quarta-feira, 2 de março de 2016

Nuno Costa Santos: uma estreia com muita bagagem.


Entramos no primeiro romance de Nuno Costa Santos, Céu Nublado com Boas Abertas, sabendo que há realidade e ficção nas suas páginas. Como discernir uma da outra é uma questão, mas uma questão que interessa pouco para a fruição da obra. A contra-capa adverte-nos tenuemente para este caminhar na fronteira; as epígrafes dão a receita: “Talvez a literatura seja isso: inventar outra vida que bem poderia ser a nossa”, Enrique Vila-Matas;“There’s no longer such thing as fiction or non fiction”, David Shields.
Nuno Costa Santos pode apresentar-se como a personagem dos Simpsons Troy McClure: Talvez se lembrem dele pelos livros de poesia, de crónicas, de contos, pela biografia de Fernando Assis Pacheco, pelos blogues, pelos programas de rádio, de televisão. Ou seja, no caso de Nuno Costa Santos, quando se fala num primeiro romance não se fala de inexperiência. Nascido em 1974, a escrita faz parte da sua vida desde há muitos anos e esse percurso terá sido, arriscamos, fundamental para um primeiro romance tão seguro.
Logo na primeira página, somos brindados com uma fotografia antiga de um casal: os avós do narrador. (Ou deveremos dizer autor?) Já perto do final, na página 197, o mesmo casal volta a surgir, com a mesa roupa, quase a mesma posição, mas expressões faciais diferentes: uma outra fotografia da mesma sessão de estúdio? A assinatura, que parece identificar o estúdio de fotografia, é diferente nas duas fotos. Terão tirado fotos em estúdios diferentes no mesmo dia? É um mistério que o romance não deslinda.
Este recurso às imagens, recorrente sem ser exagerado, aliado a umas poucas páginas lidas, remete-nos logo para W. G. Sebald, o grande mestre alemão da mistura entre ficção e realidade. Somos introduzidos logo à história do avô, João Pereira da Costa, o tal da fotografia, cujas memórias escritas o narrador encontra. Do meio desses papéis cai uma nota: “se tiver um descendente que se interesse pela escrita, peço-lhe para ir a São Miguel e trazer no regresso um conjunto de histórias do presente da ilha.”
Esta é a missão que o narrador empreende: visitar a sua ilha natal de São Miguel e nela buscar histórias, satisfazendo o pedido de um avô que já morreu. O romance divide-se entre estes dois tempos, o da deambulação do narrador pela ilha e o da história do seu avô, tentando curar-se da tuberculose num sanatório do Caramulo, rememorada através dos escritos que deixou. Este é um mecanismo muito caro a Sebald: um narrador vagueando pela paisagem e evocando histórias passadas.
É no presente da narrativa que Nuno Costa Santos se distancia do escritor alemão. Embora o tom melancólico e o ritmo ondulante da acção – que parece atingir um narrador passivo, como quem se deixa molhar pelas ondas sem vontade de entrar no mar ou de afastar-se da rebentação – ainda remetam para a escrita sebaldiana, a natureza das histórias encontradas na ilha é o afastamento face a este pai literário, é o grito de independência do autor.
O golpe de mestre de Nuno Costa Santos está aqui, na forma como coloca este narrador a procurar as histórias que o avô lhe pediu que procurasse. Porque, na verdade, a procura é muito escassa: a maioria das histórias vai ao encontro e de encontro a este narrador; e começam logo no avião que o leva de Lisboa aos Açores. Sem reacção do narrador, este vê-se envolvido num enredo com traficantes de droga locais, pacotes de cocaína que dão à costa em vários pontos da ilha, uma rapariga que anuncia massagens num jornal local e um velejador traficante francês. Pelo meio há outras desventuras com personagens, no mínimo, caricatas.
Como ensina Dinis Machado, devemos perguntar sempre: qual é o lado mais cómico disto? O lado mais cómico disto é precisamente aquela melancolia apática do narrador perante as situações extraordinárias que o envolvem. Em duas narrações sem paralelos aparentes – a do avô tuberculoso no Caramulo e a do neto metido com traficantes em São Miguel – surge uma ligação, pela diferença: a inversão do efeito esperado das duas narrativas. Não é que a história do avô seja puramente cómica, mas a forma como descreve as situações e reage aos seus azares tem laivos de humor. E o neto, vivendo coisas mirabolantes, parece acometido de uma doença profunda, uma tuberculose da alma.
Da história do avô, não esperamos grandes surpresas. Se ele abandona os Açores em busca da cura no Caramulo, logo depois de se casar, já supomos que se curará e regressará, porque se não fosse assim não teria filhos e não teria o neto que narra o romance. Da história do neto, não sabemos o que esperar, nem é expectável que o saibamos, nem é pretendido pelo autor. O curioso, em mais uma inversão do previsto, é que ficamos mais ávidos pelo desenlace da história do avô do que pela do neto.

Céu Nublado com Boas Abertas não é viciante, mas é viciante. O fio do passado, antigo e datado, empolga-nos, ao passo que o fio do presente, actual e imprevisível, embala-nos. É de todo este jogo diegético, da mestria narrativa com que Nuno Costa Santos aguenta a ficção e a não-ficção, no seu registo Sebald-urbano-depressivo, que se faz um notável romance de estreia. Nota-se que é uma estreia com muita bagagem, de alguém que se preparou para esta maratona com muitas corridas à volta do quarteirão. (Jornal Público – 26.Fev.2016)

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