"Filomena"
conta uma história real. Conta muitas coisas. De dois mundos em coabitação
fugaz - o do jornalista e assessor político retirado sem glória, que se prepara
para escrever um livro sobre a história da Rússia, e duma simples mulher do
povo, com gostos literários mais prosaicos. Do amor e da perda dum filho. Da
culpa e das pazes que queremos fazer com a nossa própria história quando o fim
se aproxima. Mas "Filomena" fala, antes de tudo, de um conflito moral
fundamental nas nossas vidas. A partir duma história de abuso de que a Igreja
Católica em geral e a Igreja irlandesa em particular está cheia.
Filomena
engravidou sem ser casada. Na conservadoríssima Irlanda de 1952. Coberto da
vergonha que o julgamento social impunha, um pai que amava mais a sua imagem do
que a sua filha, entregou-a a um convento. Por lá pariu e trabalhou durante
quatro anos para pagar as despesas. O seu filho foi, como os filhos de todas as
jovens mães que ali estavam, entregue para adopção famílias abastadas que
compraram as crianças. Sem a sua autorização, claro. Ou seja, o seu filho
foi-lhe roubado. O resto não conto, para não estragar.
Apesar
de nunca me deixar de sentir esmagado pela crueldade que o conservadorismo
extremo carrega em si, não me preparo para um manifesto anticlerical. De crimes
estão cheios todos os templos, mas também todas instituições de poder. Ainda
mais uma instituição milenar. Ainda mais uma instituição que, por natureza,
escapa ao escrutínio público. Ainda mais uma instituição que exige obediência e
se move no território da fé.
"Filomena"
fala duma coisa muito mais interessante do que qualquer julgamento histórico
duma instituição demasiado grande para caber num só texto. Fala do confronto
entre o sofrimento extremo de um individuo e a vontade e preservar uma
instituição que o explica como pessoa. Como julgar os que moldaram o que somos
pode ser ainda mais violento do que nos julgarmos a nós próprios. Na realidade,
pode ser exatamente a mesma coisa. Por isso compreendo tão bem aqueles que,
chegados ao fim da vida, se recusam a negar tudo aquilo em que acreditaram e
todas as instituições a que pertenceram, por mais evidente que tenham sido os
seus erros. Pedir que neguemos toda a sua vida é exigir demais a quem é apenas
humano.
Pelo
menos esta é a parte do filme de Stephen Frears que mais me interessa. Porque
retira à obediência a visão simplista de quem pensa que ela resulta apenas da
anulação do indivíduo. Como se o lugar de onde vimos e onde estivemos não
fizesse parte da nossa individualidade. Ainda mais quando essa obediência, que
nos faz ser injustos connosco mesmos, não resulta do medo e da coação, mas do
sentimento de pertença e de dever. É um conflito tramado que a personagem do
filho biológico, gay republicano que, com SIDA, trabalha convictamente com o
governo que recusa investir no combate à doença. A vida está cheia de
contradições.
Filomena
existiu. E chama-se mesmo Filomena. E divide a sua história com milhares de
outras mães que foram exploradas e roubadas na sua maternidade pela Igreja
irlandesa. Mas o mais interessante desta história é a dificuldade que Filomena
tem em culpar as freiras que foram as suas carrascas. E ainda mais a Igreja de
que ela própria faz parte. Uma dificuldade incompreensível para o cínico,
agnóstico e desiludido (ex-correspondente da BBC, ex- católico) Martin Sixsmit
(autor do livro em que se baseia este filme).
Há,
em Filomena, uma fronteira ténue entre a resignação e a capacidade de perdoar.
Há, em Martin, uma fronteira ténue entre o sentido de justiça e a amargura.
Martin não pode compreender Filomena. Ele não pertence a nada. Na realidade,
ele não acredita em grande coisa. Filomena não pode compreender Martin. Afinal
de contas, ela foi privada, desde muito cedo, da mais elementar noção de
justiça.
No
fim, lá as coisas equilíbram-se. Ele compreende a necessidade pessoal de
perdoar, ela compreende a necessidade pessoal de denunciar. E, não sendo o
filme da minha vida, a qualidade de "Filomena" é essa amenidade das
personagens. A suavidade dos seus sofrimentos e julgamentos. Ele decide que não
explorará de novo Filomena, não escrevendo sobre a história. Mas ela opta por
uma justiça salomónica: perdoa as freiras (não poderia encontrar maior castigo
contra quem apregoa o "perdão" sem nunca o ter experimentado), mas
quer que a verdade se saiba. Tudo ao contrário de grande parte da história da
Igreja Católica, no que toca aos seus pecados e aos dos outros. Ainda assim, um
final absolutamente cristão. Que até o agnóstico Martin, de quem obviamente me
sinto mais próximo, compreende.
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