terça-feira, 30 de agosto de 2016

A Madona caída das grandes maminhas.


O que era uma paródia a uma série da BBC tornou-se numa das mais populares comédias britânicas de sempre em Portugal. Tudo por causa de um quadro que toda a gente queria e de um gerente de café que só queria que o deixassem sossegado.
“René! Que estás tu a fazer com a criada?”, gritava Madame Edith (Carmen Silvera) quando apanhava o marido a agarrar as formas bem proporcionadas da criada. “You stupid woman!” “Sua estúpida!”, gritava-lhe logo em seguida René Artois (Gorden Kaye), o proprietário do Café René na aldeiazinha francesa ocupada de Nouvion durante a Segunda Guerra Mundial. “Não vês que estou a consolá-la?”
“You stupid woman!” Como esta, há outras tantas referências que entraram na conversa diária ao longo dos anos, em liceus, cafés e pausas para o cigarro, inspiradas por Alô, Alô!, a série de comédia da BBC criada por Jeremy Lloyd (1930-2014) e David Croft (1922-2011). "Good meurning", a saudação habitual do guarda Crabtree (Arthur Bostrom) que achava que sabia falar francês; "Ouçam muito atentamente, só vou dizer isto uma vez", a marca registada de Michelle-da-Resistência (Kirsten Cooke); "Sou eu, o Leclerc", dizia o velhote destrambelhado (Jack Haig) para se identificar dentro de cada disfarce menos convincente do que o outro. E, acima de tudo, o quadro daMadona Caída com as Grandes Maminhas de Van Clomp, que servia de “macguffin” e motor das peripécias que se repetiram ao longo dos 85 episódios da série, produzida pela BBC entre 1984 e 1992 depois de um piloto filmado em 1982.
O truque da popularidade de Alô, Alô! era a lista de bordões quase revisteiros repetidos inevitavelmente em todos os episódios de meia hora. A popularidade da série entre nós (onde mereceu horário nobre da RTP1 antes de se tornar presença regular na RTP2, no já defunto SIC Comédia e actualmente na RTP Memória) foi e é tal que a notícia de um grave acidente de automóvel sofrido em 1990 por Gorden Kaye teve direito a manchetes de jornais. Um porta-voz da BBC chegou na altura a mostrar-se surpreendido pela quantidade de contactos realizados por jornalistas portugueses para se inteirarem do estado de saúde do actor, como se não houvesse noção em Inglaterra da popularidade lusitana de Alô, Alô!…
Talvez o mais estranho dessa popularidade fosse que por cá a série era vista como uma paródia aos filmes de guerra que corria todos, bons e maus, heróis e vilões, pela mesma bitola de incompetência e desastre. Mas Lloyd e Croft referenciavam essencialmente uma série dramática da BBC sobre a Resistência francesa, Secret Army(1977-1979). Alô, Alô! não apenas seguia com alguma rigidez – pelo menos na temporada inicial – a trama dessa série, como até ia buscar alguns actores que tinham tido papéis no “original”.
Claro que, em meados dos anos 1980, quando a série começou a ser exibida entre nós, não havia necessariamente a consciência de que o humor de Alô, Alô! era revisteiro e pertencia a um outro tempo. A brejeirice com cheiro a naftalina do modo como a soldado Helga (Kim Hartman) ou a criada Yvette (Vicki Michelle) faziam valer os seus físicos que deixavam os homens loucos e faziam o coronel von Strohm (Richard Marner) pedir o capacete de voo e o aipo húmido, ou a homossexualidade efeminada do tenente Gruber (Guy Siner) e as constantes referências ao seu tanquezinho eram “bordões”.
sso fazia sentido, porque os seus autores vinham precisamente da tradição de music-hall da comédia televisiva. Croft havia co-escrito com Jimmy Perry duas outras comédias da BBC ambientadas durante a guerra, Dad’s Army(1968-1977) e It Ain’t Half Hot Mum (1974-1981); Juntos, Lloyd e Croft já haviam criado uma das séries mais populares da estação britânica, Are You Being Served? (1972-1985), sobre o dia-a-dia de um grande armazém de província. Os seus lugares-comuns eram os mesmos que o nonsense dos Monty Python ou dos Goodies, a subversão irrisória de Soap/Tudo em Família ou, mesmo por cá, a lufada de ar fresco do Tal Canal e dasHermanias estavam a deixar para trás.
Mas a questão não se colocava nessa altura com a mesma urgência de hoje, e a verdade era que, neste microcosmos da Segunda Guerra Mundial onde toda a gente falava inglês com sotaque para identificar a sua origem, eram precisamente os lugares-comuns identitários que se punham em causa: os ingleses aristocratas completamente alheados da realidade mas convencidos do seu valor, os franceses orgulhosos e românticos entre a cobardia e a valentia, os alemães tão organizados que já não sabiam a quantas andavam às tantas, os italianos preguiçosos e cheios de bazófia. E René Artois no meio disto a safar-se o melhor que podia enquanto tinha de lidar com uma esposa mitómana, duas criadas ninfomaníacas, uma sogra surda que nem uma porta, os aviadores ingleses que não percebiam nada, os alemães sempre a verem como fazer dinheiro, os planos e contra-planos da Resistência (normal e comunista), Herr Flick da Gestapo e o cangalheiro Alphonse mais o seu coraçãozinho frágil.

Alô, Alô! já então era uma relíquia de outro tempo, e hoje, que os seus “bordões” já entraram na linguagem, ainda mais – sobretudo porque a BBC teve “mais olhos do que barriga” e, para forçar uma entrada nas grandesnetworks americanas que acabou por não acontecer, arriscou produzir uma quinta temporada com 26 episódios (contra a habitual tradição britânica de séries de seis ou sete episódios) que “esticou a corda”. O erro foi corrigido nas séries seguintes, mas o mal estava feito. Da Madona Caída com as Grandes Maminhas, contudo, não ficámos livres. Aqui para nós, ainda bem. (jornal Público – 29.Agos.2016)

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Monges budistas e futebol. Quando o lado humano vence o espiritual.


