 1974, passando pela implantação da República, pelas revoltas, revoluções e episódios mais ou menos sangrentos das primeiras décadas do século, e também pela consolidação do Estado Novo e pelos discursos de Salazar na Sala do Risco do Arsenal. “É impressionante como uma simples rua foi palco de tantos acontecimentos, e tão marcantes, da nossa história contemporânea”, realça.
História a História resulta de um convite da RTP, a que o historiador “não podia dizer que não”. Elencou 13 temas, 13 histórias da História de Portugal, com a “preocupação de a aproximar do grande público”.
A meio da última semana, Fernando Rosas e a sua pequena equipa de sete pessoas – dirigida pelo jovem produtor (GardenFilms) e realizador Bruno Morais Cabral – percorriam numa autocaravana as margens da Ria de Aveiro a registar imagens e testemunhos sobre a pesca do bacalhau. O PÚBLICO acompanhou o segundo de dois dias de rodagem das imagens actuais que farão o nono episódio da série, Faina Maior, a pesca do bacalhau. Primeiro, no interior do arrastão “Santo André” (construído na Holanda, em 1948), que no antigo Forte da Barra (agora Jardim Oudinot) perpetua a memória dessa faina mítica como uma extensão do Museu Marítimo de Ílhavo; depois, já dentro do museu, frente ao aquário de bacalhaus – “um dos peixes mais estúpidos que há, por isso fácil de pescar”, comentava –, Fernando Rosas evoca, explica e desmonta o processo e o imaginário associado a esta faina que ocupa um lugar à parte na história do país. “Deixando de parte a questão de saber quem é que chegou primeiro à Terra Nova, a verdade é que Portugal estava lá já no século XVI, com os seus barcos de pesca”, diz o apresentador percorrendo o velho barco, agora “envernizado” a azul-e-branco para objecto de museu.
Na véspera, o cenário para esta viagem às memórias da faina tinha sido o belíssimo lugre “Santa Manuela”, no interior do museu de Ílhavo. “Havia uma mística ideológica criada pelo Estado Novo em volta da pesca do bacalhau, que incluía, por exemplo, um Bispo do Mar que benzia os barcos à partida para a Terra Nova” – explica-nos o historiador –, “e que era apresentada como a continuação da gesta dos Descobrimentos”. As razões que tornaram o “projecto do bacalhau" totalmente anacrónico ainda durante o governo de Salazar, e as mudanças que a liberalização das pescas, nos anos 60, e depois o 25 de Abril trouxeram ao sector são também elucidados pelo cicerone deHistória a História – que para este episódio teve como consultor Álvaro Garrido, director do Museu Marítimo de Ílhavo e um grande especialista do tema.
 Filmar com drones
Além de entrevistas e testemunhos, cada episódio da série é feito com filmes de arquivo, fotografias e outros documentos, além das imagens filmadas agora nos cenários relacionados com cada tema – com recurso, inclusive, adrones, como se poderá verificar nas vistas aéreas da Rua do Arsenal, no primeiro episódio. “Mesmo se falamos de História, o nosso desafio é produzir um conteúdo contemporâneo, dinâmico, que capte a atenção dos espectadores”, diz Bruno Morais Cabral. O documentarista formado na Escola de Teatro e Cinema de Lisboa e autor de Praxis (melhor curta-metragem do DocLisboa de 2011) assume, no entanto, que a presença de Fernando Rosas é o principal trunfo do programa.

É, de facto, notório o à-vontade com que o político e ex-deputado do Bloco de Esquerda enfrenta a câmara. O desafio maior, nas filmagens na Ria de Aveiro, era mesmo manter-se penteado perante o vento forte que soprava nessa manhã de sol. Recorrendo às tradicionais fichas de professor, que a anotadora Raquel Bagulho lhe ia passando sempre que necessário, Fernando Rosas assume a câmara de televisão como uma extensão da sua profissão. “Sou professor, gosto de comunicar”, diz. Essa facilidade faz lembrar a presença televisiva de um José Hermano Saraiva. Uma associação que Fernando Rosas aceita, de resto. “O Hermano Saraiva era um magnífico comunicador, um homem com uma telegenia invulgar”, diz, assumindo que visionou vários dos seus programas, e outros do género, para “aprender, e para perceber como é que se tem feito História na televisão”.  (Jornal Público)

domingo, 16 de novembro de 2014

Senhoras e senhores, apresentamo-vos o "padeiro dos livros".


Nove mil livros e 30 anos depois, Alberto Casiraghi, poeta, pintor, músico, construtor de violinos e impressor, tem a sua primeira exposição em Portugal. Chama-se "9000 Formas da Felicidade: as edições Pulcinoelefante".

