Em tardes de muito mais sol, subíamos a coretos de jardins com laranjeiras carregadas e, quando tocávamos algo que se afastasse das marchas e dos pasodobles, acreditávamos que estávamos a ser modernos.
O tempo passava. Hoje, para mim, esse é o grande mistério.
Antes, naquela idade, iluminado pela luz de outono que chegava depois da chuva e que atravessava as vidraças da Sociedade Filarmónica, eu estava sozinho numa sala com chão de madeira. Havia buzinadelas de trombones ou guinchos de clarinetes que chegavam de outras salas, atravessavam as paredes, mas eu estava no centro de uma calma importante, sentado diante de uma pauta, concentrado, a desenhar notas no ar com dois dedos. Era o solfejo a ondular-me na voz ainda de criança: dó-ó-ó-ó, ré-é-é-é.
Mais tarde, noutra estação, levava para casa uma caixa, parecia uma mala de viagem, e sentia-me solene ao atravessar as ruas com ela. A caixa ia cheia de responsabilidade. Num dia de especial cerimónia, o mestre da música tinha-se baixado até à minha altura para me olhar bem nos olhos e me dizer que, a partir daquele momento preciso, eu era o único responsável por aquele instrumento. No meu quarto, pousava a caixa sobre a colcha da cama feita, abria-lhe o fecho e admirava-me com o saxofone alto. A quantidade de chaves e botões impressionava. Apesar de fosco por anos de uso, apesar de algumas amolgadelas, o seu brilho continuava a ser imponente. Ao longe, trazido pelo vento, é quase certo que o sino da vila dava horas nesse instante.
A banda ensaiava no salão da Sociedade. Em matinés de domingo ou em terças-feiras de Carnaval, eu entrava nesse salão e ficava a ver os bailes, analisava os casais que dançavam e as mulheres que ficavam sentadas, com as malas no colo, bem vestidas, colares, alfinetes talvez de ouro, muito sérias, a seguirem cada passo das filhas. Depois de pagar bilhete, era também aí que entrava para ver filmes projetados num lençol. Nos ensaios da banda, os saxofones altos ficavam na fila da frente, ao centro. Tocávamos as mesmas músicas vezes e vezes, o mestre balançava à nossa frente, o seu corpo seguia a batuta. Então, podia interromper tudo de repente e cantar um pouco para explicar um detalhe ao bombardino: pó-pó-pópópópó. Ou, com frequência, podia irritar-se com as trompas. Perguntava: as trompas estão a dormir?
A flauta era tocada pela rapariga mais frágil. O bombo era tocado pelo rapaz mais forte. A ensaiar no salão ou a marcharmos fardados pelas ruas, o bombo era o coração de um gigante do qual todos fazíamos parte. De manhã cedo, em dia de festa, quando tocávamos arruadas na nossa terra ou em terras próximas, acertávamos o passo pelo bombo. Todos avançávamos com o pé direito ao mesmo tempo. Depois, ao mesmo tempo, todos com o pé esquerdo. Levávamos as partituras presas com molas da roupa a um pequeno retângulo de cartão que nos ficava à frente dos olhos. O mestre da banda seguia lá à frente, orgulhoso e rebiteso, a levar-nos por onde só ele sabia. No céu, estouravam foguetes.
Havia certos lugares, como a Junta ou a Casa do Povo, onde estavam à nossa espera. Então, parávamos e tocávamos uma marcha enquanto hasteavam a bandeira muito devagar. A seguir, quando o mestre dava ordem, saíamos da formação. Os instrumentos maiores eram pousados em algum lugar mais ou menos protegido, formavam uma imagem brilhante, e nós entrávamos em direção a uma mesa. Havia papo-secos cortados ao meio com fiambre ou queijo e havia fatias de bolo. Esperávamos à volta da mesa, a olhar. Depois de recebermos licença, estendíamos um copo de plástico que alguém enchia com sumol. Não havia barulho enquanto comíamos esses lanches. Havia os nossos olhos abertos por cima dos copos. Durante esse tempo, os rapazes que vinham atrás da banda pelas ruas, assomavam-se à porta e ficavam a espreitar. Esse era o momento, achávamos nós, em que tinham pena de não fazer parte da banda.
Nas procissões, tocávamos marchas muito lentas, pesadas, e avançávamos muito devagar. Aprendíamos a intensidade. Quando parávamos de tocar, a caixa continuava a marcar o passo baixinho, atravessávamos ruas cobertas de alecrim, e ouvíamos a voz do padre, amplificada por um microfone, alternada com um coro de viúvas. Além disso, em tardes de muito mais sol, subíamos a coretos de jardins com laranjeiras carregadas e, quando tocávamos algo que se afastasse das marchas e dos pasodobles, acreditávamos que estávamos a ser modernos.
De manhã, quando eu acordava, a minha mãe tinha a farda passada e dobrada à minha espera, a camisa pendurada nas costas de uma cadeira. Os sapatos engraxados.
E o tempo passava. Sem que me apercebesse, de repente, transformava-se na minha vida.
José Luis Peixoto – crónica da Visão