Uma novidade nos Jogos. Aldeia Olímpica tem um centro religioso para prestar apoio espiritual aos atletas que o desejem
Quatro monges budistas caminhavam vagarosamente junto à entrada para a Aldeia Olímpica, onde desde o início dos Jogos está a funcionar um centro inter-religioso para receber atletas, treinadores ou voluntários que procurem apoio espiritual. Naquela terça-feira, estava também presente o mestre Nitiguen Takassaky, a quem os outros monges foram mostrar uma réplica de um dos quartos que estão disponíveis para os atletas nos 3604 apartamentos da Aldeia. A acompanhar o arcebispo seguem os monges Jyunsho, Eishin e... Roberto, nome que denuncia aquilo que já se percebera após a primeira troca de palavras. Todos eles são brasileiros, de origem japonesa.
A ligação familiar ao Japão remonta há 108 anos, quando o navio Kasato-maru aportou em Santos. Seguia a bordo a primeira vaga de emigrantes japoneses no Brasil e, entre eles, o monge Genju Ibaragui, considerado o divulgador do budismo primordial, linhagem que os monges da Aldeia Olímpica praticam. "A nossa função aqui é dar apoio espiritual aos atletas. Eles passam por muitas provas e ficam meses longe da família. Há a pressão do treinador, dos habitantes dos seus países, dos próprios Jogos, e no final só um é que vai poder ganhar. Mesmo com todo o treino físico e mental que possam fazer, nestas horas o sentimento dos atletas pode ser abalado, principalmente aqueles que estão aqui pela primeira vez. Por isso, conhecendo essa realidade, o Comité Olímpico Internacional (COI) criou este centro religioso para que possa ser prestado aos atletas, treinadores e até voluntários o apoio espiritual que precisem", conta ao DN Jyunsho Yoshikawa.
O budismo é uma das cinco religiões que estão no centro, juntamente com representantes cristãos (católicos e protestantes), muçulmanos, judeus e hindus. A seleção feita pelo COI foi baseada em estatística. Ficaram de fora, por exemplo, religiões de matiz africana, como o candomblé, com vários praticantes no Brasil. "Se for necessário atender a um outro credo existe uma lista de religiosos brasileiros a quem o centro recorre. Estão todos credenciados e prontos para vir para cá", garante Jyunsho Yoshikawa. O centro funciona das 07.00 às 22.00 e, fora desse horário, em regime de piquete, pois "nunca se sabe quando um atleta vai precisar de apoio espiritual".
Uma oração na hora
Os monges também não sabem quantas consultas já deram durante a sua estada na Aldeia Olímpica, mas dizem que muito do seu trabalho acaba por ser feito quando saem do centro inter-religioso e caminham pelos espaços destinados ao atletas. "Muitas vezes somos solicitados no meio da rua para darmos a nossa bênção, fazer uma oração. Por exemplo, hoje fomos abordados por uma saltadora mexicana [Yvone Trevino] e por um atleta dominicano de taekwondo [um dos dois representantes do país é Luisito Pie, o qual eliminou na quarta-feira o português Rui Bragança]. Por vezes, estão ali a treinar e pedem uma oração na hora", explica Jyunsho, acrescentando que não são apenas procurados por budistas: "Há também quem já tenha alguma informação sobre o que fazemos e que, aqui, quando não consegue encontrar o conforto mental que precisa, recorra a nós para experimentar algo diferente."
Como bons brasileiros, o futebol acaba por se juntar à conversa. "Eu ainda jogo futebol com os meus amigos. Sou adepto do São Paulo", apressa-se a dizer o arcebispo, de 56 anos. Os outros monges também revelam a sua preferência: há mais um adepto do São Paulo, outro do Palmeiras e um do Curitiba, a sua terra natal. "Ele é de Curitiba, mas também é são-paulino", atira o arcebispo. "Pode parar! Sou Curitiba mesmo. A minha equipa pode dar-me muitas tristezas, mas sou Curitiba até ao fim", responde Roberto Tadokoro. O futebol é um jogo de paixões, em que muitas vezes os ânimos se exaltam. E nem os monges escapam a esse sentimento. "É nesse momento que demonstramos o nosso lado humano em vez do espiritual", diz Roberto. O arcebispo junta mais lenha à fogueira e aponta para Jyunsho, o carioca que é adepto do Palmeiras: "Esse daí até chora. Copiosamente." Gargalhada geral.
Para já, o balanço que fazem da sua atividade no centro é francamente positivo. "Para nós é uma experiência nova e muito gratificante. É também um pouco pesada, porque temos de ter disponibilidade a toda a hora. Mas o mais compensador é conhecer pessoas do mundo inteiro, e isso permite-nos divulgar os nossos ensinamentos", lembra Nitiguen Takassaky.
A terminar, Jyunsho arrisca uma explicação para o sucesso da iniciativa na Aldeia Olímpica: "O ensinamento budista trabalha a alma e encaixa perfeitamente neste ambiente olímpico, em que todos os atletas são iguais. E alma não tem idade, sexo ou raça."

No Rio de Janeiro (DN – 19.Ago.2016)

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Um triângulo que afinal é um quadrado.


Se for uma história de amor, "O Fim da Aventura", de Graham Greene, é uma história de amor que, no fundo, é sobre a fé. Embora também seja uma história de fé que, no fundo, é sobre o amor.
Oh, não há dúvida de que Sarah tinha outros amantes. Antes e depois de Bendrix - talvez até Dunstan, esse alto funcionário público, chefe de Henry, que não chegamos mais do que a entrever. Mas se o triângulo amoroso formado por Maurice Bendrix, Sarah Miles e o entediante marido desta, Henry, se torna a certa altura um quadrado, o quarto vértice não está ali para perder. Não podemos procurá-lo no mundo do concreto. Não podemos sequer tocar-lhe. Chamamos-lhe Deus porque é isso que ele é: o deus cristão, o deus do catolicismo, e é nas suas mãos, para desgraça de todos os demais, que Sarah coloca o coração.
A obra-prima de Graham Greene, publicada originalmente em 1951, regressa às livrarias no momento ideal, porque todos os momentos são ideais para os grandes marcos da literatura ocidental e do mundo. Traz agora a chancela da Dom Quixote, mas a mesma tradução e o mesmo prefácio com que Jorge de Sena o apresentou a Portugal, em 1953, com edição da Estúdios Cor.
Foi filmado duas vezes: a primeira em 1955, por Edward Dmytryk, com Deborah Kerr, Van Johnson e Peter Cushing nos principais papéis; e a segunda em 1999, por Neil Jordan, com Julianne Moore, Ralph Fiennes e Stephen Rea. Mas, embora a linguagem do cinema seja outra e cada obra contenha a sua integridade para lá da daquela em que se baseia, em nenhum dos casos atinge a visceralidade e - sobretudo - o dilema existencial do romance de Greene.
Na verdade, O Fim da Aventura não é uma história de amor, tanto quanto uma história de ódio. Isso mesmo declara Bendrix, logo no arranque da sua parte do jogo polifónico: "E assim é isto um memorial de ódio muito mais do que de amor." Se for uma história de amor, O Fim da Aventura é uma história de amor que, no fundo, é sobre a fé. Embora também seja uma história de fé que, no fundo, é sobre o amor.
De qualquer maneira, não tem princípio nem fim, como anunciam as magistrais palavras com que Graham Greene o abre: começa num momento que o autor escolhe arbitrariamente, ou (melhor ainda) lhe é imposto, como se uma mão lhe segurasse o braço. Porque também Deus é desprovido de origem e destino, e contar a sua história, a pobres-diabos de fraco entendimento como são os homens, exige a sempre vil convenção da técnica.
A intriga centra-se na relação clandestina entre Maurice, um escritor de razoável sucesso crítico e fracasso comercial, e Sarah, a mulher de um burocrata de que o primeiro se aproxima para preparar uma personagem do romance que tem em curso. Muito em breve, porém, deixam de ser as rotinas do funcionário público a preencher o seu dia-a-dia. Entrada em cena Sarah, arrebatadoramente bela, os amantes não tardam a consumar-se, num romance tórrido a que o blitz de Londres (1940-41) serve ao mesmo tempo de pano de fundo e de manobra de diversão.
De repente, porém, ela interrompe a relação. Maurice acabara de ficar parcialmente preso debaixo da porta de um apartamento que as bombas nazis haviam feito explodir. Ao levantar-se, atordoado, ele percebe que o amor se concluiu. E só dois anos de perda e luto depois, ao encontrar-se casualmente na rua com Henry, que lhe pede ajuda no despiste de eventuais derivas adúlteras da mulher, vem a contratar o detetive privado que fará luz, a ele e ao leitor, sobre a verdadeira natureza do fim da sua aventura.
A história é contada num mosaico de analepses e prolepses e alternando a consciência de Maurice com o diário de Sarah e fugas de diferentes perfis às interioridades de Henry, Parkis (o detetive privado) ou um certo Smythe, monstruosa figura física e dedicado prosélito ateísta, de métodos - bem vistas as coisas - não muito distintos dos dos contemporâneos vendedores do ama-te-a--ti-próprio e restantes bem-aventuranças do pós-modernismo desesperado.
Mas, se é indiscutível que constitui a sua mais bem conseguida experiência de interceção entre os muitos géneros que praticou - o romance de espionagem, o romance de entretenimento, o romance político, o romance polemista, o romance religioso -, a verdade é que nunca, nele, Graham Greene morde o seu próprio isco (quão tentador terá sido oferecer a Parkis o protagonismo de um desenlace inesperado, talvez motivado pelo amor também...), mantendo-se fiel ao plano: a impossibilidade daquele amor a partir da entrada do amante omnipotente em cena e, perante essa omnipotência, a inevitabilidade da fé, ainda que disfarçada do ódio mais demolidor e extenuante.
"Apanhei a fé como quem apanha uma doença", diz Sarah, numa carta deixada a Maurice. "Caí nos braços dela, como caíra nos do amor. Nunca amara como te amei a ti, e nunca acreditei em nada como acredito agora. Tenho a certeza. Nunca tinha tido uma certeza."
Um romance poderoso, útil para compreender a fé católica do século XXI como todas as fés antes e depois dela, e que nas edições anglo-saxónicas Greene dedica a Catherine (ou apenas "C.", no original britânico). Isto é: Lady Catherine Walston, sua afilhada e amante, e que, como Sarah Miles, em vez de deixar o marido, escolheu a santidade.

