Não
é difícil imaginá-la no seu universo feminino, fora da oficina, rodeada de
crianças que não eram suas, talvez na cozinha, a fazer bolos ou a escolher os
frutos e flores que mais tarde haveria de pintar. Não é difícil imaginar alguém
a chamar-lhe tia Josefa, diz Anísio Franco, conservador do Museu Nacional de
Arte Antiga (MNAA), frente à obra que acaba de ser exposta. É um Menino
Jesus Peregrino que Josefa de Óbidos terá pintado já no auge da sua
carreira — invulgar para uma mulher do século XVII —, nas décadas de 1660 ou
70, que reúne uma série de traços característicos da sua obra, femininos.
A
incorporação deste Menino Jesus no acervo que já inclui 15 pinturas da artista
que nasceu em Sevilha e escolheu fixar-se em Óbidos vai permitir ao museu
“mostrar mais uma tipologia que, não sendo única em Josefa de Óbidos, não
estava ainda presente na colecção do MNAA”, explica Anísio Franco, um dos
conservadores.
Quem
percorre hoje este museu de Lisboa encontra duas das naturezas-mortas que a
tornaram tão popular (Com Taça de Cristal e Com Caixas e Potes), um Menino
Jesus Salvador do Mundo, uma Adoração dos Pastores e um Casamento
Místico de Santa Catarina em ambiente doméstico, com a Virgem sobre um
estrado, com um cesto de costura aos pés. Estas obras chegaram à colecção da
Rua das Janelas Verdes em vários momentos e algumas pertenceram aos reis D.
Fernando e D. Luís. Nas futuras galerias de pintura e escultura portuguesa, que
deverão ser inauguradas no terceiro piso, no final de 2014, voltarão a estar
expostas, ao lado do novo Menino Jesus, que está hoje no MNAA graças a um
depósito, por dois anos (renovável), segundo o vice-director, José Alberto
Seabra Carvalho.
A
obra, que foi a leilão em Setembro do ano passado sem que fosse vendida,
pertence à família Roque de Pinho Patrício, que pouco depois decidiu propor ao
museu que a expusesse, o que, dada à sua qualidade, foi aceite.
As
tentativas para deixar obras em depósito no museu são muitas, mas são poucas as
que se concretizam. A explicação, diz Anísio Franco, é simples: “As pessoas
vêm, de boa vontade, confiar ao museu aquilo que acham ser um tesouro, mas o
que acontece na maioria das vezes é que as obras só são tesouros num contexto
familiar.”
“O
Menino está sozinho, com o bordão e a cabaça dos peregrinos de Santiago, e
parece, à primeira vista, muito inocente. Mas, quando começamos a reparar nos
detalhes da roupa, que são muitos, percebemos que esta criança sabe exactamente
o que lhe vai acontecer.”
Anísio
Franco, conservador do Museu Nacional de Ar
Entre
2005 e 2012 — os dados mais recentes —, o MNAA recebeu cinco
depósitos de pintura ou mobiliário de particulares, como o Retrato de
Jácome Ratton (século XIX), de Thomas Lawrence, que pertence à Fundação
Calouste Gulbenkian. Mas as doações e os legados no mesmo período atingem os
“milhares” de peças. Só a colecção Francisco Castro Pina, que chegou em 2011,
tem mais de três mil, com destaque para ourivesaria, têxteis e cerâmica
portuguesa e oriental. Por que razão fazem doações e não deixam em depósito?
“Não
temos essa tradição. E acho que também há o receio, por parte dos donos, de que
o Estado classifique os bens e que isso dificulte a sua transacção futura.” Um
receio que, garante o conservador do museu, não se justifica em casos como
este: “Uma Josefa de Óbidos, um Malhoa ou um Columbano têm é valor cá. Fora do
nosso mercado dizem muito pouco aos coleccionadores.”
Um
Menino Jesus ibérico.
No caso deste Menino Jesus Peregrino, justificava-se “em pleno” a
integração no acervo, quer pela temática, quer pelo rigor da execução. Presente
em todas as exposições importantes que foram dedicadas a Josefa de Óbidos, dos
anos 1940 até à de 1991, “a mais completa e com reatribuições”, esta pintura
reflecte uma “tradição iconográfica muito ibérica”. Um iberismo que Anísio
Franco justifica com o facto de este Jesus ainda criança estar representado com
uma série de símbolos que por hábito são associados aos peregrinos a Santiago
de Compostela, na Galiza. “O Menino está sozinho, com o bordão e a cabaça dos
peregrinos de Santiago, e parece, à primeira vista, muito inocente. Mas, quando
começamos a reparar nos detalhes da roupa, que são muitos, percebemos que esta
criança sabe exactamente o que lhe vai acontecer.”
O
conservador refere-se aos símbolos da Paixão de Cristo que estão bordados na
gola da capa — os dados associados à traição, a lança que o matou ou a
esponja embebida em vinagre de onde terá bebido — e presentes em alguns
dos adereços que usa, como o pano de Verónica (véu com que Jesus limpa o rosto
a caminho da crucificação), o chapéu com a coroa de espinhos e um medalhão em
que está inscrito INRI (acrónimo em latim para “Jesus de Nazaré Rei dos
Judeus”, que viria a ser usado na placa que encima a cruz do calvário).
