quarta-feira, 25 de março de 2015

Morreu Herberto Helder, a voz mais fulgurante da poesia portuguesa.


Morreu na segunda-feira o grande mago da poesia portuguesa actual. Herberto Helder tinha 84 anos e publicara há pouco A Morte Sem Mestre, livro onde se mostrava a morrer, mas ainda tocado por esse poder criador que o tornou único.
O poeta Herberto Helder morreu esta segunda-feira na sua casa de Cascais, aos 84 anos, e apenas alguns meses após o lançamento de A Morte Sem Mestre (2014), um ofício de trevas, irado e irónico, e às vezes de uma crueza sem bálsamo: “e eu que me esqueci de cultivar: família, inocência, delicadeza,/ vou morrer como um cão deitado à fossa!”. Outras vezes sabendo que os seus misteriosos dons criadores ainda não o tinham deixado de todo: “(…) a morte faz do teu corpo um nó que bruxuleia e se apaga,/ e tu olhas para as coisas pequenas/ e para onde olhas é essa parte alumiada toda”.
Como Pedro Mexia refere na sua reacção à morte do poeta, não tardará a tornar-se pacífico que Herberto Helder é o poeta central da segunda metade do século XX, como Pessoa o foi da primeira. Mas é uma centralidade que é ao mesmo tempo uma anomalia, porque a mágica e bárbara linguagem de Herberto, mesmo na sua versão atenuada dos últimos livros, parece vir do fundo dos tempos e ter nascido por engano nesta modernidade.
Não há na poesia portuguesa pós-Pessoa nenhum poeta que tenha exercido um tal poder de atracção e gerado tantos epígonos. E nenhum mais absolutamente impossível de imitar com proveito.
Quem leu desprevenidamente esses primeiros livros de Herberto, nos anos 60 e 70, há-de ter experimentado essa sensação de que a poesia só podia ser aquilo. Foi sempre esse o maior e mais estranho dom de Herberto Helder: convencer-nos (ainda que injustamente) de que escreve directamente em poesia, como se a poesia fosse a sua língua materna, e todos os outros poetas se limitassem a traduções mais ou menos conseguidas de um idioma perdido de que só ele detinha a chave.
Nada poderia estar mais longe desta pós-modernidade culta, enfadada, cínica e céptica, do que o entendimento que Herberto tinha da poesia. Numa extraordinária entrevista que concebeu para uma revista galega e que o PÚBLICO divulgou em 1990, ele próprio escreve: “(…) o poema é um objecto carregado de poderes magníficos, terríficos: posto no sítio certo, no instante certo, segundo a regra certa, promove uma desordem e uma ordem que situam o mundo num ponto extremo: o mundo acaba e começa”. Herberto Helder não vinha entreter ninguém, vinha para viver aquilo a que um dia chamou, com inteira propriedade, a sua vida verdadeira.
Apenas um ano antes de A Morte Sem Mestre, que assinalou a passagem da sua obra para a Porto Editora, o poeta lançara em 2013, na Assírio & Alvim, o livro Servidões. Mas fora sobretudo com A Faca Não Corta o Fogo (2008) que se tornara um caso de consenso crítico quase absoluto.