Sarah escolheu-a por amor. Talvez a realidade não tenha sido tão reconfortante. (DN – 13 Ago 2016)

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Há 17 novas presenças na Feira do Livro do Porto, incluindo a Livraria Lello.


Quando abrir as portas, no dia 2 de Setembro, a Feira do Livro do Porto vai ter 17 novas ofertas para quem passar pelos jardins do Palácio de Cristal, até ao dia 18. Entre as novidades está a Livraria Lello, que regressa à feira e se vai instalar, pela primeira vez, na Avenida das Tílias, desde que a Câmara do Porto assumiu, em 2014, a organização do evento.
Entre os 131 pavilhões que vão estar na feira deste ano há outros rostos novos, como a Chiado Editora, a Bubok, o jornal Público ou a Ordem dos Arquitectos. Ao todo estarão nos jardins do Palácio de Cristal, numa disposição muito semelhante à do ano passado, 69 editoras, 26 livrarias, 16 alfarrabistas, 12 instituições e oito distribuidoras.
Sob o tema “A Ligação”, a feira irá homenagear este ano o escritor Mário Cláudio e será acompanhada da habitual programação cultural, cuja apresentação está agendada para 23 de Agosto.
Este ano, outra das novidades da feira são os horários que, fruto dos resultados obtidos nos inquéritos feitos aos participantes e da percepção da autarquia da afluência do público, sofrerão alguns ajustes. Agora, se trabalha nas proximidades do Pavilhão Rosa Mota e gostaria de aproveitar a hora do almoço para comprar um livro, já o poderá fazer, porque a Feira do Livro vai passar a abrir as portas, diariamente, ao meio-dia. À noite, por outro lado, pode ter que antecipar um pouco a visita, pelo menos entre domingo e quinta-feira, já que ela vai fechar mais cedo uma hora, às 21h. Às sextas-feiras e sábado mantém-se o encerramento às 23h.
A Câmara do Porto assume sozinha a organização da Feira do Livro da cidade desde 2014, depois de uma ruptura com a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) que, à semelhança do que ainda acontece em Lisboa, era também responsável pela organização da feira do Porto. Em anos anteriores já tinha havido uma série de conflitos entre a câmara e a APEL, o que levou a que, em 2013, a cidade nem sequer tivesse Feira do Livro, tendo organizado, em alternativa, um evento mais pequeno, o Letras na Avenida, na Avenida dos Aliados, onde a feira se instalara nos anos anteriores.

Desde 2014 que a feira se mudou para os jardins do Palácio de Cristal, onde tem recebido, segundo a autarquia, mais de 200 mil visitantes por ano. O período escolhido para a sua realização também foi alterado, passando de Maio para Setembro. O evento passou a ser marcado por um tema e pela homenagem a escritores marcantes da cidade, tendo-se centrado, no primeiro ano, na figura de Vasco Graça Moura (o tema era “Liberdade e Futuro”) e, no ano passado, de Agustina Bessa-Luís (“Felicidade”). Este ano o romancista portuense Mário Cláudio, vencedor de diferentes prémios, incluindo o Grande Prémio de Romance e Novela da APE/DGLAB 2014 com Retrato de Rapaz é o homenageado devendo, como tem sido habitual, uma tília baptizada simbolicamente com o seu nome. (Jornal Público – 10 Agosto 2016)

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Chance Glasco, o criador de Call of Duty, já só joga jogos vintage.


Cresceu indeciso entre ser astronauta, jogador de basebol ou designer de videojogos. Mas as mais de 90 milhões de cópias de videojogos vendidas em todo o mundo e os 3,6 mil milhões de euros em receitas parecem dar-lhe razão na escolha. O nome Chance Glasco pode não lhe dizer nada, mas se falarmos de Call of Duty, da empresa Infinity Ward, já compreenderá os números. Aos 22 anos, Glasco tornou-se o criador de um dos jogos de first-person shooter mais famosos de sempre, onde as missões de guerra decorrem sempre na primeira pessoa e a câmara nunca sai dos olhos do jogador. Actualmente a viver no Rio de Janeiro, o norte-americano Glasco, 35 anos, tem saltado de conferência em conferência, de país em país, e é em Lisboa que o encontramos, a convite da escola Restart. 
A inspiração para o Call of Duty chega-lhe da infância. Passou o tempo a construir fortes no meio do campo que lhe rodeava a casa nos Estados Unidos. Com três amigos que o acompanharam até à faculdade, desenvolveu personagens e histórias que inspiraram o jogo. Hoje, o co-fundador da Infinity Ward abandonou a empresa e já nem sequer joga o franchise que ajudou a criar. Os seus favoritos são os primeiros dois jogos, Call of Duty eCall of Duty 2, cuja história se inspira na Segunda Guerra Mundial, mas desde então a desilusão com a indústria dos videojogos é real e por isso, nos tempos livres, virou-se para os jogos vintage.
Quando joga online mantém-se anónimo, até porque “já não é tão bom como era”. Além disso, “o facto de alguém ser um engenheiro automóvel não o torna um bom piloto”, sublinha. Não assume nenhuma posição em particular, mas não gosta de jogar no lugar do atirador. Além disso, prefere jogar com amigos, porque considera que a comunicação durante o jogo torna-o “muito mais interessante”. Numa conversa sobre o passado, Chance vira-se para o futuro da indústria que, acredita, passará pela realidade virtual. Com essa certeza, apostou na criação de uma empresa que desenvolve simulações para plataformas de realidade virtual, a Doghead Simulations.
Com apenas 15 anos, arriscou aquela que foi a sua primeira tentativa de lançar um videojogo, mas sem sucesso. Call of Duty chegou sete anos depois e tornou-se um dos videojogos mais famosos do mundo, mas Chance não leva “demasiado a sério” nem as distinções nem as críticas dos fãs.
O trailer do novo jogo da saga, Call of Duty – Infinity Warfare, que saiu em Maio deste ano e já não foi feito por ele, é o segundo vídeo com mais “não gosto” no YouTube. São mais de três milhões que chumbam o vídeo contra as poucas mais de três mil dezenas que deram nota positiva ao que já se conhece sobre o novo jogo. Pior do que este trailer, só mesmo o videoclipe da música Baby de Justin Bieber. O que correu mal? “Nada. Quando algo se torna tão falado e famoso, há sempre alguém que vai odiar." O mesmo acontece quando lhe falam da distinção conquistada há dois anos, quando o Guiness World Records considerou Call of Duty a melhor série de jogos defirst person shooter de sempre, derrotando Grand Theft Auto,Pokémon ou Super Mário. “O que é que torna uma coisa a melhor do mundo? Ninguém vai discutir qual é a melhor cor”, desvaloriza.
Uma das perguntas que mais lhe fazem é como se sente por ser odiado por tantas mães, que vêem os filhos agarrados ao computador, horas a fio, empenhados “naquela” missão, a adiar o jantar ou as horas de estudo porque “não podem fazer uma pausa" na sua missão de "destruir o inimigo”. A resposta chega sem dar espaço para contra-argumentações. “Os pais têm de ser pais. Os jogos estão classificados como conteúdo para maiores de idade e existe uma razão para que essa classificação exista”, justifica. “Ninguém diz a um obeso que a doença irá ser tratada tornando a comida menos saborosa. E o mesmo se aplica aos jogos. O jogo foi pensado para adultos e foi desenvolvido para ser um jogo divertido." Não faz sentido diminuir a sua qualidade para se combaterem eventuais vícios, continua Glasco.
Quando deixou a Infinity Ward, a equipa estava a trabalhar numa versão espacial do jogo, mas Glasco, cuja varanda tinha vista para o Centro Espacial John F. Kennedy, na Florida, e apesar das suas antigas ambições de “homem do espaço”, chumbou a proposta. “Estava farto do jogo e por isso pensei: vamos ser ridículos. Vamos colocar dinossauros gigantes, pessoas a montarem dinossauros, armas de laser”, justifica. O criador de Call of Dutyconfessa que por esta altura já sabia que iria desistir da empresa, mas não o quis fazer “sem deixar a melhor ideia de sempre”, pelo menos para ele.
“Falta inovação na indústria de jogos Triple A”,diz referindo-se à classificação que distingue os jogos de elevada qualidade. “Passa-se o mesmo na indústria da música. Se lançares um álbum muito popular, se venderes três milhões de cópias o mais provável é que te peçam para fazer um álbum igual. E foi isso que aconteceu com o Call of Duty e todos os outros jogos Triple A”, conta. “A partir do momento em que há muito dinheiro investido, as probabilidades de os programadores criarem conteúdo inovador diminui porque o risco é maior.”



