quinta-feira, 14 de julho de 2016

Chance Glasco, o criador de Call of Duty, já só joga jogos vintage.


Cresceu indeciso entre ser astronauta, jogador de basebol ou designer de videojogos. Mas as mais de 90 milhões de cópias de videojogos vendidas em todo o mundo e os 3,6 mil milhões de euros em receitas parecem dar-lhe razão na escolha. O nome Chance Glasco pode não lhe dizer nada, mas se falarmos de Call of Duty, da empresa Infinity Ward, já compreenderá os números. Aos 22 anos, Glasco tornou-se o criador de um dos jogos de first-person shooter mais famosos de sempre, onde as missões de guerra decorrem sempre na primeira pessoa e a câmara nunca sai dos olhos do jogador. Actualmente a viver no Rio de Janeiro, o norte-americano Glasco, 35 anos, tem saltado de conferência em conferência, de país em país, e é em Lisboa que o encontramos, a convite da escola Restart. 
A inspiração para o Call of Duty chega-lhe da infância. Passou o tempo a construir fortes no meio do campo que lhe rodeava a casa nos Estados Unidos. Com três amigos que o acompanharam até à faculdade, desenvolveu personagens e histórias que inspiraram o jogo. Hoje, o co-fundador da Infinity Ward abandonou a empresa e já nem sequer joga o franchise que ajudou a criar. Os seus favoritos são os primeiros dois jogos, Call of Duty eCall of Duty 2, cuja história se inspira na Segunda Guerra Mundial, mas desde então a desilusão com a indústria dos videojogos é real e por isso, nos tempos livres, virou-se para os jogos vintage.
Quando joga online mantém-se anónimo, até porque “já não é tão bom como era”. Além disso, “o facto de alguém ser um engenheiro automóvel não o torna um bom piloto”, sublinha. Não assume nenhuma posição em particular, mas não gosta de jogar no lugar do atirador. Além disso, prefere jogar com amigos, porque considera que a comunicação durante o jogo torna-o “muito mais interessante”. Numa conversa sobre o passado, Chance vira-se para o futuro da indústria que, acredita, passará pela realidade virtual. Com essa certeza, apostou na criação de uma empresa que desenvolve simulações para plataformas de realidade virtual, a Doghead Simulations.
Com apenas 15 anos, arriscou aquela que foi a sua primeira tentativa de lançar um videojogo, mas sem sucesso. Call of Duty chegou sete anos depois e tornou-se um dos videojogos mais famosos do mundo, mas Chance não leva “demasiado a sério” nem as distinções nem as críticas dos fãs.
O trailer do novo jogo da saga, Call of Duty – Infinity Warfare, que saiu em Maio deste ano e já não foi feito por ele, é o segundo vídeo com mais “não gosto” no YouTube. São mais de três milhões que chumbam o vídeo contra as poucas mais de três mil dezenas que deram nota positiva ao que já se conhece sobre o novo jogo. Pior do que este trailer, só mesmo o videoclipe da música Baby de Justin Bieber. O que correu mal? “Nada. Quando algo se torna tão falado e famoso, há sempre alguém que vai odiar." O mesmo acontece quando lhe falam da distinção conquistada há dois anos, quando o Guiness World Records considerou Call of Duty a melhor série de jogos defirst person shooter de sempre, derrotando Grand Theft Auto,Pokémon ou Super Mário. “O que é que torna uma coisa a melhor do mundo? Ninguém vai discutir qual é a melhor cor”, desvaloriza.
Uma das perguntas que mais lhe fazem é como se sente por ser odiado por tantas mães, que vêem os filhos agarrados ao computador, horas a fio, empenhados “naquela” missão, a adiar o jantar ou as horas de estudo porque “não podem fazer uma pausa" na sua missão de "destruir o inimigo”. A resposta chega sem dar espaço para contra-argumentações. “Os pais têm de ser pais. Os jogos estão classificados como conteúdo para maiores de idade e existe uma razão para que essa classificação exista”, justifica. “Ninguém diz a um obeso que a doença irá ser tratada tornando a comida menos saborosa. E o mesmo se aplica aos jogos. O jogo foi pensado para adultos e foi desenvolvido para ser um jogo divertido." Não faz sentido diminuir a sua qualidade para se combaterem eventuais vícios, continua Glasco.
Quando deixou a Infinity Ward, a equipa estava a trabalhar numa versão espacial do jogo, mas Glasco, cuja varanda tinha vista para o Centro Espacial John F. Kennedy, na Florida, e apesar das suas antigas ambições de “homem do espaço”, chumbou a proposta. “Estava farto do jogo e por isso pensei: vamos ser ridículos. Vamos colocar dinossauros gigantes, pessoas a montarem dinossauros, armas de laser”, justifica. O criador de Call of Dutyconfessa que por esta altura já sabia que iria desistir da empresa, mas não o quis fazer “sem deixar a melhor ideia de sempre”, pelo menos para ele.
“Falta inovação na indústria de jogos Triple A”,diz referindo-se à classificação que distingue os jogos de elevada qualidade. “Passa-se o mesmo na indústria da música. Se lançares um álbum muito popular, se venderes três milhões de cópias o mais provável é que te peçam para fazer um álbum igual. E foi isso que aconteceu com o Call of Duty e todos os outros jogos Triple A”, conta. “A partir do momento em que há muito dinheiro investido, as probabilidades de os programadores criarem conteúdo inovador diminui porque o risco é maior.”



Para Glasco, Modern Warfare 2, lançado em Novembro de 2009, foi “o último jogo com cenários realistícos” da série Call of Duty, e o último que se lembra de ter jogado. Desde então, todas as versões lançadas parecem ser feitas pelo “Michael Bay [realizador de Transformers ] dos videojogos”, isto é: cheias de explosões e efeitos especiais e com dispendiosos orçamentos de produção. Desiludido com o rumo do jogo, Glasco decidiu sair da Infinity Ward da Activision e dedicou-se ao desenvolvimento de aplicações que têm por base cenários de realidade virtual.
Para já, o primeiro software em que está a trabalhar está a ser desenvolvido para ser utilizado por grandes empresas. Para Chance Glasco, a realidade virtual é o presente da comunicação. Se for necessário marcar uma reunião, em vez de se gastar dinheiro em deslocações pode “marcar-se esse encontro na realidade virtual”, sugere o antigo criador de videojogos. Fala naturalmente, como se a realidade virtual fosse uma conhecida e movimentada avenida na cidade, e defende que a realidade virtual deverá começar a ser adaptada de uma forma generalizada num curto período de tempo.
“O facto de vermos as nossas mãos personificadas no nosso avatar permite-nos expressarmo-nos de uma forma muito mais natural através da linguagem corporal." Acredita que esta maneira de comunicar é mais natural do que um encontro feito por Skype, por exemplo. “E isso é fundamental até mesmo para um ambiente mais saudável entre equipas de trabalho”, defende. “As pessoas tendem a pensar a realidade virtual como uma funcionalidade exclusiva dos videojogos”, o que é bastante limitado. “A realidade virtual permite-nos trabalhar com pessoas que estejam doentes, tratar traumas ou até mesmo apostar na melhoria de condições no ensino à distância”, exemplifica. 

Jornal Público - Julho 2016

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