O
que aconteceu entre maio e outubro de 1917 foi transformado no livro 'Em Teu
Ventre'.
Por Leonardo Ralha
A história de Lúcia, a menina que garantiu ter
visto e falado com Nossa Senhora, é recontada por José Luís Peixoto no livro
‘Em Teu Ventre’ (Quetzal). O escritor garante à ‘Domingo’ que pretendeu gerar
reflexão sobre um fenómeno que respeita.
Calcula
como é que a sua mãe reagiria se aos dez anos lhe dissesse que tinha visto a
Virgem Maria?
É uma pergunta curiosa,
pois coloca o que aconteceu no campo do real. Muitas vezes, ignora-se algo
fundamental: estamos a lidar com um acontecimento. Não depende da fé acreditar
que três crianças, a mais velha com dez anos, afirmaram assistir à aparição de
Nossa Senhora, a mãe de Jesus, numa azinheira, num campo do concelho de Ourém.
Não consigo imaginar esse cenário na minha vida e não faço a mínima ideia do
que a minha mãe poderia dizer – antes de pensar nela e na sua reação, penso no
que eu era enquanto criança de dez anos e em como o Mundo era pouco nítido
quando tinha essa idade.
A
Galveias em que cresceu, nos anos 80, tinha algo em comum, por mais remoto, com
a Fátima de 1917?
A primeira vez que fui
a Fátima foi numa excursão da catequese. Galveias tem uma fundação, gerida pela
Igreja Católica, o que faz com que tenha uma presença de freiras, que
ministravam a catequese e iam à escola primária. A minha escola tinha, e ainda
tem, um crucifixo na parede.
Como
lhe apareceu a ideia de escrever a história daquela que viria a ser a irmã Lúcia
e da sua família?
Interessei-me em ler um
pouco mais sobre a história e tomei conhecimento de detalhes alheios àquilo que
me fora transmitido. Aprendi a versão simplificada, mais comum, partilhada e, a
meu ver, um pouco grosseira e infantil. Quase transformaram uma história
concreta numa lenda pontuada por momentos que requerem fé. Quando li um pouco
mais sobre a história, senti que podia ser melhor contada.
Houve
algum momento em que tenha sentido medo de escrever sobre algo que diz tanto a
tantas pessoas?
Da primeira à última
palavra senti esse receio. Queria evitar transformar o livro numa provocação.
Pelo contrário, a minha vontade era que pudesse propor reflexão, estimulando
debate com respeito. Muitas vezes, quando se fala neste tema, tenta-se logo
marcar uma posição quanto à fé. Sinto que há outras questões e que a fé é uma
posição pessoal, até íntima, de cada um. Para passar à margem disso escolhi
fontes que a Igreja Católica reconhece. As memórias da irmã Lúcia e o livro do
padre João de Marchi. São textos com uma quantidade interessante de detalhes
que me permitiram construir um livro, económico do ponto de vista da narrativa,
mas que tenta retratar aquele período com realismo. Ao mesmo tempo, tive outra
intenção, que não sei se ficou visível, mas foi importante: uma reflexão sobre
a espiritualidade e o transcendente, que existe nas mais diversas formas, e faz
sentido que cada um aceite. Esteve nos locais em que Lúcia e os primos
Francisco e Jacinta viveram.
Sentiu
algo especial?
Houve coisas que me
tocaram bastante. Nomeadamente a forma como aquelas pessoas viveram. Atraiu-me
mostrar a ruralidade, que muitas vezes Fátima simboliza. Nasci e cresci na
ruralidade e acredito que esse Portugal ainda está presente, ainda que
camuflado, em múltiplos traços daquilo que somos. E não me parece interessante
que o rejeitemos por vergonha. Devemos procurar o que tem de positivo e
aceitá-lo como parte daquilo que somos.
Compreende
que, apesar de Fátima ser para muitos sinónimo de fé, haja quem a associe aos
vendilhões do templo?