Uma gravura baseada no famoso quadro de Goya, "Três de Maio de 1808 em Madrid", assinada por Luciano Ragozzino. Fotografias de Marylin Monroe coladas sobre uma mão de papel e uma fotografia também da atriz, provavelmente recortada de um jornal ou revista, com números pintados sobre o papel. Um poema de Rainer Maria Rilke, o poeta alemão, escrito em italiano. Três fotografias de Alda Merini (1931-2009), a escritora italiana que teve a admiração de artistas como Pasolini, Salvatore Quasimodo e Giorgio Manganelli, e foi vencedora em 2003 do Premio Librex Montale, que reconhece poetas italianos contemporâneos. É ela, aliás, que assina alguns dos livros expostos (mas já lá vamos).
Mais à frente, entra-se no chamado "Núcleo: Alberto em Portugal". Uma fotografia a preto e branco de Manuel Alegre, vestido de fato. E um desenho de um homem deitado com uma monumental letra "M" junto à sua cabeça, parecendo decapitá-lo, e que segundo o programa da exposição é do livro de Alberto Pimenta, o escritor português, feito e escrito por ele. Miguel Martins, Luís Manuel Gaspar, Manuel de Freitas. Outros nomes da poesia portuguesa contemporânea que aparecem destacados. O 91 da exposição é de Vasco Graça Moura, é de 2013, e tem uma dedicatória sua na capa que diz assim: "Na verdade, o poema é um ruído modelado de gente".
Chama-se "9000 Formas de Felicidade: as edições Pulcinoelefante", é dedicada a Alberto Casiraghi, poeta, pintor, músico, construtor de violinos e impressor, e inaugurou no final de outubro na Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa, onde fica até 31 de janeiro.
É a primeira exposição em Portugal dedicada a Alberto, que prefere, no entanto, ser conhecido como o "padeiro de livros", e o "único padeiro que trabalha durante o dia". Há uma boa razão para isto: desde 1992, tem feito, em média, mais de um livro por dia. Atualmente, são mais de nove mil.
Os livros "belos e simples" do mestre Alberto
Em 1982, depois de ter sido despedido da tipografia onde trabalhava, uma grande casa em Milão que imprimia jornais, Alberto Casiraghi decidiu construir a sua própria oficina, a que deu o nome de Pulcinoelefante. Fê-lo em casa, na cidade de Osnago, em Itália, onde nasceu. Fala-se muito dessa tarde ventosa e de um primeiro livro dado à estampa nesse dia: "Una Lirica. Una Immagine", de um escritor chamado Marco Carnà. No ano seguinte, 1983, foram lançados mais quatro livros, três com textos do próprio Casiraghi (assinados, não sabemos, se por ele, se por um dos seus três pseudónimos) e o outro da autoria de Gaetano Neri, também ilustrados por Carnà, em conjunto com Pierluigi Puliti e Gianni Maura. Em 1984, sete, e no ano seguinte, nove. Ao fim dos primeiros dez anos, estavam feitos 236 livros, ou 236 "pulcinos", nome por que são chamados.
Mas o que são, afinal, os "pulcinos"? A descrição oficial diz assim: são quatro ou seis folhas de papel Hahnemühle, tamanho A4, dobradas em A5. Contêm um aforismo ou um pequeno poema impresso em carateres móveis, e uma ilustração, que tanto pode ser uma impressão digital dos desenhos de Alberto, uma xilografia, águas-fortes, litografias, fotografias, colagens, desenhos e pinturas com todas as técnicas, ready-made, esculturas, entre outras intervenções. As tiragens vão de 15 exemplares a 30 ou 35, numerados sequencialmente.
A descrição não-oficial é esta que nos traz Catarina Figueiredo Cardoso, comissária da exposição, e responsável por outros projectos anteriores na área da edição independente e livros de artista. Distingue nos "pulcinos" a "beleza e a aparente simplicidade". Do ponto de vista tipográfico, assegura que são "impecavelmente bem feitos". "O que torna o Alberto diferente é a consistência da sua prática e a mestria com que a utiliza. Há muitos problemas na utilização dos tipos móveis: gastam-se, partem-se, as máquinas desafinam e avariam, todo o material envolvido é caro e a sua utilização é difícil e implica muita prática. Ora o Alberto tem tudo: foi tipógrafo de tarimba, tem imensos tipos, tem a máquina e sabe concertá-la se for preciso. É por isso que ele se distingue dos restantes impressores".

A técnica que nasceu na China antes de Cristo
O primeiro sistema de impressão a partir de tipos móveis (letras, símbolos e sinais de pontuação individuais), feito em porcelana chinesa, é atribuído a Bi Sheng (990-1051 AD), e terá sido criado por volta de 1040 A.D., na China. Quando, cerca de 200 anos depois, a técnica começou a ser usada na Coreia, os tipos móveis passaram a ser feitos em metal. "Jikji" (1377), ou "Antologia de ensinamentos zen pelos grandes sacerdotes budistas", documento budista coreano, é o mais antigo livro imprimido com o uso desta técnica, título que a UNESCO confirmou em 2001, tendo incluído o livro no programa "Memory of the World", destinado a preservar documentos e arquivos de grande valor histórico.
Por volta de 1450, os tipos móveis voltariam à mó de cima (eram caros e exigiam muita mão-de-obra e isso teve consequências), com a impressão da Bíblia por Johannes Gutenberg, na Europa, a partir de um sistema que o próprio inventou, e que superava em larga medida os antigos modelos. Como se passou para a impressão em línguas europeias (número mais limitado de carateres), a técnica tornou-se rentável e foi, dito de uma forma abreviada, um sucesso. Mais tarde, já no século XIX, com a invenção da composição mecânica e seus sucessores, acabaria por entrar em declínio.

Cabras, coelhas e galinhas, e máquinas grandalhonas
Numa das fotografias dos livros em exposição, Alberto surge acompanhado de uma cabra. Ao vê-la, lembramo-nos das imagens do editor e tipógrafo, arrumadas em vídeos (no youtube), que nos trazem essa outra realidade de um quintal cheio de cabras e coelhos e galinhas, e uma casa aparentemente pequena cheia de máquinas grandalhonas que já ninguém parece saber ao certo para que servem, e livros, muitos livros, atrás das portas de vidro dos armários altos ou ali mesmo à mão de semear.
É nessa casa que Alberto continua a receber visitas, artistas, poetas e ilustradores, que ali vão "para lhe ditarem os textos e ajudarem a fazer os livros, cortar o papel e coser as páginas", explica Catarina. E foi também nessa casa que recebeu a escritora italiana de que falávamos, Alda Merini, amiga e colaboradora. Catorze dos 110 livros expostos são dela. Parece pouco, mas há outra história por detrás disto, que podemos arriscar, embora com palavras que não são nossas, contar assim: "A amizade e consequente colaboração com Alda Merini conduziram ao aumento alucinante no número de livros produzidos, e à enorme projeção de Alberto e da sua editora em Itália, nos Estados Unidos e no Japão". A escritora deu, ainda segundo essas páginas que acompanham a exposição, "uma dimensão inesperada à Pulcinoelefante".
O mestre Alberto em Portugal
Em 2013, Alberto vinha pela primeira vez a Portugal, a convite de Catarina. "Achei importante dar a conhecer aos meus amigos portugueses que se dedicam à edição a obra de um dos expoentes da arte da composição tipográfica com tipos móveis".
Nesse ano, fez um workshop no Homem do Saco, um dos ateliers que, segundo Catarina, continua a dedicar-se à técnica de impressão em tipos móveis. A outra é a Oficina do Cego, também em Lisboa. Desse workshop resultaram quatro "pulcinos" sob a supervisão direta de Alberto, que deram aos tipógrafos e artistas portugueses envolvidos (alguns têm agora expostos os livros que fizeram) a motivação necessária para, a partir daí, dedicarem-se à "criação de edições artísticas inovadores e imaginativas que os singularizam no panorama da edição independente."
Mas a ligação de Alberto a Portugal é bem mais antiga. Em 1993, fazia o primeiro livro de um escritor português. É lançar um palpite e acertar, senão à primeira, pelo menos à segunda. Sim, foi mesmo de Fernando Pessoa, mas esse não está entre os que viajaram de Itália para Portugal. Vai ter de ficar para a próxima.

domingo, 9 de novembro de 2014

Romance de estreia de Ana Margarida de Carvalho ganha Grande Prémio da APE.


