Cornelius
Gurlitt mantinha num andar de Munique 1400 obras de arte, incluindo telas
desconhecidas de Chagall ou Matisse. As autoridades alemãs descobriram o seu
tesouro, boa parte dele oriundo das pilhagens nazis, já há dois anos, mas não
disseram nada
As
autoridades alemãs anunciaram ontem, em conferência de imprensa, que as 1400
obras de arte encontradas em 2011 num apartamento de Munique incluem pinturas
desconhecidas de Henri Matisse, Marc Chagall e Otto Dix. Meike Hoffmann,
encarregada pelo Ministério Público alemão de catalogar o achado, mostrou aos
jornalistas presentes imagens de uma pintura ignorada de Matisse, de um
auto-retrato de Dix e ainda de uma cena alegórica de Chagall, datável de meados
dos anos 20, à qual a especialista atribuiu "particular importância para a
história da arte".
(Chagall)
O
encontro com a imprensa foi convocado após a revista alemã Focus ter
revelado que as autoridades do seu país mantiveram em segredo durante dois anos
a apreensão de um vastíssimo lote de arte moderna, boa parte dela saqueada
durante o período nazi, que se amontoava num modesto apartamento de Munique. O
andar é propriedade de Cornelius Gurlitt, filho de um célebre negociante de
arte, Hildebrand Gurlitt, que ajudou o regime de Hitler a vender no estrangeiro
a arte saqueada dos museus da Europa e extorquida aos coleccionadores judeus.
Após a morte do pai, em 1956, Cornelius, que tem hoje 79 anos, manteve a
colecção de arte no seu apartamento e foi vendendo ocasionalmente algumas peças
quando precisava de dinheiro.
O
procurador Reinhard Nemetz precisou ontem aos jornalistas que o conjunto
abrange 1401 peças, incluindo pinturas a óleo, aguarelas e desenhos de artistas
como Pablo Picasso, Henri Matisse, Marc Chagall, Paul Klee, Emil Nolde, Franz
Marc ou Max Beckmann, para citar apenas alguns dos mais conhecidos. Só 121
telas mantêm a respectiva moldura, acrescentou Nemetz, mas as restantes, embora
partilhassem o andar de Gurlitt com uma insólita quantidade de latas de comida
fora de prazo, estão devidamente acondicionadas e em bom estado de conservação.
Segundo
a Focus, o conjunto valerá mil milhões de euros. E se algumas destas pinturas
eram até agora ignoradas pelos historiadores de arte, muitas não só são bem
conhecidas, como têm sido activamente procuradas. Já foram identificadas 200
obras para as quais há mandados internacionais, garante a Focus.
"Quando
voltamos a ver estas obras, desaparecidas há tanto tempo e dadas como
destruídas, a sensação é extraordinariamente gratificante", disse ontem
Hoffmann, que se congratulou também pelo bom estado geral das peças. Gurlitt
teve o cuidado de as manter em aposentos escurecidos, protegidas da luz do sol.
Uma
pintura de Dürer
A
arte da primeira metade do século XX é o grosso do conjunto, mas o apartamento
de Gurlitt, no quinto andar de um prédio modernista que já conheceu melhores
dias, conservava uma tela quinhentista de Albrecht Dürer e obras de artistas de
várias outras épocas, de Canaletto a Courbet, Renoir ou Toulouse-Lautrec.
Nem
todas as obras foram roubadas durante o nazismo, salientou ontem o procurador
Reinhard Nemetz, que anunciou ainda que as autoridades alemãs não irão divulgar
imagens das pinturas na Internet, como tem sido reclamado desde que a Focus revelou
esta história. "A situação legal das obras é muito complexa e não queremos
um cenário em que tenhamos de lidar com dez reivindicações diferentes de uma
mesma pintura", diz Nemetz.
O
argumento não convence os herdeiros de coleccionadores judeus espoliados pelos
nazis e a decisão já foi também criticada por um conhecido advogado berlinense
especialista em reivindicações de arte roubada, Peter Raue, que a considera
"um escândalo". David Rowland, um advogado nova-iorquino que
representa os herdeiros do crítico e coleccionador Curt Glaser, lamenta:
"Sem uma lista das obras, não podemos fazer nada."
Entre
os candidatos a reclamar a propriedade de algumas destas peças conta-se a jornalista
Anne Sinclair, ex-mulher do político francês Dominique Strauss-Kahn e neta do
famoso coleccionador francês Paul Rosenberg. Uma das telas de Matisse que
Gurlitt conservava veio garantidamente da colecção de Rosenberg, pilhada pelos
nazis.
Uma
associação judaica criada para ajudar as vítimas dos nazis a negociar
restituições de bens e compensações por danos, a Conference on Jewish Material
Claims against Germany, já criticou a Alemanha por ter demorado tanto tempo a
revelar a descoberta destas obras. Citado pelo jornal inglêsGuardian, um
porta-voz da instituição, Ruediger Mahlo, defendeu que colecções privadas como
esta sob o Terceiro Reich eram quase sempre constituídas por obras que tinham
pertencido a judeus. Mahlo diz que "não se pode continuar, como neste
caso", a seguir uma prática que "corresponde moralmente ao
encobrimento de bens roubados".
Um
nazi com avó judia
A
razão pela qual se acreditava que muitas destas obras tinham sido destruídas
prende-se com a estranha história de Hildebrand Gurlitt. O pai de Cornelius,
nascido numa família ligada às artes, era já um prestigiado historiador e
coleccionador de arte quando os nazis subiram ao poder em 1933. Com uma avó
materna judia e um reconhecido gosto pela arte moderna, tinha tudo para ser perseguido
pelos nazis. E foi. O regime destituiu-o dos cargos públicos e associativos que
desempenhava, mas, quando precisou de alguém que tivesse contactos
privilegiados com coleccionadores dentro e fora da Alemanha nazi, recorreu a
ele.