Para Glasco, Modern Warfare 2, lançado em Novembro de 2009, foi “o último jogo com cenários realistícos” da série Call of Duty, e o último que se lembra de ter jogado. Desde então, todas as versões lançadas parecem ser feitas pelo “Michael Bay [realizador de Transformers ] dos videojogos”, isto é: cheias de explosões e efeitos especiais e com dispendiosos orçamentos de produção. Desiludido com o rumo do jogo, Glasco decidiu sair da Infinity Ward da Activision e dedicou-se ao desenvolvimento de aplicações que têm por base cenários de realidade virtual.
Para já, o primeiro software em que está a trabalhar está a ser desenvolvido para ser utilizado por grandes empresas. Para Chance Glasco, a realidade virtual é o presente da comunicação. Se for necessário marcar uma reunião, em vez de se gastar dinheiro em deslocações pode “marcar-se esse encontro na realidade virtual”, sugere o antigo criador de videojogos. Fala naturalmente, como se a realidade virtual fosse uma conhecida e movimentada avenida na cidade, e defende que a realidade virtual deverá começar a ser adaptada de uma forma generalizada num curto período de tempo.
“O facto de vermos as nossas mãos personificadas no nosso avatar permite-nos expressarmo-nos de uma forma muito mais natural através da linguagem corporal." Acredita que esta maneira de comunicar é mais natural do que um encontro feito por Skype, por exemplo. “E isso é fundamental até mesmo para um ambiente mais saudável entre equipas de trabalho”, defende. “As pessoas tendem a pensar a realidade virtual como uma funcionalidade exclusiva dos videojogos”, o que é bastante limitado. “A realidade virtual permite-nos trabalhar com pessoas que estejam doentes, tratar traumas ou até mesmo apostar na melhoria de condições no ensino à distância”, exemplifica. 

Jornal Público - Julho 2016

terça-feira, 12 de julho de 2016

O texto que eu não queria escrever e que o Ronaldo me obrigou a escrever.


O que há mais a dizer sobre um homem do qual sabemos e já vimos tudo?

Nasceu pobre no Funchal, comeu apenas uma banana e um iogurte e uma sandes durante vários dias inteiros, jogou no Andorinhas e depois no Nacional e depois no Sporting, pôs pesos nos tornozelos, quis ter mais força nas pernas do que o André Cruz, partiu os rins ao John O'Shea e saiu do Sporting para o Manchester United, voltou a partir os rins ao John O'Shea nos treinos e em seguida a todos os outros que lhe aparecereram pela frente em Inglaterra, esculpiu um físico de nadador olímpico, deixou-se de fintas e passou a marcar golos, inventou um livre, ganhou uma Liga dos Campeões e a primeira Bola de Ouro, foi para o Real Madrid e teve 90 mil pessoas no estádio e o mundo inteiro a vê-lo pela TV a gritar “hala Madrid!”, rebentou com todos os recordes do Di Stéfano e do Hugo Sánchez e do Raúl no Real Madrid, conquistou outras duas Ligas dos Campeões e outras duas Bolas de Ouro, gritou “Siiiiii!” à frente do filho que entretanto teve, renovou contrato por valores astronómicos, esteve no Euro 2004, Mundial 2006, Euro 2008, Mundial 2010, Euro 2012, Mundial 2014 (e está no Euro 2016), ultrapassou o Figo e o Eusébio e o Pauleta – carregou tantas vezes Portugal e os seus clubes às costas com golos e exibições inacreditáveis que se torna dificil datar duas ou três delas, talvez aqueles três golos à Suécia que nos levou ao Mundial 2014 e aqueles dois golos à Arménia para este Euro 2016.
Depois disto tudo, tudo o que eu não queria era escrever sobre ele, porque já quase tudo foi dito, escrito, revisto, revisitado, inventado e reinventado, pisado e reinventado - e fico-me por aqui nos verbos que querem dizer praticamente a mesma coisa.
Convenhamos, há uma tendência generalizada para a redundância e navegação na maionese e repetição temática quando se escreve sobre Cristiano Ronaldo. É que já ouvimos muitas vezes uma história semelhante a esta, não é verdade?
A do homem que está em baixo, agarrado a um joelho ou a uma perna, que está cansado e maldisposto e rezingão, que não dá uma para a caixa e depois põe duas na gaveta algumas horas após um encontro imediato entre um microfone e um charco, que se vai abaixo outra vez quando falha com a baliza escancarada para enfim se levantar como Cristo, ao terceiro jogo, num pulo que o faz levitar e pairar e parar no tempo e o tempo como o Michael Jordan – e resolver todos os problemas que pareciam irresolúveis até à ressureição. E que ainda acrescenta um remate que resulta numa assistência para outro golo de um colega de equipa que corre para ele, todo contente, num abraço a dois que rapidamente passa a três, quatro, dez, onze, vinte e três e uns quantos mais, enfim, o peso de uma equipa e de uma Federação e de um país em cima do único tipo capaz de desimpedir um beco e criar uma estrada ao pontapé e à cabeçada.
Deem-lhe uma bola e um ponto de apoio e ele fará o que Arquimedes disse que faria: mover o mundo. Pode começar pela Europa.

(Expresso – Pedro Candeias – Julho 2016)

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Salgueiro Maia: A saga de um capitão de Abril.


http://expresso.sapo.pt/multimedia/2016-07-06-O-capitao-que-quase-enganou-a-tristeza
(video)