História que cruza a geração dos resistentes ao fascismo com a que cresceu em democracia, Que Importa a Fúria do Mar foi eleito por unanimidade entre mais de uma centena de romances.
Que Importa a Fúria do Mar, de Ana Margarida de Carvalho, venceu o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE), tendo sido escolhido por unanimidade, entre os 107 livros admitidos a concurso, por um júri composto por José Correia Tavares, Annabela Rita, Cândido Oliveira Martins, José Manuel de Vasconcelos, Teresa Carvalho e Vergílio Alberto Vieira.
Romance de estreia da autora, a acção de Que Importa a Fúria do Mar(Teorema, 2013) inicia-se em 1934, após a célebre revolta operária de 18 Janeiro desse ano, na Marinha Grande, e parte de uma cena em que um homem lança um maço de cartas da janela de um comboio, esperando que alguém as faça chegar à mulher para quem foram escritas. O homem, que se chama Joaquim, foi detido na sequência da revolta de 1934 e irá integrar a leva de prisioneiros políticos que inaugura o campo do Tarrafal, em Cabo Verde.
Muitos anos depois, Joaquim será entrevistado por uma jornalista, Eugénia, na qual se adivinha um alter-ego da autora, que trabalha actualmente na revista Visão, e que já tinha uma longa carreira na imprensa (reconhecida com vários prémios) quando se aventurou a escrever o seu primeiro romance. Após ter estado entre os finalistas do prémio LeYa, Que Importa a Fúria do Mar ganhou agora o da APE, no valor de 15 mil euros, um prémio estreado em 1982 com A Balada da Praia dos Cães, de José Cardoso Pires, e entre cujos anteriores vencedores se conta também o pai da Ana Margarida Carvalho, o romancista Mário de Carvalho, premiado em 1994 pelo romanceUm Deus Passeando pela Brisa da Tarde.   
Entrevistada para o PÚBLICO por Isabel Lucas, por ocasião do lançamento de Que Importa a Fúria do Mar, um livro que cruza a geração dos resistentes ao fascismo com a que já iniciou a sua vida adulta em democracia, Ana Margarida Carvalho falava com entusiasmo do prazer que fora experimentar a “imensa liberdade na forma” que a ficção permite, por contraste com a escrita jornalística, mas mostrava também um desarmante, e hoje cada vez mais raro, espírito autocrítico, afirmando, por exemplo, que ficava contente se as pessoas gostavam do livro, mas que lhe parecia “cheio de imperfeições”, e que evitava relê-lo para não ver alguns “erros de principiante” que achava ter feito. E quantos escritores confessariam como ela, sem rebuço, que gostam de dicionários e escrevem com eles por perto? A sorte de autora foi não ter sido chamada a julgar em causa própria, ou teria ganho na mesma o prémio da APE, mas não decerto por unanimidade.
Prémios Pen Clube
Também o Pen ClubePortuguês anunciou esta quinta-feira os prémios PEN para obras publicadas em 2013, cujos júris optaram por escolher dois vencedores ex aequo em todas as categorias à excepção da de Ensaio, conquistada pelo livro Para que Serve a História? (Tinta-da-China), do historiador Diogo Ramada Curto, também crítico do PÚBLICO. Gastão Cruz e Golgona Anghel dividiram o prémio de poesia, respectivamente com Fogo(Assírio & Alvim) e Como Uma Flor de Plástico na Montra de Um Talho(Assírio & Alvim), e o de narrativa foi atribuído ex aequo a  Ana Luísa Amaral, por Ara (Sextante) e Bruno Vieira Amaral, pelo romance As Primeiras Coisas(Quetzal). Também na categoria de primeiras obras, o prémio foi dividido, consagrando Ensaio sobre o Pensamento Estético de Adorno (Vendaval), de João Pedro Cachopo, e o livro de poemas Cinza (Tinta da China), de Rosa Oliveira.
João David Pinto-Correia, Fernando Martinho e Pedro Eiras compuseram o júri de poesia, Maria João Cantinho, Paula Morão e Nuno Crespo o de ensaio, e o de narrativa incluiu Teresa Salema, Vítor Viçoso, Filipa Melo. O prémio para primeiras obras é atribuído por elementos dos júris das categorias anteriores. (Jornal Público)

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Até ao infinito e mais além.