Foi
recrutado pelo próprio Goebbels para vender a arte moderna considerada
"degenerada". E fê-lo com tal empenhamento que lhe foi oferecida a
direcção do grande museu de arte germânica que Hitler projectava abrir em Linz,
na Áustria, onde vivera.
Parte
das obras que chegaram às mãos de Hildebrand Gurlitt vieram directamente da
exposição Arte Degenerada (Entartene Kunst) que o regime organizou em
1937. Muitas outras foram adquiridas por Gurlitt, a preços irrisórios, a judeus
que tentavam comprar o seu bilhete de saída do terror nazi.
Se
é notável que o neto de uma judia tenha subido tão alto no regime, não é menos
notável que Gurlitt tenha atravessado incólume o processo de desnazificação no
pós-guerra. Desta vez, a avó judia funcionou como um trunfo e permitiu-lhe
declarar-se como vítima dos nazis aos interrogadores americanos. O
coleccionador convenceu-os ainda de que toda a sua colecção de arte fora
destruída em 1945 nos bombardeamentos de Dresden.
Tendo
em conta a notoriedade de Hildebrand Gurlitt, não deixa de ser surpreendente
que não tenha sido mais investigado após a guerra, como é de estranhar que os
seus herdeiros possam ter mantido a sua colecção de arte a salvo e ignorada
durante mais de meio século, ainda por cima vendendo regularmente algumas
peças.
Autorizado
a retomar a profissão de negociante de arte, o coleccionador veio a morrer em
1956 num acidente de viação, deixando a colecção à mulher, Helene, que por sua
morte a deixou ao filho de ambos. A galeria suíça Kornfeld, que negoceia com
Cornelius Gurlitt desde o início dos anos 90, defende-se da acusação de más
práticas, alegando precisamente que se trata de um mero "caso de herança
não declarada".
Tramado
pelo fisco
Se
não for possível encontrar os proprietários legítimos de algumas destas 1400
obras, como é provável que aconteça, não é de excluir que, tendo muitas delas
sido compradas de acordo com a lei, mesmo que a preços irrisórios e em
circunstâncias vergonhosas, acabem por regressar à posse de Cornelius Gurlitt.
O
filho de Hildebrand Gurlitt é descrito pelas autoridades como um idoso um pouco
lunático e que leva uma vida de eremita. Tendo em conta que conseguiu guardar
segredo durante mais de meio século da existência de um tesouro estimado em mil
milhões de euros, chega a ser anedótico pensar que foi apanhado porque andava
com nove mil euros no bolso. Numa tarde de Setembro de 2010, alguns fiscais
alfandegários alemães entraram num comboio que vinha de Zurique e se destinava
a Munique, na Baviera. Dado que a banca suíça é ilegalmente utilizada por
alemães que tentam fugir aos impostos, as inspecções de rotina são frequentes,
mas a dessa tarde apanhou na rede o mais improvável dos peixes.
Quando
pediram a documentação a um homem de cabelo branco, este sacou de um passaporte
austríaco que o identificava como sendo Rolf Nikolaus Cornelius Gurlitt,
nascido em Hamburgo, em 1933, e residente em Salzburgo. Explicou que fora à
Suíça em negócios e que fizera uma transacção na galeria Kornfeld, em Berna, e
mostrou um envelope contendo nove mil euros - mil euros abaixo do limite a
partir do qual teria de declarar a verba na fronteira.
Um
dos fiscais contou à Focus que o homem "parecia nervoso" e
que resolveram investigá-lo. Não tardaram a descobrir que não vivia em
Salzburgo, que não estava registado na polícia, como é obrigatório na Alemanha,
não tinha número de contribuinte, não recebia nenhuma pensão e não dispunha de
qualquer seguro. "Era um homem que não existia", resumiu o mesmo
fiscal.
A
vigilância prosseguiu, até que, em Fevereiro de 2011, os investigadores
encarregados do caso obtiveram um mandado para revistar o seu apartamento em
Munique, onde esperavam encontrar provas de depósitos ilegais e fuga ao fisco.
E descobriram, de facto, a caderneta de uma conta bancária com várias centenas
de milhares de euros, produto das ocasionais vendas de arte que Gurlitt ia
fazendo para se financiar.
Mas
encontraram também 1401 obras de arte atrás de uma barreira de latas de comida
em decomposição, que já estavam fora do prazo nos anos 80. E se tivessem sido
mais rápidos, ainda teriam apanhado uma tela de Max Beckmann, intitulada Lion
Tamer, que Gurlitt vendeu a uma leiloeira de Colónia por 864 mil euros.
A
convicção de que esta venda ocorrera já depois de a colecção ter sido
confiscada e guardada num depósito alfandegário em Munique levou os jornais
alemães a especular que Gurlitt poderia ter outros depósitos secretos. Mas as
autoridades já vieram garantir que a transacção é anterior à busca e que não há
motivos para crer que existam mais obras de arte escondidas noutros locais.
Cornelius
Gurlitt pode vir a ser acusado de evasão fiscal, lavagem de dinheiro e outros
delitos, mas o procurador Nemetz explicou ontem que não existiam
"suspeitas de um crime que pudesse justificar a sua detenção". E
acrescentou que se desconhece "o actual paradeiro" de Cornelius
Gurlitt. (Jornal Público – 06.11.2013)
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