No momento em que se encontrava sozinho no Terreiro do Paço, frente a frente com as tropas de Cavalaria 7, leais ao governo, com argumentos de revolucionário e uma granada no bolso (como último e extremo recurso), Salgueiro Maia talvez não tivesse idéia do lugar que aquele “teatro de operações” ia lhe conferindo, ao longo daquele 25 de abril, dentro da História Contemporânea portuguesa.
A “Revolução dos Cravos” não foi obra de um único homem, mas sim de todo o povo português, civil ou militar. Da mesma forma, vários foram os militares envolvidos na sua concretização. No entanto, nenhum outro representa hoje o “espírito do 25 de abril” como ele. Talvez por ter sido ele o comandante direto da coluna que marchou de Santarém até Lisboa, no cerco que determinou a rendição de uma ditadura de mais de quatro décadas. Talvez ainda por ser ele dono de um caráter e personalidade íntegros, qualidades que em si já encerram os valores de um país que se ambicionava construir.
“Era uma pessoa de caráter forte e um grande poder de decisão. Mas também era dócil, muito alegre. Gostava de ajudar os outros e de reunir os amigos por qualquer motivo”, conta Natércia Maia. A viúva do capitão ainda vive e dá aulas em Santarém, cidade à 78 Km de Lisboa, local onde o conheceu, recém-chegado de Moçambique. Corria o ano de 1969 e a guerra colonial recrudescia. Um ano depois os dois se casam e ele começa a se preparar para uma nova incursão em continente africano, agora na Guiné.
            “Quando ele foi para Moçambique, havia aquele espírito de cavaleiro, de salvar a nação, e aquelas idéias incutidas pela nossa formação e, em especial, pela Academia Militar. Mas quando lá chegou, viu que realmente aqueles ideais não faziam sentido”, lembra Natércia.
            “Ele me contou que tinha entrado num café para tomar uma cerveja e que ouviu de um português daquele continente, que estava lá a dizer: Então já não há militares que cheguem para ir ao norte de Moçambique e é preciso também agora nossos filhos irem?”. 
             Quando Salgueiro Maia regressa da Guiné, em outubro de 1973, passa a integrar a comissão coordenadora do Movimento das Forças Armadas (MFA) como um dos três delegados da Cavalaria. À ele foi dada a missão de comandar a coluna militar que, partindo de Santarém, se uniria à demais unidades em Lisboa. Além disso, também foi encarregado de preparar material e viaturas, e ainda organizar os quadros que participariam da marcha rumo à capital.
            A mensagem confirmando a data da operação chega. O capitão, de imediato, inicia os preparativos, que só terminam às três e vinte da madrugada de 25 de abril, quando as viaturas e os blindados Chaimite partem pela estrada escura.
            “Na véspera da revolução ele arranjou um saquinho com lenços (tinha sinusite) e cigarrilhas. Nós não dissemos nada, mas eu interpretei aquilo como uma certeza de vitória. Se tudo corresse bem ele, que normalmente não fumava, teria uma cigarrilha para festejar o acontecimento”, revela a viúva, atestando a confiança que o marido tinha no sucesso da operação. 
            Chegando ao Terreiro do Paço, em Lisboa, o comandante da coluna mantém-se frio em meio à tensão, provocada pela expectativa de combate com as tropas fiéis ao governo marcelista. Forças da GNR (Guarda Nacional Republicana) e da Cavalaria 7 seguiam para o local, enquanto que uma fragata, em manobras de intimidação nas águas do Tejo, ameaçava abrir fogo. Mas o problema acaba sendo contornado de uma maneira inesperada: os oficiais e sargentos do CC 7, muitos dos quais antigos colegas e ex-instruendos de Maia, passam para o lado dos revolucionários. O navio de guerra  também “deita as armas” com a intervenção de um oficial do MFA. 
            Não obstante a falta de informações, Salgueiro Maia acata ordens do comandante Otelo Saraiva de Carvalho e segue com uma parte da tropa para o Largo do Carmo, com o objetivo de cercar o quartel da Guarda Nacional, para onde se refugiara o chefe do governo, Marcelo Caetano.
Com um megafone, Maia dá um ultimato de rendição. Este pode ser considerado um dos momentos de maior tensão na história da operação. As horas iam passando e o silêncio dentro do quartel do Carmo desafiava a sagacidade do jovem capitão, na altura com menos de trinta anos.
Por volta das 17hs do dia 25, cansado de esperar, resolve entrar e falar, ele mesmo, com o comandante do quartel. Este por sua vez o leva até Marcelo Caetano que, visivelmente abatido (mas mantendo uma “postura de dignidade”, como gostava de lembrar Maia), aceita os termo da rendição, exigindo no entanto que o governo fosse entregue a um oficial superior. O general António de Spínola é então chamado e recebe o comando do governo provisório, a Junta da Salvação Nacional, cujo objetivo principal seria preparar a nação para a redemocratização e, como conseqüência futura, para as eleições livres.
            Em Santarém, depois de assistir a festa da população que saudava o regresso da coluna vitoriosa, o professor Luís Eugênio Martins Correia era convocado para tomar posse na primeira comissão administrativa da Câmara Municipal. Seu nome figurava entre outros sete de uma lista feita pelos capitães Maia e Correia Bernardo. São também dessa época as recordações que tem de Maia:
“Era um indivíduo cultíssimo, formado em História. Discutíamos muito sobre filosofia”, recorda o ex-vereador, hoje com 77 anos.
            “Em conversas, gostava de lembrar que na noite da revolução eu dormia e que, mesmo morando muito perto da estrada que conduz à Lisboa, não pude ouvir o barulho dos blindados e das viaturas passando. Costumo dizer que o Salgueiro Maia passou por meio do meu sono, e que quando regressou trazia a liberdade dentro dos carros.”


O homem antes do herói
            Fernando José Salgueiro Maia nasceu no dia 1 de julho de 1944, em Castelo de Vide (vila histórica da região do Alto Alentejo), onde viveu os primeiros anos de sua vida.
Filho de um ferroviário, Francisco da Luz Maia, Fernando José ficou órfão de mãe (D. Francisca Silvério Salgueiro) ainda muito novo. Devido a profissão do pai, várias foram as cidades nas quais morou: Tomar, Leiria, Pombal, Valença, Santarém... sem tempo suficiente para criar raízes em qualquer uma delas.
Concluído o 7º ano do Liceu, em Leiria, ingressou na Academia Militar em outubro de 1964. A guerra colonial, que havia começado em 1961, àquela altura já se estendia às regiões de Angola, Moçambique e Guiné. No final de 1966 apresenta-se na Escola Prática de Cavalaria, seguindo um tempo depois para sua primeira comissão em Moçambique.
“O curso da Academia tinha quatro anos, mas como havia falta de capitães o governo criou cursos intensivos de apenas três. Depois se fazia o estágio na própria guerra. Foi o que aconteceu com meu marido”, explica Natércia Maia. A partir daí, os caminhos da revolução começaram a ser trilhados. A História então se encarregaria do resto.
Mas apesar de sua devoção à causa, Salgueiro Maia passou a incomodar os quadros superiores de Exército, com seu espírito crítico e independente. Rejeitou cargos e privilégios dentro do governo que ajudou a instaurar. Desejava continuar apenas como um operacional, dentro da Escola Prática de Cavalaria, o que não veio a acontecer. Foi enviado para os Açores e posteriormente para outras unidades militares, desempenhando sempre tarefas burocráticas dentro de escritórios, às quais abominava. “Mesmo assim cumpriu com dedicação todas suas tarefas e missões”, orgulha-se Natércia.
“A pretexto do cumprimento de escalas, ele e muitos outros capitães foram designados para exercer funções, não menos honradas, mas de menor importância para militares que haviam operado uma revolução”, opina o general e ex-capitão do MFA Pezarat Correia, que conclui lacônico:
“A verdade é que os oficiais de alta patente das Forças Armadas, quando retomaram seus postos depois do 25 de abril, ficaram ressentidos com o fato de a revolução ter sido comandada por capitães, o que acontecia pela primeira vez na história dos golpes militares em Portugal.”
Fernando José Salgueiro Maia faleceu no dia 4 de abril de 1992, com 47 anos, abatido pelo câncer contra o qual vinha lutando desde 1989. O militar, que àquela altura ocupava o posto de tenente-coronel, deixou ainda dois filhos, Catarina e Filipe.

(retirado de: http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=RV2)

terça-feira, 21 de junho de 2016

Entre o património e a natureza, o fascínio da música ibérica.