Quando é que, enquanto espectadores, deixámos de ter a capacidade de nos maravilhar, de ver as coisas sem segundas intenções, sem pensarmos duas vezes se “gostamos” se “não gostamos”, se “seguimos” ou se “amigamos”? Quando é que perdemos aquele olhar, arregalado, deslumbrado, que tivemos perante o desconhecido, o nunca visto? Será que é ainda sequer possível recuperá-lo?
É a pergunta que faz Christopher Nolan em Interstellar e, para lá de toda e qualquer opinião que se possa ter sobre o filme, é essa a chave que “abre” o “hiper-cubo” de leituras que ele permite. Não é por acaso que a viagem interestelar que lhe está no centro é uma “última oportunidade” para uma Terra moribunda, que parte em direcção de um território onde só se chega transgredindo as leis tradicionais da física. Através disso, revela-se que a “suspensão da descrença” que o cinema enquanto “montagem de atracções” começou por ser é o verdadeiro tema de Interstellar. 
Suspender, por um momento que seja, a modorra da realidade quotidiana, cinzenta, condenada; fazer um convite à viagem, ao sonho, à aventura. Resistir, de algum modo, aos avanços do realismo (e dos neo-realismos) que nos remetem constantemente para o mundo lá fora; reafirmar a fé no espectáculo, partir à aventura como os gloriosos loucos que foram à procura do caminho marítimo para a Índia e, no processo, descobriram novos mundos. Mas fazê-lo sem perder de vista aquilo que nos faz humanos: dúvidas, questões, alegrias e tristezas.
A referência evidente de Interstellar é o 2001: Odisseia no Espaço de Stanley Kubrick (1968) - e a partitura de Hans Zimmer, mesmo que mais sóbria do que lhe é habitual, é escandalosamente derivativa no modo como evoca constantemente a reverberação quase infinita de Assim Falava Zaratustra. O novo filme do autor de Memento (2000) e O Cavaleiro das Trevas (2008) parece querer alargar a todo um filme a meia-hora final de 2001, a viagem para lá da “porta das estrelas” que desintegrava as leis do tempo e do espaço em direcção ao in-imaginável – mas, no processo, está também a entrar pela transcendência mística da Árvore da Vida de Terrence Malick (2011), onde o princípio e o fim, o passado e o futuro, eram entendidos como um único todo sensorial.
É aqui que começamos a atolar-nos neste filme de desmedida ambição, que parece espelhar na Terra do futuro transformada num imenso dust bowl as próprias contradições do mundo em que foi concebido. Nolan quer fazer umblockbuster com cabeça num momento em que Hollywood só parece ter olhos para super-heróis e franchises adolescentes. Arrastou dois dos seis grandes estúdios para um filme caríssimo que desafia a massificação do marketing e não se resume em duas linhas. Quer medir-se com os cineastas visionários que Hollywood elevou a mestres - Kubrick, Cameron, Spielberg - numa era em que esse tipo de “fogachos” são desencorajados pelo sistema. E, sobretudo: na era do soundbyte, do telemóvel, do SMS, da desmultiplicação do espectro de atenção, Nolan exige ao espectador três horas de atenção indivisa.
Mas a verdade é que nem por isso Nolan deixa de revelar o calculismo metódico de engenheiro mecânico da sua obra: ao contrário das gélidas simetrias Kubrickianas que deixavam muito em aberto, Interstellar não deixa ponta solta por atar. Sabe que depois de levar o espectador “ao infinito e mais além” tem que lhe dar âncoras ou lemes que lhe permitam reorientar-se. Nada em Interstellar é casual, o inexplicável não o ficará por muito tempo: se ambos são talvez o maior exemplo do que passa hoje por “cinema de prestígio” nos americanos, e partilham uma precisão quase maníaca no modo como planificam ao mínimo detalhe tudo o que acontece nos seus filmes, Nolan está no oposto de David Fincher e do seu prazer quase sádico em escarafunchar no desagradável. Com Em Parte Incerta (2014), outra mecânica de precisão subversiva produzida no interior do sistema, Fincher não hesita em mandar o espectador para casa sem lhe dar a satisfação de um final todo bem arranjadinho.
Nolan não faz nada disso; insiste na “suspensão da descrença”. Como se a frieza robótica de um 2001 onde o computador era mais humano que os tripulantes da nave Discovery não fizesse sentido sem uma fé infindável no amor como único motor de combustão possível para os maiores feitos do ser humano. O que é talvez o maior risco que o cineasta britânico corre neste épico onde a ficção científica e o drama intimista familiar são sugadas ao mesmo tempo para o interior do buraco negro por onde Matthew McConaughey e Anne Hathaway viajam para outras galáxias. Na sua tentativa de conciliar a cabeça e o coração, a ciência mais abstracta e a emoção mais humana de todas, acaba por ser do Abismo de James Cameron (1989), outro objecto fora do seu tempo mal recebido aquando da estreia, que Interstellar se aproxima.
Sem por isso perder aquilo que tornou Nolan no cineasta de estúdio mais polarizador junto da crítica: a sensação de que os seus filmes corporizam, quase sem dar por isso, os grandes debates sociais do momento. EmInterstellar, adivinham-se farpas ao desinteresse político pela ciência, ao Orwellianismo quase involuntário dos “negacionistas” que rejeitam as alterações climáticas, dos economicistas que apenas valorizam resultados, dos revisionistas que querem reescrever a história do modo que mais lhes convém. E, ao fazê-lo, remete inevitavelmente para a epopeia do programa espacial americano tal como Tom Wolfe a escreveu e Philip Kaufman a filmou nos Eleitos (1984) – e a inteireza com que McConaughey ancora Interstellartem algo do Sam Shepard desse filme.
Se vai ficar ou não na história, só o tempo o dirá. A sua ambição tolhe-o aqui e ali, eleva-o a alturas enormes para logo a seguir o fazer quase despenhar-se sob o peso das ideias que projecta. Mas confirma Christopher Nolan como um cineasta que não trabalha num vácuo autista face ao cinema, e ao mundo, à sua volta, e que quer acreditar que ainda é possível recuperar o deslumbre do nunca visto. Como não admirar essa fé?

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Companhia de teatro vende revistas porno em vez de bilhetes para pagar menos IVA.


Com o IVA dos bilhetes de teatro taxado a 21% e o das revistas pornográficas apenas a 4%, a companhia de teatro "Primas de Riesgo" encontrou uma forma de contornar o imposto: vender revistas para adultos que servem de bilhete para as peças.
"Quando vimos que as revistas porno tinham um IVA muito baixo, pareceu-nos cómico e paradoxal", explicou a diretora da companhia de teatro, Karina Garantiva, em declarações ao jornal espanhol Publico, citadas pelo Diário de Notícias.
A experiência vai começar com a peça El mágico prodigioso, de Calderón, com estreia a 25 de novembro, em Madrid, e será limitada a 300 pessoas. As revistas/bilhetes podem ser adquiridas online, por telefone ou num quiosque de Madrid. 
Os interessados "vão ter de identificar-se e assinar um documento em que dizem que estão a realizar um donativo para uma campanha. Os resultados vão ser usados em estudos sociológicos para determinar como é possível que numa sociedade como a espanhola do século XXI, uma revista porno tenha um IVA mais reduzido do que uma peça de Calderón", acrescenta a responsável.
Ler mais: 
http://visao.sapo.pt/companhia-de-teatro-vende-revistas-porno-em-vez-de-bilhetes-para-pagar-menos-iva=f800079#ixzz3Hjmf2g2T



quarta-feira, 29 de outubro de 2014

“Os Maias” de Eça de Queirós para quem não gosta de ler ou não tem tempo.


