quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Onde somos.


Este sol é português. Nasce lá na distância do cosmos, a milhares de quilómetros, mas aqui, esta alegria que toca a pele e a paisagem, que ilumina e aquece, é portuguesa. Podia mesmo ter passaporte, documento que guardaria no bolso e que apresentaria à passagem pelas fronteiras, diante do olhar circunspecto do polícia, a testá-lo na máquina, a escrever qualquer coisa no computador e a perguntar: vai em turismo?
O fado é universal. No auditório de qualquer continente, cantado por um homem ou por uma mulher, é universal. Acompanhado por aquela guitarra também universal, existe naquele lugar humano, onde as pessoas não têm nacionalidade. O fado circula livremente, não precisa de ser declarado como os produtos electrónicos. Depois de tirar o cinto, depois de descalçar os sapatos, o fado não apita na máquina dos metais. O fado existe em discos, mas os discos não são o fado. O fado existe na internet, mas a internet não é o fado. O fado é maior do que a internet, é mais universal.
Este vento é português. Não o vento das caravelas, esse já não existe, foi importante para quem lhe deu utilidade, mas gastou-se. A memória do vento das caravelas também é portuguesa, é património imaterial português. Mais concreto, no entanto, é este vento, soprado neste preciso instante. Tudo nele é português: o cheiro, a temperatura e até um certo silêncio. Este não é o único vento português, há muitos mais, com diferentes idades, velocidades e espessuras. No moinho ou na vela das pranchas de windsurf, no Cabo da Roca, ao longo do Douro ou nas ruas de Beja, vento raro, aragem nocturna, é sempre português.
A língua em que falo e escrevo é universal. A língua que a minha mãe começou a ensinar-me, sílaba a sílaba, é universal. Escrita, falada ou pensada, pode ser utilizada em qualquer ponto do planeta ou do universo. Repara no teu próprio exemplo: onde estás? Se estiveres a ler estas palavras traduzidas noutra língua, agradece ao tradutor e sabe que, desse modo, ainda mais se demonstra a universalidade desta expressão, desta matéria. Assim se revela a sua capacidade de movimento e adaptação, características primeiras daquilo que pode existir em todos os lugares e em todos os momentos.
Esta terra é portuguesa, a não ser que se encha baldes com ela, é para isso que servem as pás, e que se transporte em camiões ou em grandes navios através das fronteiras. Nesse caso, se tiver sido legitimamente adquirida, passará a ser terra desses países e, com muita probabilidade, continuará fértil. Assim, talvez se possa afirmar que esta terra é universal, a não ser que esteja debaixo dos meus pés, que sustente todo o peso da minha casa, a não ser que os meus mortos estejam enterrados e dissolvidos nela.
Sol e música, vento e língua, terra e tempo, somos aquilo que nos compõe. Respiramos ar que estava à nossa espera, que nos pertence, respiramo-nos a nós próprios. Da mesma forma, quando temos sede, bebemos água que se transforma em nós. São indefinidas e ambíguas as fronteiras entre nós e o mundo. Em todos os instantes, ao mesmo tempo, somos portugueses e universais.
por José Luís Peixoto

UP Magazine – TAP Air Portugal

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