Morreu
na segunda-feira o grande mago da poesia portuguesa actual. Herberto Helder
tinha 84 anos e publicara há pouco A Morte Sem Mestre, livro onde se
mostrava a morrer, mas ainda tocado por esse poder criador que o tornou único.
O
poeta Herberto Helder morreu esta segunda-feira na sua casa de Cascais, aos 84
anos, e apenas alguns meses após o lançamento de A Morte Sem Mestre (2014),
um ofício de trevas, irado e irónico, e às vezes de uma crueza sem bálsamo: “e
eu que me esqueci de cultivar: família, inocência, delicadeza,/ vou morrer como
um cão deitado à fossa!”. Outras vezes sabendo que os seus misteriosos dons
criadores ainda não o tinham deixado de todo: “(…) a morte faz do teu corpo um
nó que bruxuleia e se apaga,/ e tu olhas para as coisas pequenas/ e para onde
olhas é essa parte alumiada toda”.
Como
Pedro Mexia refere na sua reacção à morte do poeta, não tardará a tornar-se
pacífico que Herberto Helder é o poeta central da segunda metade do século XX,
como Pessoa o foi da primeira. Mas é uma centralidade que é ao mesmo tempo uma
anomalia, porque a mágica e bárbara linguagem de Herberto, mesmo na sua versão
atenuada dos últimos livros, parece vir do fundo dos tempos e ter nascido por
engano nesta modernidade.
Não
há na poesia portuguesa pós-Pessoa nenhum poeta que tenha exercido um tal poder
de atracção e gerado tantos epígonos. E nenhum mais absolutamente impossível de
imitar com proveito.
Quem
leu desprevenidamente esses primeiros livros de Herberto, nos anos 60 e 70,
há-de ter experimentado essa sensação de que a poesia só podia ser aquilo. Foi
sempre esse o maior e mais estranho dom de Herberto Helder: convencer-nos
(ainda que injustamente) de que escreve directamente em poesia, como se a
poesia fosse a sua língua materna, e todos os outros poetas se limitassem a
traduções mais ou menos conseguidas de um idioma perdido de que só ele detinha
a chave.
Nada
poderia estar mais longe desta pós-modernidade culta, enfadada, cínica e
céptica, do que o entendimento que Herberto tinha da poesia. Numa
extraordinária entrevista que concebeu para uma revista galega e que o PÚBLICO
divulgou em 1990, ele próprio escreve: “(…) o poema é um objecto carregado de
poderes magníficos, terríficos: posto no sítio certo, no instante certo,
segundo a regra certa, promove uma desordem e uma ordem que situam o mundo num
ponto extremo: o mundo acaba e começa”. Herberto Helder não vinha entreter
ninguém, vinha para viver aquilo a que um dia chamou, com inteira propriedade,
a sua vida verdadeira.
Apenas
um ano antes de A Morte Sem Mestre, que assinalou a passagem da sua obra
para a Porto Editora, o poeta lançara em 2013, na Assírio & Alvim, o livro Servidões.
Mas fora sobretudo com A Faca Não Corta o Fogo (2008) que se tornara
um caso de consenso crítico quase absoluto.
O
maior depois de Camões
“Herberto
Helder foi um poeta poderoso, a sua obra foi um centro de atracção e um
horizonte em relação ao qual todos os seus contemporâneos tiveram de se
situar”, diz o crítico António Guerreiro. “Como antes tinha acontecido com
Fernando Pessoa, também houve um ‘efeito Herberto Helder’”.
Visivelmente
emocionada com a notícia da morte de Herberto Helder, a escritora Maria Velho
da Costa disse ao PÚBLICO que “morreu o maior poeta português depois de Luís de
Camões”. A romancista, que vê em A Morte Sem Mestre “um longo poema,
belíssimo”, conclui com um apelo: “Se as minhas palavras tivessem alguma
influência, eu propunha um dia de luto nacional”.
“Quando
morre um poeta com a dimensão de Herberto Helder, o que sentimos é que não
apenas morreu um poeta mas a poesia”, declarou ao PÚBLICO o poeta madeirense
José Tolentino Mendonça. “Nestes casos o luto torna-se insuportável e, ao mesmo
tempo, este luto faz-nos perceber que Herberto Helder é imortal com a sua obra.
Daqui a mil anos, se subsistir um falante de língua portuguesa, a poesia de
Herberto Helder subsistirá”.
Num
testemunho recolhido pela agência Lusa, o crítico e poeta Pedro Mexia considera
que “o lugar de Herberto Helder na literatura portuguesa equivalerá ao de
Fernando Pessoa na primeira metade do século XX”, algo que, acrescenta, “se
começou a dizer há algum tempo e que se tornará, com o tempo, uma coisa
pacífica, sem prejuízo dos grandes poetas da geração dele”.
Desde O
Amor em Visita, ainda no fim dos anos 50, até A Morte sem Mestre, já em
pleno século XXI, a produção escrita de Herberto Helder criou um universo em
permanente expansão e revisão, um poema contínuo constantemente reescrito. Cuja
última formulação ficou agora irremediavelmente fixada pela sua morte nos
recém-lançados Poemas Completos (Porto Editora, 2014), um título,
aliás, algo desconcertante para quem nunca parece ter visto na sua obra uma
sucessão discreta de poemas autónomos e fechados.
Se
é inegável que Herberto Helder é hoje um poeta muito conhecido, a ponto de cada
novo livro se esgotar num ápice – o que não quer necessariamente dizer que
tenha assim tantos leitores –, nunca alimentou essa notoriedade com a exibição
da sua pessoa civil. Já na sua poesia, pode dizer-se que os seus últimos livros
assinalam uma inflexão marcada por uma mais nítida e declarativa dimensão
autobiográfica, com todas as cautelas que a palavra exige quando aplicada a um
poeta. (Jornal Público – 25.Mar.2015)
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