Era uma vez um gajo chamado Carlos, que vivia numa casa tão grande que levava p’raí umas vinte páginas a dizer como é que era. Quem gosta de imobiliário, tem aqui um petisco, porque aquilo tem assoalhadas grandes e boas e, pronto, mas p’ra mim não serve, que eu imóveis só com a fotografia, que às vezes um gajo é artista a escrever e depois uma pessoa vai a ver a casa e não tem nada a ver com o que imaginou.
Portanto, o gajo chama-se Carlos e o pai matou-se quando ele era pequeno, porque a mulher fugiu com um italiano e levou a filha que eles também tinham e… e ele matou-se, não faz sentido, porque o que não falta p’raí são gajas. Ora o puto fica com o avô e tal, vai crescendo e torna-se um gajo fino, bem vestido e que vai a boas festas.
Às tantas vê uma gaja e pensa: “Ui, que gaja tão boa!” e p’raí na página 400 começam a ir para a cama os dois e andam aí umas boas 200 páginas, pim, pim, troca e vira e agora nesta casa e agora naquela e pumba e… só que às tantas vem um gajo e diz: “-Eh pá, olha que a moça é tua irmã!” e o Carlos fica “eh pá, isso não pode ser, que nojo!” de maneiras que dá-lhe só mais duas ou três trolitadas e vai dar uma volta ao mundo, para espairecer, e acaba tudo em bem porque, ao menos, não tiveram filhos. Porque se tivessem eram, de certeza, meio tantans, babavam-se, como o meu primo Zé Luís, que os pais também eram parentes.

ENSINAMENTOS DA OBRA

1 – Tu nunca sabes o que é que os teus pais andaram a fazer, porque eles, em princípio, nasceram primeiro do que tu, de maneiras que, quando conheces uma gaja o melhor é dizer: “Oh menina, o seu passaporte se faz favor, nunca fiando, que eu gosto de fazer tudo certinho!”

2 – Outra coisa que o Eça de Queirós ensina é que às vezes mais vale um gajo ser cão, porque eu tive um cão, que era o Patusco e o gajo não respeitava nada, nem ninguém, era irmãs, era a mãe, era tudo a eito e não era nada com ele.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

O padeiro dos livros felizes edita uma obra por dia.


Chamam-se Pulcinoelefante, são feitos manualmente, não há dois iguais. Já são quase 9300 livros editados por este tipógrafo, poeta, pintor, escultor. A Biblioteca Nacional abriu ontem uma exposição dedicada aos pulcinos.
Houve um tempo em que Alberto Casiraghy era um tipógrafo infeliz empregado numa grande tipografia que imprimia jornais. Numa tarde ventosa de 1982 fez um livro todo manufaturado. Foi o seu dia inaugural e das mãos saiu-lhe Una Lirica, Una Immagine de Marco Carnà, o primeiro Pulcinoelefante da história. Agora, mais de nove mil livros e 30 anos de celebridade depois vai ter a sua primeira exposição em Portugal. 9000 Formas da Felicidade: as Edições Pulcinoelefante, inaugurou ontem na Biblioteca Nacional, em Lisboa, onde fica até 31 de janeiro.
Alberto Casiraghy,62 anos, apresenta-se como um "padeiro de livros", o único padeiro que trabalha durante o dia, e de facto, desde 1992, em média, tem editado mais de um título a cada 24 horas... Os livros de Alberto são quatro ou seis folhas de papel Hahnemühle, tamanho A4, dobradas em A5. Contêm um aforismo ou um pequeno poema impresso em carateres móveis, e uma ilustração: uma impressão digital dos desenhos de Alberto, uma xilografia, águas-fortes, litografias, fotografias, colagens, desenhos e pinturas com todas as técnicas, ready--mades, esculturas, as intervenções mais variadas. As tiragens vão de 15 exemplares a 30 ou 35, numerados sequencialmente mas não há dois livros iguais.
Alberto Casiraghy vive ainda na aldeia de Osnago, onde nasceu, junto ao Lago Como, Itália. A sua casa é também a oficina onde trabalha entre excêntricas máquinas vindas de séculos passados, tintas, metal e muito, muito papel.

Raramente viaja, pois são os artistas, os poetas e ilustradores ou as crianças da rua que vão ter com ele. Gente famosa e gente anónima não interessa. "São pessoas que me vêm dar a sua arte, a sua companhia e em troca eu ofereço-lhes a minha arte, a minha casa, a minha comida", contou Casiraghy em entrevista telefónica ao DN.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

João Machado é um mestre do design da Graphis.