Compreendo os dois
lados. O livro foca-se nos meses das aparições, de maio a outubro de 1917, mas
a história teve desenvolvimentos. Se tivesse terminado aí, a Igreja teria
rejeitado as aparições. Só as aceitou em outubro de 1930. Até porque era um
fenómeno que vinha do povo… E envolvia algo muito caro à Igreja Católica. No
livro, o padre é a personagem mais cética. Isso é histórico. Foi narrado por
diversas fontes, incluindo a irmã Lúcia. Hoje, ao visitarmos Fátima,
encontramos muitas formas de viver o fenómeno e algumas chocam muitas
sensibilidades. Nomeadamente as lembranças feitas na China. Logo no momento das
aparições houve quem falasse na possibilidade de Fátima se tornar uma estância
religiosa, como Lourdes, o que aconteceu. É um destino turístico, visitado por
milhares de pessoas. Muitas das quais não são católicas. Umas irão movidas pela
sua fé e outras pela curiosidade. Certamente que há atrações para umas e para
outras.
O
livro não tem descrições das aparições. Fez essa escolha por não conseguir
acreditar?
Foi a estratégia que
encontrei para não ter de tomar partido. Não por pudor de apresentar a minha
posição, mas porque senti que desvirtuaria as minhas intenções. Preferi
fixar--me naquilo que me causa menos dúvidas, pois são factos históricos e
mesmo assim acredito que tragam surpresas. Não me parece de forma alguma que as
famílias de Lúcia e dos primos fossem pobres, como não me parece que fossem uns
sacrificados por serem pastores. Havia outras crianças com trabalhos muito mais
pesados e vidas mais difíceis nessa época.
É,
ou alguma vez foi, um membro da Igreja Católica Apostólica Romana?
Tenho dificuldade em
responder. Não posso fazer essa afirmação de forma inequívoca, a não ser talvez
em momentos da infância, quando estava na catequese e frequentava a missa
semanalmente. A certa altura afastei--me da instituição, mas não tenho dúvidas
de que a minha estrutura moral foi formada nesse contexto. A religiosidade é
algo que herdamos e que molda critérios e visão. Não podendo afirmar que tenho
devoção, também não posso afirmar que os princípios da Igreja Católica me são
totalmente alheios. Cresci e formei-me nessa cultura. Não é sequer uma escolha.
Interessa-lhe
saber o que os religiosos pensarão desta narrativa?
Bastante. Apreciei a
oportunidade de apresentar o livro em Fátima, na presença de figuras ligadas ao
culto mariano e ao Santuário. Não quis que o livro fosse agressivo para com uma
fé que respeito. Tenho admiração por quem a tenha. As primeiras palavras do
livro são "tudo começa pela esperança" e a esperança, além de
sinónimo de fé, é essencial à vida.
A
mãe de Lúcia, que desconfia das aparições desde o início, tem mais medo do
desconhecido ou de estar a ser trocada por outra mãe?
Sinto que a mãe de
Lúcia estaria a proteger a família. Mas do ponto de vista simbólico temos duas
mães em paralelo: a idealizada e divina e a concreta, com fragilidades.
Tal
como ‘Morreste-me’ era um livro em nome do pai, ‘Em Teu Ventre’ é um livro em
nome da mãe?
Sem dúvida. No entanto,
ao contrário do meu primeiro livro, que dizia respeito ao meu pai, em concreto,
este propõe uma reflexão sobre as mães, à margem da minha. Apesar de uma das
narradoras ser mãe do autor. É um jogo literário, que tem a ver com a mãe
interior que cada um tem dentro de si, seja qual for a distância ou
independentemente de estar viva ou não. É uma voz de apoio e de crítica que
deixou dentro de nós. Essa mãe dirige-se ao criador daquele texto, e é, de
certa forma, uma aparição. Faz aquilo que Lúcia disse que Nossa Senhora fez em
Fátima, atravessando dimensões para se tornar visível.
Era
capaz de escrever este livro se a irmã Lúcia ainda estivesse viva?
Não creio. É um livro
escrito com distância em relação aos acontecimentos. Apesar de a irmã Lúcia não
ter morrido há muito tempo, isso pesou na possibilidade de poder refletir e
ficcionar o assunto.
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