sexta-feira, 15 de maio de 2015

Viagem ao princípio do mundo.


Se Eu Fosse Ladrão... Roubava, o filme-testamento de Paulo Rocha que agora, já postumamente, chega às salas de cinema, é o fim de uma obra iniciada na década de 1960 com duas obras-primas agora restauradas e também de regresso ao circuito comercial, Os Verdes Anos e Mudar de Vida. Dados a ver em conjunto, estes três filmes iluminam o círculo perfeito da obra do cineasta.
Faz um sentido especial a chegada ao circuito comercial, em simultâneo, do último filme de Paulo Rocha, Se Eu Fosse Ladrão… Roubava, e das suas duas primeiras longas-metragens, Os Verdes Anos e Mudar de Vida, estes dois títulos dados a ver em imaculadas versões recentemente restauradas pela Cinemateca Portuguesa com supervisão do realizador Pedro Costa.
E faz um sentido especial porque, se na obra de Paulo Rocha tudo se liga a tudo, e os seus filmes, mesmo espaçados no tempo, se estão sempre a reencontrar uns aos outros em rimas, ecos e repetições, Se Eu Fosse Ladrão… Roubava, que a dado passo o realizador não pode ter deixado de assumir como um verdadeiro “filme-testamento” ou “filme-súmula”, é uma obra inteiramente centrada nessas ligações, uma obra que atira luz sobre elas, e um filme que, em mais do que um sentido, volta incessantemente ao princípio – inclusive, e tratando da história do pai de Paulo Rocha, a uma origem familiar – para unir, num círculo perfeito, “fim” e “princípio”. Ora, fim e princípio duma obra, em circulo perfeito, é o que a exibição conjunta destes três filmes expõe, e propõe.
Manoel de Oliveira, por sua vez no seu “filme-testamento” há bem pouco tempo revelado publicamente (Visita ou Memórias e Confissões), refere a dado passo a sua admiração por Paulo Rocha, o cineasta português que mais apreciava. Não deixa, já agora, de ser justo notar o simbolismo latente no facto de a apresentação pública do filme de Rocha (depois de exibições no Festival de Locarno e na Cinemateca) suceder tão pouco tempo depois das primeiras exibições públicas deVisita..., como se isso reatasse um diálogo entre os dois. É certo que Rocha retribuía a estima de Oliveira, de quem foi assistente no Acto da Primavera e que talvez tenha sido, com António Reis, quem mais directamente reflectiu a importância matricial desse filme para o moderno cinema português.
Rocha foi um cineasta dos elementos, das tensões “telúricas”, da terra e do mar (como admiravelmente mostra, por exemplo, Mudar de Vida), mas também foi um cineasta da representação e do ritual, dados como chave para a “codificação” (ou “descodificação”) do real. A sua obra será sempre um bom ponto de partida para mostrar a diferença entre o que é ser “realista” (que Rocha foi sempre) e o que é ser “naturalista” (que Rocha nunca foi). A sua predilecção pelas formas da cultura japonesa – o cinema, o teatro, a pintura – mas também pela arte modernista (o seu filme sobre Amadeo de Souza-Cardoso, Máscara de Aço Contra Abismo Azul, feito em 1988) são outras manifestações precisas dessa diferenciação.

Um tempo em conserva


Quando vemos hoje Os Verdes Anos (1963) ou Mudar de Vida (1966), há um apelo muito imediato. O do tempo que ficou “em conserva” nesses filmes, o retrato que eles propõem duma época específica de Portugal. A Lisboa cinzenta dos Verdes Anos, ainda a expandir-se pelo campo em volta, as ruas e os cafés, as vidas dos que vinham do campo para avançar pela cidade, como o sapateiro (Rui Gomes) e a sopeirinha (Isabel Ruth) que compõem o casal protagonista.
Em Mudar de Vida, que não deixa de ser de vários modos um “reflexo” do primeiro filme de Rocha, a província (a região de Ovar, a que o realizador estava familiarmente ligado), as vidas dos pescadores, a sombra da guerra colonial (de onde voltava o protagonista). Tudo isto, toda esta precisão (“sociológica”, se quisermos), o tempo não fez mais do que salientar e reforçar, e este sentido de justeza também é, obviamente, a marca de um grande cineasta.
Mas que não deve esconder outros aspectos, mormente a extraordinária construção dramatúrgica desses filmes, o modo como todos os seus elementos, sobretudo aqueles mais directamente arrancados ao “real” (por exemplo, em Mudar de Vida, a sequência da festa popular), se inserem numa progressão narrativa impecável, alimentada por pulsões e mais pulsões, invisíveis mas pressentidas, e frequentemente de sinal contrário – é essa violência, sanguínea, contraditória, inexplicável, que toma conta do final de Os Verdes Anos, por exemplo, esse filme que acabando embora com a morte é um filme pleno de vida. Nessa perspectiva, Mudar de Vida, sendo mais duro e mais árido do que Os Verdes Anos, é um filme mais optimista, a fazer bem jus ao título: a célebre fala final do protagonista, “ainda temos braços”, é uma promessa de vida, de futuro, um caminho de superação diametralmente oposto ao fechamento, dir-se-ia “subterrâneo”, para que tendem Os Verdes Anos.
Num caso como noutro, e como se verificaria ainda em muitos momentos da obra de Rocha (O Rio do Ouro sendo um caso evidente), esse outro aspecto fundamental da obra do realizador, e que muito directamente cria uma ligação com Acto... de Oliveira, aparece em pleno: o seu interesse pela cultura popular, pelas formas de expressão populares, dadas menos como “documentário” do que como “teatro”, sempre em sofisticação e ritualização. Se eu Fosse Ladrão… Roubava é espantoso, entre outras coisas, pela forma como traz isto para o centro do cinema de Paulo Rocha. 
Mais do que apenas “autobiografia”, e dada a presença nele de uma multitude de excertos de filmes do realizador, é quase um filme de “crítica” – e se não é caso inédito andará lá próximo, mas não nos lembramos de nenhum realizador (nem mesmo Godard, que tanto se tem citado e revisto nos seus últimos filmes) que tenha feito assim, desta maneira, um filme sobre a sua própria obra.
Mas na constante fusão entre a ficção filmada contemporaneamente (a história do pai de Rocha e do seu desejo de “mudar de vida” e partir para o Brasil) e os ecos, muito concretos, trazidos pelos excertos dos seus filmes, é como se o realizador propusesse essa questão, a da expressão popular (as canções, por exemplo), como centro emanador e inspirador do essencial da sua obra.
Assim articulados, não é sem espanto que percebemos que filmes que pareciam tão distantes como, por exemplo, Os Verdes Anos e O Rio do Ouro, se tocam porventura mais do que o que supúnhamos. Ou que entre o cansaço do protagonista de Mudar de Vida e o cansaço de Venceslau de Moraes em A Ilha dos Amores há mais em comum do que julgaríamos.

Se Eu Fosse Ladrão... Roubava é a análise filmada da obra de Rocha que ninguém fez, mas feita como só ele a podia fazer – sem auto-celebração, com ironia, e dando todo o destaque à matéria (actores, paisagens, canções) de que o seu cinema se fez. No fim, a despedida: “Não tenhas medo." Como se a morte fosse só o regresso ao princípio. (Jornal Público – 14.Maio.2015)

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