O designer gráfico português João Machado foi distinguido na edição de 2015 do International Journal of Visual Communication – Graphis como um dos seus mestres do design.
Nessa lista de mérito, João Machado surge ao lado de Alan Fletcher, Takenobu Igarachi, Werner Jeker, Gunter Rambow e Massimo Vignelli. Na mesma edição especial em que a publicação divulga alguns dos melhores trabalhos internacionais da indústria da comunicação visual, surge ainda como vencedor em duas categorias de premiação: Ouro para Melhor Cartaz pelos materiais de divulgação das Festas de Almada de 2013 e ainda pelas campanhas ambientais Roots Think Green (2014) e Water for Life (2014), e Mérito tanto pelo trabalho para as celebrações do 25 de Abril também de Almada (2013) como pelo cartaz do festival de Cinanima (edição de 2014).
Sobre os cartazes premiados com o Ouro, o designer gráfico diz ao PÚBLICO que no caso das Festas de Almada, por ocasião do S. João, “a imagem desenvolvida baseia-se numa forma que não é mais do que uma interpretação pessoal daquilo que é o balão de S. João”. “As cores utilizadas fazem parte da minha paleta habitual de cores. Cores planas acentuadas por grandes contrastes, características afinal comuns a este tipo de festas populares”, explica João Machado.
Já no que diz respeito aos outros cartazes, desenvolvidos no contexto da preservação ambiental, pretende-se  sensibilizar as pessoas para a necessidade de garantir um planeta mais sustentável: “Ambas as imagens pretendem representar a vida (terra e água). A raiz ainda que doente e pálida, mas que é capaz de se regenerar, se assim o quisermos. As cores que as suas extremidades assumem são sinais dessa vida. No cartaz Water for Life, o movimento e as cores sugeridas por criaturas marinhas conferem a energia e a vitalidade de um planeta habitável e ideal.”
Várias vezes distinguido por esta publicação, João Machado, nascido em Coimbra em 1942 e formado em escultura pela Escola Superior de Belas Artes na Universidade do Porto, trabalha como designer desde o arranque dos anos 1980. Há um ano, recebeu também o Ouro para Melhor Cartaz com o trabalho que fez para promover as Festas de Almada, novamente, e ainda pela campanha Think Green e pelo poster do Cinanima.
A Graphis edita várias publicações especializadas em design, artes gráficas, fotografia e publicidade. Com mais de 300 edições até hoje, foi publicada pela primeira vez em 1944 em Zurique, na Suíça, tendo mudado a sua sede para Nova Iorque em 1986, quando o título foi comprado por B. Martin Pedersen. Ao contrário de outros concursos, aqui não há prémio monetário. A recompensa é o reconhecimento e a oportunidade de poder mostrar o trabalho produzido. 
João Machado tem trabalhado para clientes nacionais e internacionais entre os quais se contam empresas de referência como a Ach Brito e a Amorim, grandes instituições como a Assembleia da República, a Fundação Calouste Gulbenkian, o Centro Cultural de Belém e a Fundação Oriente, vários museus e institutos públicos bem como uma multiplicidade de câmaras municipais.  



Já este ano, o designer gráfico viu o seu trabalho ser distinguido no Grande Prémio Asiago de Arte Filatélica, que lhe atribuiu o Melhor Selo do Mundo, na categoria Turismo, com o selo de 0,36 euros da emissão filatélica "Ano Internacional da Estatística".  (Jornal Público – Out. 2014)

domingo, 19 de outubro de 2014

As imagens que faltaram.


À volta das imagens registadas pelos exércitos aliados durante a libertação dos campos de concentração nazis, e da sua montagem de acordo com as indicações de Hitchcock, o DocLisboa propõe um ciclo de filmes-testemunho sobre o poder e a capacidade do cinema representar uma realidade difícil de compreender.
Quando, em 1945, o produtor britânico Sidney Bernstein convidou Alfred Hitchcock para supervisionar a montagem de imagens recolhidas no terreno durante os últimos combates da Segunda Guerra Mundial, fê-lo por uma razão muito simples: queria deixar algo para memória futura. Para que a História recordasse o que os soldados – americanos, russos, britânicos – haviam encontrado ao longo do seu percurso de libertação da Europa: o horror apocalíptico dos campos de concentração nazis.
Essas imagens, sabemo-lo hoje, deram a volta ao mundo; mas não exactamente do modo que Sidney Bernstein, então adstrito ao serviço de propaganda do exército britânico, o tinha pensado. Filmadas por militares treinados para operar câmaras, seriam usadas em julgamentos como prova dos crimes de guerra cometidos, ou incluídas parcialmente em jornais noticiosos. Mas o documentário de fundo que Bernstein quis fazer, um trabalho de “serviço público” sobre o segredo mais bem guardado do regime de Hitler, nunca foi acabado – até 2014, quando o Museu Imperial da Guerra britânico estreou, no festival de Berlim, a montagem “final” desse filme sob o título desapaixonado German Concentration Camps Factual Survey.
Essas imagens “que faltavam”, 70 anos depois de terem sido rodadas, servem de ponto de partida para O Nosso Século XX: O Cinema Face à História, um ciclo paralelo do DocLisboa que olha para a dimensão de testemunho e registo que o cinema pode e deve assumir, para os caminhos tortuosos que estas imagens levaram até chegarem ao écrã. Ou, nas palavras de Cíntia Gil, uma das directoras do festival, para uma série de questões históricas sobre a representação dos acontecimentos mais radicais e importantes do século XX. A atenção que o documentário sempre prestou aos grandes temas mundiais torna este ciclo significativo para um evento que nunca se quis amorfo nem acéfalo mas em estreita ligação com o mundo que o rodeia. “No Doc sempre fizemos um esforço para não fechar a programação em questões temáticas,” explica Cíntia, “mas também não queremos fazer de um festival tão grande uma série de ilhas sem comunicação.”
Essa ligação está presente no modo como o programa enquadra as duas sessões de German Concentration Camps Factual Survey (quarta, 22, às 22h00, na Culturgest, e quinta 23, às 19h45, no cinema Ideal), apresentadas por David Walsh, curador do Museu Imperial da Guerra (por indicações expressas do museu, o filme não pode ser exibido publicamente sem a presença de um dos responsáveis pela sua reconstituição). Antes, passará (hoje, à meia-noite, no Ideal) Night Will Fall de André Singer, making ofconvencional mas eficaz que conta a história destas imagens, do filme abandonado e das suas várias vidas. Depois, ver-se-á Falkenau: Vision de l'impossible (sexta 24, às 19h30, na Culturgest, e sábado 25, às 18h45, no São Jorge), registo por Emil Weiss do testemunho na primeira pessoa do realizador Samuel Fuller, um dos soldados americanos presentes na libertação do campo de Falkenau. E mostram-se ainda Parole de Kamikaze,testemunho de um piloto suicida japonês registado por Masa Sawada e Bertrand Bonello (hoje às 21h30 no City Campo Pequeno), ou Veillées d'armes, o trabalho de Marcel Ophuls sobre o jornalismo em tempo de guerra (sábado 25 às 14h00 no São Jorge; o programa completo da secção pode ser consultado no site oficial http://doclisboa.org ).
Buraco negro
Embora não seja o único tema destes filmes, a Segunda Guerra Mundial torna-se nesta edição do Doc numa espécie de “buraco negro” no centro da história europeia do século XX, gerador de testemunhos, histórias e ficções que tecem entre si uma teia cada vez mais complexa de fios narrativos, que não se limita ao documentário puro e duro e fica igualmente patente noutras secções do certame. “A Segunda Guerra Mundial mudou radicalmente a história do cinema, e a relação entre a prática do cinema e o real que o rodeia,” diz Cíntia Gil. “Pode-se dizer que a arqueologia do cinema contemporâneo passa inevitavelmente pela guerra. Mas há uma dimensão de coincidência, porque por exemplo a retrospectiva que dedicamos ao neo-realismo estava pensada muito antes deste ciclo.” 