A redescoberta dos compositores portugueses activos em Espanha no século XVII pelo maestro Albert Recasens e um passeio pelas ribeiras de Terges e Cobres no vale do Guadiana no encerramento do Festival Terras sem Sombra.
A estreia em Portugal do agrupamento La Grande Chapelle, dirigido pelo maestro e musicólogo Albert Recasens, com o programa “Inesperado Resgate: Compositores Portugueses na Espanha do Siglo de Oro”, levou no passado sábado um amplo público à Sé de Beja, sugestivo cenário barroco para a audição da música de Manuel Machado (ca. 1590-1646), Fr. Manuel Correa (ca. 1600-1653), Fr. Filipe da Madre de Deus (ca. 1630- ca. 1687) e Juan Hidalgo (1614-1685) em interpretações que combinaram rigor histórico e impacto expressivo. Este foi o último concerto da 12.ª edição do Festival de Música Sacra do Baixo Alentejo – Terras sem Sombra (FTSS), este ano sob o tema Torna-Viagem: o Brasil, a África e a Europa – Da Idade Média ao Século XX  (ver PÚBLICO de 19 de Novembro de 2015).
Organizado pelo Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, o FTSS assenta em três pilares que articulam a divulgação do património arquitectónico religioso com concertos e acções no âmbito da biodiversidade. Assim, antes do concerto de sábado foi assinalado o fim das obras de restauro da Igreja de Nossa Senhora ao Pé da Cruz, com o apoio da associação Portas do Território, a qual constituiu também uma importante parceria nas recentes obras de requalificação da Sé de Beja.
Esta foi a segunda edição programada pelo crítico musical Juan Ángel Vela del Campo —  o terceiro director artístico, depois de Filipe Faria (2003-2010) e Paolo Pinamonti (2011-2014) — pelo que os intercâmbios ibéricos estiveram em destaque, com um exemplo emblemático no programa de La Grande Chapelle, dedicado à música do tempo da monarquia dual (1580-1640). Com uma importante discografia composta por programas temáticos em torno da música ibérica dos séculos XVI a XVIII, este agrupamento dispõe de uma etiqueta própria (Lauda) criada em 2005.
O seu último CD, Música para el Rey Planeta, é dedicado a Juan Hidalgo, mestre da câmara real de Felipe IV e Carlos II de Espanha e um dos protagonistas do concerto de Beja, juntamente com os portugueses Manuel Machado (harpista e compositor ao serviço de Filipe IV em Madrid), Fr. Manuel Correa (carmelita calçado em Madrid e mestre de capela das catedrais de Sigüenza e Saragoça) e Fr. Felipe da Madre de Deus, activo em Sevilha e nas cortes de D. João IV e Afonso VI, já depois da Restauração. Vilancicos e tonos humanos e a lo divino, ou seja, de carácter profano ou sacro, foram criteriosamente encadeados, tendo em conta contrastes de carácter, variedade de texturas (mais contrapontísticas ou mais concertantes) e escolhas tímbricas. Quatro cantores com fortes afinidades com este repertório (ainda que o tenor tenha optado por uma abordagem mais lírica), entre os quais se destacou a soprano Eugenia Boix, pelo timbre cintilante e clareza na transmissão do texto, apoiados por instrumentistas experientes nos códigos da música renascentista e barroca proporcionaram interpretações depuradas de grande expressividade e eloquência retórica. Obras mais contemplativas como Ojos mios qué teneis? e Y las sombras de la noche, de Correa — uma revelação face aos mais conhecidos Machado e Hidalgo —, contrastaram com a graciosidade rítmica e a teatralidade das páginas de Hidalgo e Madre de Deus. Recasens dirigiu com precisão, elegância e sentido de estilo, deixando os seus músicos expressar-se de forma autónoma nas peças mais camarísticas e nas versões instrumentais.
Passeios em Terras sem Sombra

No domingo, sob um sol abrasador, mais de 50 pessoas realizaram o percurso que conduziu às ribeiras de Terges e Cobres, cujos cursos de água contribuem para criar verdadeiros “oásis” de biodiversidade. O passeio foi orientado pelo biólogo Pedro Rocha e terminou na unidade de agroturismo Xistos, onde foi realizada uma homenagem a Armando Sevinate Pinto (1946-2015), primeiro presidente do conselho de curadores do FTSS, e a Manuel de Castro e Brito (1950-1916), outro amigo do festival. “Um dos aspectos primordiais é o convívio entre músicos, espectadores e convidados, a experiência não se esgota na ida ao concerto”, disse ao PÚBLICO o director-geral, José António Falcão. “O público tem vindo a crescer, temos mais jovens e cada vez mais estrangeiros”, conta. Refere também que está a ser realizado um estudo sobre o festival ligado ao turismo ambiental. (Jornal Público – 21 Jun 2016)

quinta-feira, 9 de junho de 2016

JUNE IN LISBON.


Há quatro motivos para achar que junho é o melhor mês do ano. O primeiro é que faço anos – e desculpem o egocentrismo, mas comemorar aniversários quando o calor começa a chegar mas ainda ninguém foi de férias é passaporte para celebrações épicas, na minha vida a passagem de ano sempre se fez com alegria, dança, muita festa. Depois há estas três coisas: os Santos Populares, o cheiro a sardinha nas ruas e a Feira do Livro. São coisas que me fazem sentir lisboeta, traços da minha autenticidade citadina, mesmo que tenha crescido fora. Junho sempre foi o mês do esplendor alfacinha, os dias em que os cidadãos se lembram de quão amável é a Polis que ocupam o resto do ano, em que a urbe se mostra de saias curtas, camisas de alças e sorriso franco. Não há outra altura em que me lembre tantas vezes do quanto amo esta cidade.
O meu problema é este: começo a ter sérias dúvidas de estar a viver um amor correspondido. E posso explicar assim: cobraram-me no outro dia dois euros por uma sardinha assada e uma fatia de pão. Protestei e ouvi a resposta que não queria. «Queres, queres, não queres, há quem queira.» E havia. Dois alemães que lambuzavam os dedos em Alfama numa barraca no largo de São Miguel, a debicar o peixe como eu queria fazer, como eu costumava fazer, e há meia dúzia de anos isso era privilégio por 50 cêntimos.
No domingo passado paguei 1,60 euros por uma cerveja na Feira do Livro. Vinte centilitros sem lugar sentado, consomes de pé e tens sorte. «Queres, queres, não queres, há quem queira.» Dei uma volta pelas carrinhas de comida, vi que que as roulotes tinham passado a chamar-se food trucks e vendiam coisas cem por cento orgânicas. Obrigado. Vi um wrap de alface com queijo ser cobrado a 5,50 euros e um hambúrguer a 6,50, com queijo, alface e tomate. Havia livros do dia bem mais baratos, sim, promoções nas estantes, que é isso a Feira. Mas a Feira, que era de toda a gente, está agora a dizer que se tornou coisa de poucos, palco de privilegiados e vaidosos, desses que comem wraps cem por cento orgânicos, duas folhas de alface e uma fatia de queijo a 5,50 euros. Preços de aeroporto, pois, afinal para que querem os pobres ler?
Em 1975, Gabriel Garcìa Márquez enviou um postal ao seu amigo Juan Gossaín onde dizia que Lisboa era a maior aldeia do mundo. E é isso que explica a força que, ainda hoje, as Marchas Populares congregam. Eu torço pela Mouraria, ainda que ache que Alfama se sabe engalanar como nenhum outro bairro, que a Bica é linda e a Madragoa um espanto. E sabem que mais? As marchas dos bairros já não são feitas pelas gentes dos bairros. Na Mouraria, em Alfama, na Bica e na Madragoa mais de metade dos marchantes vivem no Algueirão, em Queluz, em Santo António dos Cavaleiros. Têm raízes na cidade, sim, mas a cidade anda a dizer-lhes que eles já não são dali, que não podem viver ali. E Lisboa aproveita-se deles em junho, mas não os quer no resto do ano.
Como é que se explica isto? Segundo a Pordata, entre 2001 e 2014 a população da Área Metropolitana de Lisboa cresceu de 2,678 para 2,809 milhões de habitantes – e a perspetiva é que a região chegue aos três milhões antes do final da década. Lisboa, por outro lado, tem visto descer a sua população a pique, hoje somos 509 312 lisboetas, menos 53 837 habitantes do que em 2001. Em 1960, éramos 802 230. Temos uma cidade mais bonita do que nessa altura, quase tantos edifícios recuperados quanto abandonados. Mas junho, mês das festas da cidade, devia servir para pensarmos um bocadinho para onde caminhamos. E o primeiro passo é assumir o ponto onde estamos, o de despovoamento e submissão ao dinheiro forasteiro. É por isso que eu apresento estas propostas.
Que a Feira do Livro passe a chamar-se Book Town e tenha ainda mais food trucks com comida cem por cento orgânica, a preços de aeroporto. A sério, é giro. Que as sardinhas passem a ser anunciadas como finger fish, porque se podem comer com os dedos e isso permite aumentar os preços – vá, 3,50 euros cada uma. Talvez até vendê-las num menu very tipical, que também inclua pastéis de bacalhau com queijo da ilha. E, por fim, que se alarguem as Marchas de Lisboa aos bairros onde elas realmente existem. Cova da Piedade, Reboleira, Alverca. Agora a sério, é isto que andamos a fazer, mais vale assumi-lo de vez. Então eu anuncio já a minha preferência: a Tapada das Mercês é liiiiiinda.
De: Ricardo J. Rodrigues