Tudo
isto pintado, acrescenta o especialista do MNAA, com “o característico
toque feminino da Josefa de Óbidos”. E em que é que consiste esse “toque
feminino”? Numa atenção aos pormenores muito particular, nas margaridas que
coloca aos pés deste Menino de longos cabelos loiros aos caracóis, de grandes
rosáceas e “olhos meigos”, explica. É tudo feito com muito cuidado no
tratamento da luz e dos panejamentos, diz Anísio Franco, falando da
“singularidade” da artista no contexto da pintura que se fazia em Portugal. “O
professor Manuel do Rio-Carvalho [historiador de arte] dizia que a Josefa
pintava meninos como quem pintava bolinhos [que tantas vezes aparecem nas suas
naturezas-mortas] e bolinhos como quem pintava meninos” — tudo muito
minucioso e com “grande doçura”: "As suas pinturas são, efectivamente,
encantadoras."
Uma
mulher singular.
Na época, e apesar de uma clientela fiel, ainda que “restrita e muito
regional”, esta artista que se formara na oficina do pai, o pintor Baltazar
Gomes Figueira, não tinha a mesma projecção de outros colegas de profissão e
havia até quem a acusasse de erros de perspectiva elementares. Anísio Franco
lembra que não era comum no antigo regime uma mulher solteira, sem descendência
directa e, ainda por cima, capaz de se sustentar. “Isso devia incomodar muita
gente.”
Justas
ou não as críticas, certo é que a pintora conquistou um lugar na cultura
portuguesa, sendo muito popular no seu tempo, mas também no século XIX, quando
o mercado da arte nacional começou a funcionar. Primeiro, explica o
conservador, começou por ajudar o pai nas grandes encomendas de Coimbra —
ainda hoje é discutível a autoria de algumas das obras por causa dessa
proximidade — e por trabalhar para uma certa “corte de Aldeia” (à volta de
Óbidos há muitas obras dispersas); séculos depois, “todas as boas famílias
queriam ter uma natureza-morta da Josefa na sala de jantar”...
A
questão da autoria à volta de Josefa de Óbidos e de Gomes Figueira tem sido
muito trabalhada por Vítor Serrão, historiador de arte que tem estudado a obra
dos dois pintores. “É claro que gostávamos de saber muito mais sobre ela, mas
isso pode passar, como defende Vítor Serrão, por saber mais sobre o pai.”
Josefa
nasceu em Sevilha quando Baltazar Gomes Figueira lá trabalhava, foi apadrinhada
por um importante pintor espanhol da época, Francisco Herrera, e começou por
copiar os modelos que encontrava na oficina do pai, alguns de Francisco de
Zurbarán, que ele terá chegado a conhecer. “Ela aprende em segunda mão, é
verdade, mas não é em nada menor do que o pai”, defende o conservador do MNAA.
“Podemos dizer que Baltazar Gomes Figueira tinha outro mundo, outra relação com
os modelos, eventualmente mais informada, mas Josefa soube desenvolver a sua própria
maneira de pintar.”
Obras
como o Menino Jesus Peregrino ou a Sagrada Família (1664),
que pertencia ao Convento de Santa Cruz do Buçaco e que ardeu
na última noite de Consoada, eram encomendas recorrentes. Destinavam-se a
uma “devoção doméstica, na intimidade”, embora a primeira exiba claras marcas
de luxo e a segunda seja muito mais contida, como convém a uma pintura
destinada à casa religiosa de uma ordem que professa a pobreza (no caso, a dos
monges carmelitas descalços). Outra das diferenças, sublinha Anísio Franco, é o
facto de a pintura agora no MNAA não ter sido sujeita a intervenções de
restauro de fundo, ao contrário da que foi completamente destruída no convento:
“O requinte nos efeitos lumínicos é absolutamente evidente, porque neste Menino
Jesus a pintura está toda cá, o que já não se passava com a do Buçaco, muito
intervencionada. Isto não quer dizer, no entanto, que a perda daquela Sagrada
Família não seja um desastre patrimonial.”
A
investigação sobre as causas que levaram ao incêndio no convento de 24
para 25 de Dezembro estão ainda a decorrer, disse nesta quarta-feira ao PÚBLICO
o presidente da Fundação Mata do Buçaco, responsável pelo edifício, sendo agora
da responsabilidade do Ministério Público.
As
obras para corrigir as infiltrações na cobertura que terão estado na origem do
curto-circuito que levou ao desaparecimento da pintura ainda não começaram,
porque os técnicos estão a estudar ainda o que fazer, acrescentou Fernando
Correia: “Todas as diligências estão em curso mas, antes de qualquer
intervenção, é preciso ouvir os especialistas em património. É o que estamos a
fazer." (Jornal Público)