sábado, 14 de março de 2015

Tragam os corpos!


Rolam cabeças e ninguém está a salvo, nos romances e nos contos de Hilary Mantel. A sua peculiar atracção pelos cenários labirínticos e violentos, onde a intriga e as distorções da realidade são colocadas como armadilhas no decorrer de acontecimentos aparentemente banais, faz dela uma escritora peculiar, hábil na manipulação de personagens, situações e ambientes que deixam um rasto amargo mas sinistramente cómico. Depois de uma já longa carreira literária, e do compreensível sucesso de Wolf Hall e Bring up the Bodies (O Livro Negro, em português), dois romances históricos de uma trilogia — que ficará completa neste ano (2015) — em torno da figura de Thomas Cromwell e que lhe valeram dois prémios Booker, Mantel resolveu publicar estas histórias, demonstrando, como uma malabarista demoníaca e travessa, a capacidade para abordar os temas clássicos — casamento, família e sexo, diferenças entre géneros e classes — de uma forma, no mínimo, bizarra. Na realidade, Mantel está tão perfeitamente à vontade na movediça, perigosa e viciosa corte de Henrique VIII como no ambiente inseguro e repleto de ciladas do que tem sido o universo caótico das últimas décadas.
Nestes contos, comparáveis aos do seu contemporâneo Ian McEwan no que diz respeito ao que existe de macabro, sombrio e desviante no ser humano, Mantel mostra ser, também, uma discípula de Edgar Allan Poe, quando traz para o quotidiano um ambiente de permanente ameaça, irracionalidade e ambiguidade.
As narrativas são bastante curtas e a autora confere-lhes um carácter pessoal, não no sentido estritamente autobiográfico mas sim como se tudo o que descreve fosse uma anedota privada, algures num espaço paralelo, tanto temporal como físico, distorcido pela imprevisibilidade e observado a partir de uma visão desfocada e alucinatória. O primeiro conto, Desculpe incomodar, é um bom exemplo: relatado na primeira pessoa, remete para acontecimentos passados quando Mantel viveu com o marido em Jeddah, na Arábia Saudita. A autora descreve o ambiente claustrofóbico, a impossibilidade de sair livremente, a incompreensão perante regras conviviais absurdas, as barreiras numa sociedade com duras regras e muito pouco tolerante para com as mulheres. O ar abafado, as baratas no chuveiro, as janelas entaipadas, as importunas visitas de um homem demasiado amigável — esta intromissão reflecte-se na do sniper do IRA que invade e ocupa uma casa para ter um bom ângulo de ataque à primeira-ministra, no último conto —, as maleitas que a atingem — dores de cabeça, tonturas, intolerância à luz — estabelecem os vários leitmotiv que marcam a acção e os temas dos outros contos. EmVírgula, duas miúdas passam um Verão a fugir de casa e a embrenharem-se num matagal, os joelhos esfolados e os vestidos sujos, para espiarem uma mansão, de onde, todos os dias, emerge uma senhora elegante que empurra uma cadeira de rodas com um ser indistinto — semelhante a uma vírgula — embrulhado em mantas. Em O Qt-Longo — nome de um Síndrome relacionado com um certo tipo de taquiarritmia —, a dona da casa, durante uma festa, presencia a traição do marido com uma convidada. Tudo gira em torno desse momento em que o tempo pára, os sons são abafados, os copos se estilhaçam, os vidros cobrem o chão e o triângulo formado por marido, mulher e amante efectua uma espécie de dança grotesca que termina em tragédia, tal como acontece em Férias de Inverno, em que um casal parte para a Grécia e presencia um episódio de contornos sinistros. Num dos melhores contos, Como é que a irei reconhecer?, uma infeliz autora (ela própria?), incapaz de recusar o convite de uma comunidade de leitores numa cidade distante para falar da sua obra, passa pelos inconvenientes de uma hospitalidade dúbia — o seu anfitrião chama-se senhor Simister — num hotel à beira da estrada, depois de uma sessão pouco auspiciosa e perante uma plateia de zombies. Aliás, para Mantel, as personagens — fantasmas, vampiros, delinquentes, terroristas, ladrões, sequestradores, violadores e as suas vítimas, a criança paraplégica, a porteira aleijada, a escritora sonâmbula, a rapariga anoréctica, a estrangeira sequestrada, a mulher traída — são tão laboriosamente desenhadas como o espaço que as rodeia, sejam as escadas de um hotel, a divisão da casa em Jeddah onde a mobília se movimenta sozinha durante a noite, uma sala de pânico, o chão de uma cozinha, os consultórios em Harley Street, ou os canteiros de um jardim em que os botões de rosa se transformaram em borbotos castanhos e os carris de comboio a entrecruzarem-se na estação de Waterloo.

O conto que dá o título ao livro — situado no dia 6 de Agosto de 1983, quatro anos depois de Thatcher ganhar as eleições e apenas alguns meses antes do ataque terrorista do IRA, em Brighton, que realmente era destinado a matar a primeira-ministra — causou burburinho na Grã-Bretanha, por parte dos conservadores (Tories), ao ponto de um ex-deputado ter clamado contra a “fantasia deturpada e grotesca” da senhora (Dame) Mantel, a qual, no entanto, não deu sinais de se sentir minimamente afectada. (“Ainda hoje sinto o sangue a ferver de ódio contra Thatcher”, diz ela). Acrescente-se que estes dez contos, onde não se encontram vestígios de complacência, empatia, paciência ou compaixão, são extremamente imperfeitos; no entanto, o seu poder encantatório é fruto dessa estranha forma de narrar, sem fim nem princípio, a unidade quebrada e o equilíbrio instável. A autora não estabelece qualquer cumplicidade com o leitor, antes o atrai para um sorvedouro, em que a doença, a morte, a traição e o desleixo moral são habilmente reequilibrados por uma ironia exultante.
 Crítica corrigida: onde se lia Oliver Cromwell passou a ler-se Thomas Cromwell (Jornal Público)

Sem comentários:

Enviar um comentário