O maior depois de Camões


“Herberto Helder foi um poeta poderoso, a sua obra foi um centro de atracção e um horizonte em relação ao qual todos os seus contemporâneos tiveram de se situar”, diz o crítico António Guerreiro. “Como antes tinha acontecido com Fernando Pessoa, também houve um ‘efeito Herberto Helder’”.
Visivelmente emocionada com a notícia da morte de Herberto Helder, a escritora Maria Velho da Costa disse ao PÚBLICO que “morreu o maior poeta português depois de Luís de Camões”. A romancista, que vê em A Morte Sem Mestre “um longo poema, belíssimo”, conclui com um apelo: “Se as minhas palavras tivessem alguma influência, eu propunha um dia de luto nacional”. 
“Quando morre um poeta com a dimensão de Herberto Helder, o que sentimos é que não apenas morreu um poeta mas a poesia”, declarou ao PÚBLICO o poeta madeirense José Tolentino Mendonça. “Nestes casos o luto torna-se insuportável e, ao mesmo tempo, este luto faz-nos perceber que Herberto Helder é imortal com a sua obra. Daqui a mil anos, se subsistir um falante de língua portuguesa, a poesia de Herberto Helder subsistirá”.
Num testemunho recolhido pela agência Lusa, o crítico e poeta Pedro Mexia considera que “o lugar de Herberto Helder na literatura portuguesa equivalerá ao de Fernando Pessoa na primeira metade do século XX”, algo que, acrescenta, “se começou a dizer há algum tempo e que se tornará, com o tempo, uma coisa pacífica, sem prejuízo dos grandes poetas da geração dele”.
Desde O Amor em Visita, ainda no fim dos anos 50, até A Morte sem Mestre, já em pleno século XXI, a produção escrita de Herberto Helder criou um universo em permanente expansão e revisão, um poema contínuo constantemente reescrito. Cuja última formulação ficou agora irremediavelmente fixada pela sua morte nos recém-lançados Poemas Completos (Porto Editora, 2014), um título, aliás, algo desconcertante para quem nunca parece ter visto na sua obra uma sucessão discreta de poemas autónomos e fechados.

Se é inegável que Herberto Helder é hoje um poeta muito conhecido, a ponto de cada novo livro se esgotar num ápice – o que não quer necessariamente dizer que tenha assim tantos leitores –, nunca alimentou essa notoriedade com a exibição da sua pessoa civil. Já na sua poesia, pode dizer-se que os seus últimos livros assinalam uma inflexão marcada por uma mais nítida e declarativa dimensão autobiográfica, com todas as cautelas que a palavra exige quando aplicada a um poeta. (Jornal Público – 25.Mar.2015)

sexta-feira, 20 de março de 2015

Há cem anos o terramoto Orpheu virou do avesso a literatura portuguesa.


Na primeira metade do século XX português não houve escassez de revistas literárias importantes e duráveis, como a Águia (1910-1932) ou a Presença(1927-1940), para citar apenas duas. Mas é hoje surpreendentemente consensual que a mais influente e icónica de todas foi uma efémera publicação de que apenas saíram dois números no primeiro semestre de 1915. Chamou-se Orpheu e foi recebida pela imprensa da época com títulos como “Literatura de Manicómio”, “Os Poetas do Orpheu e os Alienistas” ou “Orpheu no Inferno”.
Decorrido um século, o centenário do lançamento do primeiro número deOrpheu, que terá saído da gráfica a 24 de Março de 1915, vai ser evocado por estes dias em colóquios, exposições, lançamentos, leituras públicas e outras iniciativas. Tudo somado, não é de mais, já que Orpheu não foi apenas um terramoto que deixou irreconhecível a paisagem literária portuguesa da época, foi também, enquanto gesto fundador do nosso modernismo, o início de uma aventura criativa que atravessou todo o século XX e que só agora começa a dar sinais de esgotamento. E foi ainda, sobretudo no seu segundo número, a materialização mais significativa da colaboração entre dois génios criativos: Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Sem eles, poderia ter existido Orpheu, mas dificilmente estaríamos hoje a celebrar o seu centenário.
No plano académico, o momento mais significativo destas comemorações é o grande colóquio luso-brasileiro 100 Orpheu, que decorre em Lisboa, na Gulbenkian e no Centro Cultural de Belém, entre os dias 24 e 28, e que terá depois uma etapa brasileira em São Paulo, no final de Maio. Com pessoanos de várias gerações e proveniências, de Eduardo Lourenço ou Teresa Rita Lopes a Richard Zenith, Steffen Dix e Jerónimo Pizarro, o congresso começou com um aperitivo portuense na Fundação Eng.º António de Almeida, que inaugurou ontem o colóquio Orpheu e o Modernismo Português e a exposiçãoMemória d’Orpheu.
Na Biblioteca Nacional, abre no dia 24 a exposição Os Caminhos de Orpheu, organizada por Richard Zenith, que mostra o percurso da revista desde os seus antecedentes até às posteriores tentativas de Pessoa para ressuscitar o projecto. A par de muitos outros materiais que documentam a história deOrpheu, e não esquecendo a importância que as artes plásticas e gráficas tiveram no movimento, a exposição inclui vários papéis inéditos, incluindo documentos que demonstram que o envolvimento de Pessoa na produção do célebre número zero da revista Contemporânea, em 1915, foi muito mais decisivo do que se pensava.
Ocupando vários espaços da Casa Fernando Pessoa (CFP), inaugura-se a 25 a exposição Os Testamentos de Orpheu, de Pedro Proença. E a CFP está ainda a desenvolver com o Instituto Camões (IC) uma outra mostra – Nós, os de Orpheu –, que circulará em Portugal e na rede internacional do IC. E, a partir de 28 de Março, propõe-se fazer regressar Orpheu aos cafés onde o projecto foi pensado e discutido, convidando actores a ler textos que convoquem “o espírito do grupo” que fez a revista.

