domingo, 21 de setembro de 2014

A vida dos emigrantes portugueses na Argentina deu um livro.

As docas de Buenos Aires em Outubro de 1921 — a emigração portuguesa ajudou na construção do país KEYSTONE VIEW CO/NATIONAL GEOGRAPHIC SOCIETY/CORBIS

Algarvios, muitos, minhotos e serranos cons-truíram, na primeira metade do século XX, uma nova vida num país que estava, também ele, a ser ainda construído. De Buenos Aires à Patagónia. Em Portugal Querido, podemos ler histórias como a de Yudith, que atravessou o oceano sem saber como era o pai que a esperava no outro lado do Atlântico.
víamos em São Brás de Alportel… e o meu pai levava-me a passear todos os dias quando chegava do trabalho. Eu era a filha mais velha de três irmãos e de um ainda por nascer… De um dia para o outro, deixei de ver o meu pai e com quatro anos — e ele apenas com 23 — não podia entender o que tinha acontecido, nem para onde tinha ido. Ao ficarmos sozinhos, fomos viver para o campo, no sítio Dos Machados, com a minha mãe Gertrudes, grávida de oito meses. Ela teve de ir trabalhar, pelo que eu e os meus irmãos ficávamos sozinhos, quase todo o dia. Começaram a chegar as primeiras cartas. O meu pai pedia que o filho, se fosse varão, se chamasse Abel. Os dias passavam e eu só via cartas. Numa delas, ele dizia: ‘Yudith, neste momento, olhando as estrelas, vejo nelas o brilho dos teus olhos’, palavras que me ficaram gravadas na memória, apesar da minha tenra idade.”
Yudith Rosa Viegas recorda, assim, a partida do pai para a Argentina, em 1926. O reencontro só aconteceria “13 longos anos” mais tarde, quando, em vésperas do início da II Guerra Mundial, embarcou com a mãe e os dois irmãos (o bebé mais novo, uma menina que não pôde chamar-se Abel, morreu com apenas oito meses) “num barco inglês” a caminho de Buenos Aires.
O destino desta família algarvia e de muitas outras famílias portuguesas foi recolhido por Mário dos Santos Lopes, jornalista e professor, também ele filho de algarvios que emigraram para a Argentina, e que lançou, naquele país, o livro Portugal Querido. A edição de autor, de cinco mil exemplares, já está a ser revista e ampliada, com novas histórias de uma emigração muito particular.
Mário dos Santos Lopes, 55 anos, recusa arcar sozinho com a responsabilidade do livro. Até porque, explica à Revista 2, quem insistiu para que ele avançasse com o projecto foi o irmão, Victor, que abriu uma pousada portuguesa, a Pousada São Brás, em Córdoba. “Estava de férias em Villa General Belgrano, Córdoba, e, durante uma conversa, o meu irmão Victor disse que gostaria de publicar um livro em homenagem aos imigrantes. Disse-lhe que sim, que o faria, mas na realidade não sabia como nem em quanto tempo. Nessa mesma noite, comecei a procurar contactos de luso-descendentes no Facebook e na Internet, sem saber onde chegaríamos. A ideia original era termos um livro de cem páginas, algo muito pequeno”, explica, através de email, o jornalista que vive em Puerto Deseado, Santa Cruz, na Patagónia argentina.
A tarefa assemelhou-se “às obras de Santa Engrácia”, lê-se na introdução de Portugal Querido, e só ficaria pronta ao fim de cinco anos de busca e escrita, tornando-se uma verdadeira empreitada familiar. Victor foi “o criador e impulsionador da ideia”, Andrea, a irmã mais nova, “traduziu, corrigiu e deu bons conselhos”. Juan Benjamín Lopes, filho de Mário, “desgravou os áudios”. Pablo Molina e Ana Laura Lopes, genro e filha, “puseram o coração e o profissionalismo na artística capa do livro”. O resultado foi uma obra de 254 páginas com muitas histórias de emigrantes, algumas referências históricas da passagem portuguesa pela Argentina, umas curtas histórias e participações de emigrantes lusos noutros países, vários textos sobre os clubes e associações dedicadas à cultura nacional e relatos de cantoras argentinas que se apaixonaram pelo fado. O fio condutor do livro é, contudo, a compilação das memórias das famílias que, deixando Portugal, encontraram um novo lar na Argentina. (Jornal Público)

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