Leia mais: June in Lisbon http://www.noticiasmagazine.pt/2016/june-in-lisbon/#ixzz4B4zEvkf0 


segunda-feira, 30 de maio de 2016

ainda hei-de roubar um Rolex através daquele passa-pratos.


Domingo, 22 de Maio
Regresso a Lisboa e precipito-me para as minhas rotinas de reencontro: atravessar a Baixa e o Chiado, percorrer o Bairro Alto e o Príncipe Real, subir da Escola Politécnica às Amoreiras. Em São Pedro de Alcântara há uma banda cabo-verdiana a tocar coladeiras, com um daqueles guitarristas que eu costumava ouvir na Casa da Morna, e apetece-me logo parar, beber um pouco de mais e pôr-me a dançar.
Não me incomoda assim tanto a nova afluência de turistas, por agora. Talvez porque nestes primeiros dias também eu sou turista. De qualquer modo, ainda antes de partir voltarei a ser lisboeta de corpo inteiro, provavelmente incomodado com eles - e, mesmo depois de voltar à ilha, levarei algum tempo até ser capaz de celebrá-los de novo, num misto de bonomia e gratidão pelo que trazem de possibilidades e de economia.
Portugal precisa de economia. As famílias portuguesas precisam de economia.
Aborrece-me, antes, esta obsessão da cidade com o trend (é assim que se diz?). Com as modas e tendências. Com os conceitos. À noite, num daqueles restaurantes de circunstância a que se recorre antes de um filme de multiplex, peço uma tacinha de ceviche, a especialidade peruana que ainda não tivera a bem-aventurança de provar, e parece que sinto os cochichos à minha volta: "Credo, ceviche. Este tipo acabou de chegar de 2015, ou quê?"
Tudo muda a toda a hora. Lojas que estavam na berra há seis meses são agora decrépitas. Hamburguerias revolucionárias parecem subitamente velhas comparadas com as suas sucedâneas. Ideias morrem, hábitos substituem-se, marcas cavalgam sobre marcas até que outras marcas venham cavalgar sobre estas ainda, numa orgia que me parece menos de dinheiro do que de ânsia e, afinal, de provincianismo.
Parece-me provinciana, de repente, esta cidade - apesar das coladeiras de São Pedro de Alcântara. E quando me detenho naquela nova casa de banho das Amoreiras, em que homens e senhoras se circunscrevem a cubículos diferentes, mas depois lavam as mãos juntos, através de uma espécie de passa-pratos, um de cada lado, esse provincianismo parece-me ainda mais evidente - essa obsessão de surpreender, de denotar diferença, de esmagar tudo o que há tão pouco parecia estimulante.
Ainda hei-de roubar um Rolex através daquele passa-pratos. Mesmo de senhora, mais pequenino. Nunca tive um Rolex, e Lisboa faz-me querer ter um Rolex.
Terça-feira, 24 de Maio
Gostava de ser capaz de escrever das emoções que se concentraram esta noite entre nós - nas palavras do Fernando, na presença dos amigos (os novos, os velhos e os muito velhos), nas proporções que de repente isto tomou. Mas como encontrar agora essas palavras, se tudo é ainda tão maravilhoso e imenso?
Foi no Chiado, ainda há pouco, e quando no fim vou jantar com os derradeiros resistentes - o Sebastião e a Márcia, a Ema, a Catarina - sei que pareço atónito, quase apático. Pareço-o porque o estou, provavelmente.
Rememoro as palavras, sinto ainda os abraços - cada um deles, na sua generosidade infinita -, mostram-me fotos. Recapitulo os rostos que vi e os que não vi. É um momento de celebração, como se tudo fizesse enfim sentido, e porém assolam-me agora os velhos fantasmas: a tentação da vaidade, o impulso da ligeireza.
Penso nos velhos da Terra Chã. Penso nos meus, os pais e os avós. Penso em José Guilherme. Naquela casa. No jardim de que a dotámos e em como os cães se esforçam por destruí-lo, na sua alegria pueril e absoluta.
Penso que tenho de dizer ao Chico que não precisa de sachar os tomateiros, porque o Rodrigo vai passar lá. Penso nos trabalhos em curso na encosta, sob a acácia descendente, e em como talvez não seja preciso esperar as sementes do Galão, porque ainda há um resto de gramíneas na garagem, no balde preto.
Depois voltam as palavras do Fernando. Os rostos e os abraços. Os nomes. As horas infinitas e o calor particular de cada abraço.
Foi no Chiado, não há muitas horas ainda, e agora estou aqui, em frente a este computador, tentando dizer a mim mesmo que tudo está no seu lugar certo, que também eu encontrei um lugar. Mas não sou capaz. Não ainda, pelo menos. Também sobre isto é preciso que a memória opere o seu milagre.
Apago a luz e prometo-me seguir caminho. O resto di-lo-ão os outros, que a eles o cabe. Tudo quanto posso desejar é que, ao menos uma vez, as pessoas que tivemos à nossa volta signifiquem alguma coisa sobre aquilo em que nos tornámos também.

Mas nem disso posso ter a certeza.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Joel Neto, o "guardador da identidade da Terra Chã".


O Livro A Vida no Campo foi apresentado esta tarde em Lisboa. Fernando Alves, jornalista, leu uma carta aberta a Joel Neto em plena FNAC Chiado. E o autor comoveu-se, em Lisboa
A sala estava cheia e quente e ainda o trio sentado à mesa para onde todos os olhares convergiam não começara a falar. Hugo Gonçalves, da Marcador, começou a sessão de apresentação do livro A Vida no Campo, de Joel Neto - que junta um conjunto de textos publicados, diariamente, no Diário de Notícias: "Tal como Hemingway, [Joel Neto] consegue escrever com elegância sob pressão".
Hugo Gonçalves, que já fora camarada de redação de Joel Neto, agora no papel de editor destacou a literatura feita de pequenos nadas do açoriano que regressou às origens, na Ilha Terceira, há quatro anos: "O Joel só precisa de ver uma vaca a atravessar a estrada para escrever um romance". A plateia, mais-que-completa, riu-se. Joel também. Mal sabia o que viria a seguir.
O editor da Marcador seguia a sua "cábula eletrónica" e, quase a terminar, diria que Joel Neto encontrou, depois dos 30, "o amor e a paz de espírito e isso fez dele um escritor melhor."