Mais discretas mas não menos importantes, duas iniciativas editoriais assinalam o centenário de Orpheu: 1915 – O Ano do Orpheu, com organização de Steffen Dix, uma belíssima edição da Tinta-da-China (a capa inspira-se no grafismo do segundo número de Orpheu). O livro acabou de ser lançado e reúne textos de mais de 20 investigadores, contextualizando o surgimento da revista, abordando as experiências afins noutras literaturas europeias e tratando individualmente os “órficos” mais relevantes. Em Abril, a Assírio & Alvim lançará, na colecção Pessoa Breve, o volume Sobre Orpheu e o Sensacionismo, co-organizado por Fernando Cabral Martins e Richard Zenith. (Jornal Público)

sábado, 14 de março de 2015

Tragam os corpos!


Rolam cabeças e ninguém está a salvo, nos romances e nos contos de Hilary Mantel. A sua peculiar atracção pelos cenários labirínticos e violentos, onde a intriga e as distorções da realidade são colocadas como armadilhas no decorrer de acontecimentos aparentemente banais, faz dela uma escritora peculiar, hábil na manipulação de personagens, situações e ambientes que deixam um rasto amargo mas sinistramente cómico. Depois de uma já longa carreira literária, e do compreensível sucesso de Wolf Hall e Bring up the Bodies (O Livro Negro, em português), dois romances históricos de uma trilogia — que ficará completa neste ano (2015) — em torno da figura de Thomas Cromwell e que lhe valeram dois prémios Booker, Mantel resolveu publicar estas histórias, demonstrando, como uma malabarista demoníaca e travessa, a capacidade para abordar os temas clássicos — casamento, família e sexo, diferenças entre géneros e classes — de uma forma, no mínimo, bizarra. Na realidade, Mantel está tão perfeitamente à vontade na movediça, perigosa e viciosa corte de Henrique VIII como no ambiente inseguro e repleto de ciladas do que tem sido o universo caótico das últimas décadas.
Nestes contos, comparáveis aos do seu contemporâneo Ian McEwan no que diz respeito ao que existe de macabro, sombrio e desviante no ser humano, Mantel mostra ser, também, uma discípula de Edgar Allan Poe, quando traz para o quotidiano um ambiente de permanente ameaça, irracionalidade e ambiguidade.
As narrativas são bastante curtas e a autora confere-lhes um carácter pessoal, não no sentido estritamente autobiográfico mas sim como se tudo o que descreve fosse uma anedota privada, algures num espaço paralelo, tanto temporal como físico, distorcido pela imprevisibilidade e observado a partir de uma visão desfocada e alucinatória. O primeiro conto, Desculpe incomodar, é um bom exemplo: relatado na primeira pessoa, remete para acontecimentos passados quando Mantel viveu com o marido em Jeddah, na Arábia Saudita. A autora descreve o ambiente claustrofóbico, a impossibilidade de sair livremente, a incompreensão perante regras conviviais absurdas, as barreiras numa sociedade com duras regras e muito pouco tolerante para com as mulheres. O ar abafado, as baratas no chuveiro, as janelas entaipadas, as importunas visitas de um homem demasiado amigável — esta intromissão reflecte-se na do sniper do IRA que invade e ocupa uma casa para ter um bom ângulo de ataque à primeira-ministra, no último conto —, as maleitas que a