quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

AS PALAVRAS INVISÍVEIS.


Procuro o meu bloco de notas em lugares onde já procurei. Tenho a esperança que, desta vez, por qualquer milagre, possa estar lá. Não é um bloco extravagante, é preto e simples, vejo-o na memória enquanto procuro. Há aquilo para que olho, está à minha frente com todas as suas formas, e há este bloco de capa preta que quero encontrar e que é concreto na minha lembrança, como uma imagem projetada sobre aquilo que existe, como um slide antigo, e não adianta estender a mão para agarrá-lo, não está lá, os dedos atravessariam a luz dessa projeção colorida e imaterial.
Tento recordar a última vez que segurei o bloco de notas, ontem. Sei que estava em casa, isso é certo, mas apenas lembro a sensação viva de ter descoberto um bom lugar para o guardar. Talvez dentro de uma gaveta, talvez debaixo de alguma coisa, talvez entre dois livros que, naquele instante, me pareceram especialmente simbólicos. Escondi-o tão bem que, agora, nem eu próprio o consigo encontrar.
Conheço blocos de notas de grandes escritores, edições fac-similadas, póstumas. Os meus cadernos não são assim. Encho-me de pudor com a simples referência mental às anotações que faço: frases muito distantes de chegarem a verso, listas de tarefas, ideias sem forma, fragmentos meus, nus, inocentes, a exporem aquilo que não quero mostrar. Não são restos de mistério, não têm aquela imperfeição cuidadosa, perfeita. Aquelas páginas sou eu em cuecas, acabado de acordar, zombie; sou eu despenteado, camisola com nódoas, meias sem elástico; sou eu adormecido no sofá, diante da televisão acesa, a babar-me.
Na semana passada, estacionei o carro num lugar diferente. Entrei em casa, enchi a cabeça com as coisas de casa, dormi essa noite e, no dia seguinte, quando saí à rua, sobressaltei-me por não o encontrar no posto de todos os dias. Comecei a procurá-lo. A possibilidade mais insistente era: roubaram-me o carro. Apressei o passo e, quando já tinha o telefone na mão, lembrei-me daquele instante na véspera em que decidi estacionar num lugar diferente.
Escondido de mim, o meu bloco de notas, imóvel, discreto, abriga aquele pequeno mundo. Bastará folheá-lo para que essas palavras se soltem; estão lá, à espera, são como um segredo com corpo. O meu bloco de notas é como o corpo desse segredo.
Ainda assim, há diferenças fundamentais: esconder para sempre é tentar que algo nunca tivesse existido. Em coerência, a única forma de levar esse raciocínio até ao fim é morrer. Comparado com essas decisões, o meu bloco de notas, feito de papel barato, não é realmente o corpo de um segredo, é apenas o biombo que cobre esse corpo e, mesmo assim, é um biombo que permite transparências. Por sua vez, morrer com segredos, carregá-los no peito a vida inteira e morrer, nunca os partilhando com irmãos ou filhos, é um ato que questiona a própria morte. Conseguirá a morte ser suficientemente opaca para esconder esses segredos para sempre?
Um bilhete achado no interior de um livro antigo pode mudar tudo o que pensávamos sobre o nosso avô. Uma grande parte do passado ainda está para acontecer.
Além disso, os segredos retiram lógica ao mundo. Aquilo que se omite priva os outros de compreenderem as razões dos episódios a que assistem. Porque é que estás maldisposto? Por nada. Passa-se alguma coisa? Não, não se passa nada. Há algum problema? Não, não é nada.
Talvez encontre o bloco de notas quando já não estiver à espera. Então, quase de certeza, irá iluminar-se o instante em que decidi guardá-lo e as razões que me levaram a escolher esse lugar que, agora, me parece insuspeito. Será como quando não consigo recordar um nome ou uma data, faço um grande esforço de memória, mas nada. Depois, quando já não estou a pensar nisso, de repente, como um objeto que regressa à superfície, aparece-me na cabeça. Até posso acordar de noite com a força dessa lembrança.
Conformo-me, estou cansado de procurar, mas tenho pena. Nesse bloco, tinha anotado a ideia que ia desenvolver neste texto. Não consigo lembrar como era, só recordo que me entusiasmou, pareceu-me boa ideia, fiquei contente quando a tive.


José Luís Peixoto, in revista Visão

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