O microfone - e o livro, estrategicamente colocado para as fotos e a transmissão vídeo em direto - mudou para a outra ponta da mesa. Fernando Alves, jornalista, contou-nos que "implorou a Joel Neto" para apresentar este livro, ainda ele não era livro, era um conjunto de textos publicados no Diário de Notícias. Que tinha "uma relação obsessiva" com aquelas crónicas do DN. "Ia aquela crónica como quem vai ao quarto dos pais", disse. "Ia às crónicas do Joel para me comover".
Depois Fernando Alves dirigiu-se, não à gorda plateia, mas ao autor, sentado à sua direita. E assim desfiou as folhas A4 em que trazia uma carta para Joel - que gostaria que também escutássemos.
O jornalista da TSF leu, então, uma espécie de metatexto do livro que ali se apresentava. Começou no início do livro, a dois dias do Equinócio, seguiu na peugada dos passos de Joel Neto, do cão Melville ("somos íntimos desse rafeiro dourado"), das gentes da Terra Chã: "Cada passagem é uma fajã".
Alves bebera as histórias de Joel com sofreguidão. Traz à salinha respirante e silenciosa o momento em que Joel Neto leva os seus leitores "para dentro de casa, para o único quarto sempre arrumado da casa, o quarto dos pais". Disse então Fernando Alves: "Não será este o único momento em que terei sido tomado por uma irresistível melancolia ou vontade de chorar". Lembrara-se do pai, no quarto dele em África, falar-lhe das constelações Cruzeiro do Sul ou o Sete Estrelo - que também está nas páginas de Joel.
Com estes textos diários (agora semanais, aos sábados) no DN e agora com o livro A Vida no Campo, Joel Neto transformou-se num guardião da memória. "Os teus textos são de alguém que não esquece" diria Alves a propósito do carteiro Emanuel, que citou Borges numa troca de piropos futebolísticos.
"Estás à escuta das palavras da tua ilha, esse magma primordial", disse-lhe o jornalista da rádio, que também quer escutar essas vozes. Alves confessou publicamente o desejo de seguir com o autor e o livro, Terra Chã fora, com o microfone a captar o som das vozes que pontuam o livro. Ouvir, por exemplo, o bombeiro que assistiu o avô de Joel quando este passou mal. Joel comove-se, com a discrição possível no centro dos olhares de uma sala cheia.
Joel, "guardador da identidade da Terra Chã", engoliu as lágrimas. Voltaria a olhar para Fernando e para a casa cheia. Mas o narrador voltaria às raízes das árvores e da família do autor (Joel Neto vive na casa que pertenceu ao avô). Às memórias em que se mexem a cada passeio ou na poda de árvores. Quando Fernando Alves se calou, Joel Neto não conseguia falar.
"É difícil explicar como tudo isto faz sentido". Tinha uma folha dobrada com agradecimentos que não conseguia fazer. Emocionou-se no coração de Lisboa - ele que se comove tanto nos Açores, como disse em entrevista ao DN.
Depois agradeceu à editora Marcador, à Booktailors, ao DN: "[o jornal] arriscou muito quando me pediu uma crónica, um exercício de estilo sobre o meu regresso insular."

A sessão terminou com uma longa fila para autógrafos. No sábado, às 23.00, Fernando Alves passa no seu programa da TSFZona Franca todas as músicas de A Vida no Campo. Se já estiver na Terra Chã, Joel Neto escutará no Roberts, o rádio com wi-fi, o único objeto que comprou no regresso aos Açores. (DN – 25 Maio 2016)


quarta-feira, 18 de maio de 2016

O programa "de apanhados" que apanhou a líder do BE em boa ação.



O quinto 'E Se Fosse Consigo' foi com Catarina Martins. Que fez tudo bem, dando uma lição de cidadania que é um inestimável tempo de antena. Conceição Lino, que dirige o programa, pergunta: "Ia discriminá-la porquê?"
"Até já me tinha esquecido de que isto tinha sucedido." Catarina Martins não fazia ideia de que o quinto episódio do programa E Se Fosse Consigo, da SIC, que passou nesta segunda-feira, a teria como protagonista. "Aconteceu há quase um ano. Ia gravar um tempo de antena para as legislativas no Jardim da Estrela, ia ter com a equipa, já atrasada, e vi aquela cena." A cena era, como é regra no programa, uma situação encenada, com atores: desta vez o tema era a violência no namoro e um rapaz estava a ser violento com uma rapariga, a tentar tirar-lhe o telemóvel. Catarina não fez como a maioria das pessoas que passava e fingia não ver: interveio, enfrentou o agressor e até chamou a polícia. Mas, depois de perceber que era um programa de TV, achou "que nunca me iriam passar a mim, que seria naturalmente eliminada".
Não foi, e Conceição Lino, a autora de E Se Fosse Consigo, diz que tal nunca lhe passou pela cabeça: "Só a vimos quando já estava a interagir com a rapariga e o rapaz mas nunca pusemos a hipótese de não passar a Catarina Martins. É um programa sobre discriminação e ia discriminá-la? Pode ser qualquer pessoa, e foi ela. Só foi muito bom para ela porque fez tudo certo."
Catarina Martins, que partilhou o programa no Facebook dando os parabéns à equipa, assume que "o conceito de apanhados é um conceito de que não gosto muito." Mas, prossegue, "este programa aumenta a censura social sobre determinados comportamentos. E é óbvio que se não houver censura social sobre certos comportamentos as coisas nunca mais mudam". E a reação das filhas, de 13 e 10 anos, fez-lhe perceber que "o programa funciona. Veem-no com muita atenção, debatem-no, é ponto de partida para discussões na escola". O facto de se ter atrasado para um compromisso e de se ter sentido numa situação de perigo - "Fiquei imensamente nervosa, porque a dada altura achei que ia também apanhar" - não a levou a reagir mal quando, no fim, lhe surgiu uma jornalista, de microfone em punho. "A miúda já tinha o telemóvel e ia embora e eu preparava-me para ir atrás dela quando aparece a Conceição Lino. Eu tinha chamado a polícia, que nunca mais aparecia, e de repente lembrei-me e disse-lhe. Ela disse que a polícia estava avisada."
Impressionante para a coordenadora do BE foi não ter havido ninguém, durante todo o tempo que a cena durou, a aproximar-se e a fazer o mesmo que ela. "Aquilo que mais me chocou foi que a dada altura a rapariga deixa cair o telefone e uma senhora que estava com o neto disse ao rapaz que estava ali o que ele queria. Veio ajudar o agressor. Inacreditável."
Essa situação não aparece no programa, diz Conceição Lino, porque a senhora em causa não estava no enquadramento. "Só ouvi a voz, não a vimos." Esclarece no entanto que, sendo uma regra pedir autorização às pessoas "apanhadas" para as mostrar no programa, já sucedeu pôr no ar algumas que não autorizaram. "A esmagadora maioria dá autorização e as que não dão eu respeito, mas posso mostrar resguardando a identidade - houve no episódio da homofobia uma pessoa que não autorizou mas que achei relevante mostrar."
Uma questão delicada do ponto de vista deontológico, como de resto são as encenações e a câmara oculta. Afinal, E Se Fosse Consigo é jornalismo? "Aquilo é uma observação da realidade. Quero testar a reação das pessoas; mas sobre a reação das pessoas não interfiro. Todos os assuntos que abordo, o que acontece no programa é jornalismo", responde Lino, que depois de um período a apresentar programas de entretenimento voltou a ter carteira de jornalista. "Porque, o que é que é jornalismo?"

A ideia, explica, "surgiu ao ver na net uma coisa sobre experiências sociais. Achei que podíamos fazer uma coisa desse tipo. Se isto levanta questões? Obviamente que me questiono. Mas de cada vez que chego ao fim de um programa sinto-me muito mais satisfeita por fazer isto do que estaria sendo porta-microfone." Considerando "o interesse público do programa evidente", confessa-se chocada com "o grau de indiferença" evidenciado pela maioria das pessoas nas situações encenadas. E por notar, por exemplo no programa sobre a violência no namoro, que a reação dos turistas era diferente da dos portugueses. Para melhor. (DN – 18.05.2016)