O neo-realismo italiano é um produto directo do conflito e do imediato pós-guerra (visível no filme colectivo Giorni di Gloria ou em Europa '51 de Rossellini). Mas esse diálogo entre filmes prolonga-se para obras muito mais recentes que parecem traçar as consequências a longo prazo do conflito. Como os filmes que olham para as vontades de independência dos satélites soviéticos (as manifestações na praça Maïdan de Kiev de A Praça de Sergei Loznitsa, filme de abertura, ou o estatuto de pária em limbo da Abecázia independente filmada por Éric Baudelaire em Letters to Max, no concurso internacional), ou a constante memória da guerra nos Alpes italianos filmados por Simone Rapisarda Casanova em La Creazione di Significato(prémio de melhor realizador emergente em Locarno, aqui na competição principal). (Jornal Público - Out 2014)

domingo, 12 de outubro de 2014

Aproveita a vida - O último filme de Robin Williams.



Foi um dos últimos filmes de Robin Williams, que se suicidou em Agosto, e salvo melhor informação o derradeiro estreado em vida dele. Não haverá muito mais razões para a história lembrar Aproveita a Vida, Henry Altmann senão esta, contudo.
O filme de Phil Alden Robinson (autor, nos idos de 80 e tal, de um curioso filme com Kevin Costner, Field of Dreams) até tem um bom princípio ficcional, ao erguer toda a sua narrativa em torno da limitada duração de vida que é estimada ao seu protagonista: exactamente 90 minutos, mais ou menos a duração do filme. Ideia que faz lembrar um clássico da série B dos anos 50 (o D.O.A. de Rudolph Maté), onde tudo girava à volta da iminente, e inexorável, morte da personagem principal.
Bom, mas as semelhanças param aí, isto não é um thriller negro mas na melhor das hipóteses uma suave comédia romântica com o objectivo de animar os espíritos e trazer-lhes “filosofia” positiva. De resto, os 90 minutos são mentira, é apenas o primeiro que vem à cabeça da médica estagiária (Mila Kunis), aliás um bocado desaustinada, quando aquele zangado paciente (o “homem mais zangado de Brooklyn”, como diz o título original) lhe exige saber, na sequência do diagnóstico de um aneurisma cerebral, quanto tempo tem de vida. Ele não acredita mas, nunca fiando, decide “aproveitar” a vida que lhe resta e tentar resolver em hora e meia os inúmeros problemas - com a mulher, com o filho - que tem pendentes. E ela, a médica, depois de se aperceber da asneira, vai atrás dele para tentar remediar a situação. A mecânica dos primeiros dois terços do filme é esta - ela no rasto dele, por Brooklyn fora.
Mas estas premissas - tempo e espaço - são tratadas de forma canhestra e indiferente, sem relevância formal, tudo se apagando em função da história que há a contar, a de um homem revoltado (uma das primeiras cenas, Williams entalado no trânsito da hora de ponta, parece vinda do “Falling Down” de Joel Schumacher) à procura do apaziaguamento quando confrontado com uma morte próxima. Tudo se passa dentro dum esquematismo mole e apressado, que se acerta nalguns momentos cómicos (a cena em que Williams descobre a que a mulher tem um amante, por exemplo) falha por completo a dimensão dramática - como tentativa de suicídio na Ponte de Brooklyn, que pedia um Frank Capra que já não há. Robin Williams, fisicamente mais esquisito (o pescoço parece que desapareceu por inteiro) e envelhecido do que nunca, com uma voz como nunca a ouvimos, suja e roufenha (uma voz de “velho”), é uma figura interessante, sobretudo quanto tem que interpretar a ira descontrolada do seu protagonista – mas mesmo nessas alturas o filme nunca consegue dar o salto para fazer da personagem uma presença realmente perturbante, que traga ao espectador alguma incerteza. Williams merecia mais filme, como provavelmente merecia ter tido mais filmes ao longo da carreira. Acabou assim, e sendo as coisas o que são, é o filme que há para se lhe fazer a despedida. (Jornal Público)

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Modiano: um escritor longe dos "grandes alaridos".


O editor Manuel Alberto Valente, responsável pela publicação em Portugal de várias obras de Patrick Modiano, hoje laureado com o Nobel da Literatura, sublinha a sua escrita subtil, "como uma música". Tal como o autor, que prefere geralmente manter-se longe dos holofotes.
"Nunca o conheci pessoalmente, é um homem muito avesso a viagens e a encontros sociais. Convidei-o várias vezes a vir a Portugal, para os lançamentos dos livros, mas nunca foi possível. Mas conheci-o através das leituras, já nos anos 80", conta Manuel Alberto Valente, satisfeito mas não completamente surpreendido com este Nobel. "Sempre achei que era uma voz completamente distinta no panorama da literatura europeia e que, mais cedo ou mais tarde, seria reconhecido." O primeiro livro que editou de Patrick Modiano foi Domingos de Agosto, ainda na Dom Quixote. Depois publicou-o na Asa e mais recentemente na Porto Editora.
O que mais distingue este escritor, diz Manuel Alberto Valente, é a sua temática: "Praticamente aborda sempre o mesmo tema, que é a memória e a importância que a memória tem na vida do ser humano, o que conduz para um subtema também recorrente, que é a ocupação de Paris durante a Segunda Guerra Mundial." O editor dá como exemplo disto mesmo o romance Dora Bruder. "A obra gira sempre em torno desta obsessão com a memória, esta é a sua marca criativa mais pessoal."
Além disso, sublinha, a crítica francesa também costuma referir-se ao seu estilo de escrita como uma "pequena música". "Não é um autor de grandes alaridos. A sua escrita é antes como uma música suave. É uma voz muito elegante, subtil e discreta. Não é um autor que atraia multidões, está muito longe do troar de tambores que caracteriza muita da literatura contemporânea", comenta.

