A
Caça Revoluções de Margarida
Rêgo está na Quinzena dos Realizadores e Boa-Noite Cinderela de Carlos Conceição na Semana da Crítica
Filmes
de época? Filmes para esta época. O que fazer com a memória e com o idealismo
da revolução de 1974, pergunta Margarida Rêgo em A Caça Revoluções? Uma
versão “carnal e materialista” da Gata Borralheira – materialismo de estirpe
marxista – propõe Carlos Conceição com Boa-Noite Cinderela, uma Cinderela
que faz pela vida no século XIX, época que para o realizador tem semelhanças
com a actualidade portuguesa que não são mera coincidência.
São
duas curtas-metragens portuguesas em Cannes 2014, 67ª edição, de 14 a 25 de
Maio. A primeira está na Quinzena dos Realizadores, a segunda na Semana da
Crítica. São duas secções paralelas de Cannes, não são abrangidas pelo Palmarés
oficial, embora os filmes que ali passem possam ser atingidos por mísseis
lançados por júris e prémios alternativos – a Semana da Crítica, aliás, a mais
antiga das secções paralelas do festival, tem a sua própria competição, com um
júri que no ano passado foi presidido pelo realizador português Miguel Gomes e
que este ano é liderado pela britânica Andrea Arnold, cineasta muito da casa,
onde já venceu o Prémio do Júri por duas vezes, em 2006 (Red Road) e em 2009 (Fish
Tank).
Margarida
Rêgo olha Portugal a partir do Royal College of Art de Londres onde estudou
Design de Comunicação. A Caça Revoluções é um trabalho de mestrado.
Com uma memória pessoal da revolução de Abril que foi construída, pela família
e amigos, viveu as manifestações em Setembro de 2012 e pergunta-se o que fazer
à nostalgia que sente, por um país e revolução idealizados, na sua geração - os
que agora progridem na casa dos 20. (Quando se vir, no próximo DocLisboa, Metáfora
ou a Tristeza Virada do Avesso, de Catarina Vasconcelos, outro trabalho de
mestrado do Royal College of Art, é legítimo perguntar se avistamos gente à
procura um país).
A
nostalgia, e como ultrapassá-la. E como renovar as palavras, as músicas e o
protesto. Sobre uma fotografia da época revolucionária e com sons em fundo,A
Caça Revoluções “anima” marcas do tempo. Margarida Rêgo experimenta
desenhos sobre imagens, inventando um diálogo entre uma memória rica mas
cansada, que desistiu, e uma memória ávida de ser alimentada mas com
dificuldade de se autonomizar da idealização do passado. Quando o filme foi
exibido no IndieLisboa, dizia-nos a realizadora: “A revolução não terminou no
25 de Abril, temos de pensar que ela continua e que está sempre em mudança.
Vamos estar sempre a fazer a revolução.” O filme propõe esse desassossego.
A
Caça Revoluções é um encontro com o cinema, que para Margarida Rêgo, que
descobriu que um filme pode engolir tudo, pode engolir o tempo, é neste momento
campo de experiência artesanal. Sem compromisso fixo. A relação de Carlos
Conceição, 35 anos, com os filmes é “clássica”. É um licenciado em cinema. Boa-Noite
Cinderela é filme de época: século XIX, e o trio D. Luís, que como rei de
Portugal seria O Bom, o seu escudeiro e uma criada que perde o sapato ao descer
a escadaria do baile real.
D.
Luís (João Cajuda), nestes tempos antes do casamento por procuração com D.
Maria Pia de Sabóia, põe-se à procura do par. Sem ele sente que nada é. Mas
quererá verdadeiramente encontrar um par ou satisfazer a sua pulsão de calçar
saltos altos? E o romantismo da criada (Joana de Verona) é um disfarce de Gata
Borralheira para um tenaz objectivo de mudar de vida, aí residindo a rivalidade
com o escudeiro (David Cabecinha)? Nunca nada se quer estabilizado no
território de cada personagem, sexualidade e condição social. Há desejo e há
luta de classes. Há a nossa memória de um conto de fadas que é acrescentada,
violentada – forma de ser fiel, no fim de contas, à “zona de pulsões e de
perversão latente” no conto de fadas, como diz Carlos Conceição. E há a memória
do realizador do imaginário marxista-leninista do país em que nasceu, Angola.
Há
Marx, portanto, que também é um conto de fadas distante. E existe,
surpreendente numa curta, a panache do guarda-roupa e dos movimentos
de câmara. O que, tal como o filme faz a Marx e à Gata Borralheira, também
implica memória e crença no classicismo (“Gosto de David Lean, gosto
de Powell/Preessburger”). E consciência da impossibilidade, porque os meios de
produção só permitem que o filme seja austero.
Carlos
Conceição surpreendeu-se que tenha sido este filme a levá-lo a Cannes. À
partida, nada nele, discorre, exibe os sinais de uma contemporaneidade que os
festivais tornam tendência: o documentário ou a ficção do real, a confissão, o
discurso na primeira pessoa... Mas Boa-Noite Cinderela está sempre a
dizer que não é do século XIX que se trata. É a crise, é o desespero do tecido
social, é “o desconhecimento total” dos privilegiados sobre os outros, é hoje.
E a personagem Joana de Verona, se tivesse um filme que se colocasse
inteiramente na sua perspectiva, podia ser a Jeanne Moreau/Celestine deDiário
de uma Criada de Quarto, de Luis Buñuel/Octave Mirbeau, que olha assim o mundo
de garras afiadas desejando o apocalipse: “Si infâmes que soient les canailles,
ils ne le sont jamais autant que les honnêtes gens.” (Jornal Público – 14.05.2014)