atingem — dores de cabeça, tonturas, intolerância à luz — estabelecem os vários leitmotiv que marcam a acção e os temas dos outros contos. EmVírgula, duas miúdas passam um Verão a fugir de casa e a embrenharem-se num matagal, os joelhos esfolados e os vestidos sujos, para espiarem uma mansão, de onde, todos os dias, emerge uma senhora elegante que empurra uma cadeira de rodas com um ser indistinto — semelhante a uma vírgula — embrulhado em mantas. Em O Qt-Longo — nome de um Síndrome relacionado com um certo tipo de taquiarritmia —, a dona da casa, durante uma festa, presencia a traição do marido com uma convidada. Tudo gira em torno desse momento em que o tempo pára, os sons são abafados, os copos se estilhaçam, os vidros cobrem o chão e o triângulo formado por marido, mulher e amante efectua uma espécie de dança grotesca que termina em tragédia, tal como acontece em Férias de Inverno, em que um casal parte para a Grécia e presencia um episódio de contornos sinistros. Num dos melhores contos, Como é que a irei reconhecer?, uma infeliz autora (ela própria?), incapaz de recusar o convite de uma comunidade de leitores numa cidade distante para falar da sua obra, passa pelos inconvenientes de uma hospitalidade dúbia — o seu anfitrião chama-se senhor Simister — num hotel à beira da estrada, depois de uma sessão pouco auspiciosa e perante uma plateia de zombies. Aliás, para Mantel, as personagens — fantasmas, vampiros, delinquentes, terroristas, ladrões, sequestradores, violadores e as suas vítimas, a criança paraplégica, a porteira aleijada, a escritora sonâmbula, a rapariga anoréctica, a estrangeira sequestrada, a mulher traída — são tão laboriosamente desenhadas como o espaço que as rodeia, sejam as escadas de um hotel, a divisão da casa em Jeddah onde a mobília se movimenta sozinha durante a noite, uma sala de pânico, o chão de uma cozinha, os consultórios em Harley Street, ou os canteiros de um jardim em que os botões de rosa se transformaram em borbotos castanhos e os carris de comboio a entrecruzarem-se na estação de Waterloo.

O conto que dá o título ao livro — situado no dia 6 de Agosto de 1983, quatro anos depois de Thatcher ganhar as eleições e apenas alguns meses antes do ataque terrorista do IRA, em Brighton, que realmente era destinado a matar a primeira-ministra — causou burburinho na Grã-Bretanha, por parte dos conservadores (Tories), ao ponto de um ex-deputado ter clamado contra a “fantasia deturpada e grotesca” da senhora (Dame) Mantel, a qual, no entanto, não deu sinais de se sentir minimamente afectada. (“Ainda hoje sinto o sangue a ferver de ódio contra Thatcher”, diz ela). Acrescente-se que estes dez contos, onde não se encontram vestígios de complacência, empatia, paciência ou compaixão, são extremamente imperfeitos; no entanto, o seu poder encantatório é fruto dessa estranha forma de narrar, sem fim nem princípio, a unidade quebrada e o equilíbrio instável. A autora não estabelece qualquer cumplicidade com o leitor, antes o atrai para um sorvedouro, em que a doença, a morte, a traição e o desleixo moral são habilmente reequilibrados por uma ironia exultante.
 Crítica corrigida: onde se lia Oliver Cromwell passou a ler-se Thomas Cromwell (Jornal Público)