Quanto a novas edições em Portugal de Modiano, Manuel Alberto Valente não pode avançar quando haverá: "Espero que tenhamos oportunidade de continuar a revelar as obras deste autor" (DN-09.10.2014)


domingo, 5 de outubro de 2014

Em Lisboa, Pamuk diz que "a Europa precisa de ter uma discussão séria sobre os seus valores".


Na sua primeira visita oficial a Portugal, para receber um prémio que reconhece o seu contributo para o património cultural europeu, o Nobel da Literatura deixou um recado: “A herança cultural europeia não se deve limitar à preservação dos seus monumentos, mas também à preservação dos seus valores fundamentais”
O escritor turco Orhan Pamuk defendeu esta sexta-feira em Lisboa que “a Europa precisa de ter uma discussão séria sobre os seus valores fundamentais”. O Nobel da Literatura de 2006, autor de uma obra literária sobre a procura de uma identidade turca, dividida entre o Ocidente e o Oriente, entre modernidade europeia e tradição muçulmana, recebeu esta noite o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva para a Divulgação do Património Cultural na Fundação Calouste Gulbenkian, com um discurso em que prestou tributo à tradição cultural europeia, mas que terminou com uma nota crítica.
“A herança cultural europeia não se deve limitar à preservação dos seus monumentos, mas também à preservação dos seus valores fundamentais”, disse o escritor, na sua primeira visita oficial a Portugal. “E temos de ter uma discussão séria sobre esses valores fundamentais.”
Pareceu claro que era um recado para a Europa – não por acaso, o presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, estava presente na primeira fila – embora Pamuk não tenha especificado o que queria dizer com isso, talvez para não correr o risco de soar pouco diplomático. Mas o que Pamuk quis dizer terá talvez a ver com o que respondeu numa entrevista em Dezembro do ano passado, quando um jornalista colombiano lhe perguntou se se sentia europeu. “Não sei. Não penso nesses termos. Em primeiro lugar, sinto-me turco. E um turco tanto se sente europeu como não europeu. Acredito numa Europa que não se baseia no cristianismo, mas no Renascimento, na modernidade, na ‘liberdade, igualdade, fraternidade’. Essa é a minha Europa. Acredito nessas coisas e quero fazer parte delas. Mas se a Europa é a civilização cristã, lamento: nós, turcos, não queremos entrar.”
No debate sobre a hipotética entrada da Turquia na União Europeia, Pamuk – um turco cosmopolita e laico que se autodefine como um “muçulmano, mas apenas no sentido cultural” – emergiu como um intérprete do diálogo entre civilizações. Daniel Cohn-Bendit disse que foi Pamuk quem o ajudou a “perceber a importância de a Turquia aderir à União Europeia”. Até mesmo o ex-Presidente americano George Bush se referiu à obra do escritor como “uma ponte entre culturas”, notando que ela mostra como “pessoas noutros continentes e civilizações” são “exactamente como nós”.

Em defesa das pessoas normais
Atribuído pela primeira vez no ano passado ao escritor italiano Claudio Magris, cuja obra é notória pela sua deambulação cultural (como a de Pamuk), o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, no valor de dez mil euros, é uma iniciativa da organização europeia de defesa do património Europa Nostra em parceria com o Centro Nacional de Cultura e o Clube Português de Imprensa, com o objectivo de distinguir um cidadão europeu que, ao longo da sua carreira, tenha contribuído para a divulgação, defesa e promoção do património cultural e dos ideais europeus.
O presidente do Centro Nacional de Cultura e membro do júri, Guilherme de Oliveira Martins, notou que a atribuição do prémio a Pamuk teve em conta “o cidadão apaixonado pela defesa do património cultural, mais do que o grande romancista”, embora o seu discurso tenha sido dominado por referências e citações constantes do último romance do escritor, O Museu da Inocência(ed. Presença), publicado em 2008.
Pamuk confessou-se “lisonjeado e honrado” pela atribuição do prémio, que lhe foi entregue pelo secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier.
Falando em inglês, o escritor lembrou como concebeu um romance e um museu ao mesmo tempo, referindo-se a O Museu da Inocência, ficção sobre um homem que colecciona todos os objectos tocados pela mulher que amou e que perdeu e ao edifício com o mesmo nome que abriu em Istambul, a cidade onde nasceu e onde vive, com objectos que foi juntando para o processo de escrita do livro e que é hoje, também, um museu sobre a vida quotidiana da classe média turca na segunda metade do século XX.
“Os verdadeiros romances centram-se em pessoas normais, no seu dia-a-dia”, disse. Com a entrada na modernidade, a literatura deixou de se interessar pelos reis e poderosos para se ocupar da história de pessoas simples, como se fossem reis – Joyce fê-lo em Ulisses, notou. Pamuk defendeu que os museus deviam fazer o mesmo. “Deixem de prestar atenção à nação e aos reis e dediquem-se aos pequenos detalhes das nossas vidas quotidianas. É por isso que defendo que precisamos de pequenos museus”, disse.

Nesta segunda edição do Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, foi também atribuído um prémio especial de carreira ao historiador de arte José-Augusto França por ter “fomentado a tomada de consciência e o sentimento de orgulho relativamente à arte portuguesa, relacionando-a com a cultura europeia e mundial”. O júri distinguiu ainda o jornalista holandês Pieter Steinz com uma menção especial pela criação de uma enciclopédia de ícones culturais europeus. (Jornal Público)