Festa,
alegria, violência, futuro, comprometimento, fragilidade. São as palavras e os
significados que envolvem Artistas comprometidos? Talvez, a colectiva
apresentada na Gulbenkian no âmbito do programa Próximo Futuro
Fundação
Gulbenkian. Está cansado – “escapou” há minutos do calor da rua – mas
visivelmente satisfeito e saúda os artistas que encontra pelo caminho,
interrompendo-se aqui e ali para olhar a montagem final das obras. “Artistas
comprometidos? Talvez”, a exposição que comissaria, no âmbito do programaPróximo
Futuro, está quase pronta. A meio da sala, o artista moçambicano Celestino
Mudaulane termina a sua pintura mural e ao fundo a instalação de Wum Botha
parece concluída. Nas paredes, já se exibem as fotografias do franco-argelino
Bruno Boudjelal, os estranhos e coloridos “retratos” do sul-africano Athi-Patra
Ruga e a pintura do brasileiro Luiz Zerbini. No chão, algumas obras esperam a
sua vez. Como já se tornou, presume-se, evidente, os artistas participantes
nesta colectiva (ao todo são 21) não se subsumem a uma geografia. Há-os de
diferentes continentes e países, o que denota uma coerência com os fins do
programa Próximo Futuro e, neste, com a actividade de curadoria de
António Pinto Ribeiro. Mas o que dizer do título? Que sentido tem a palavra
“comprometidos”?
“Há
aqui dois tipos de comprometimento”, diz o curador. “Um comprometimento com o
legado artístico, com a arte, que considero profundo. E uma atitude que no meio
das maiores vicissitudes, das maiores catástrofes, encontra espaço para a
expressão de uma certa alegria, de uma ideia de festividade. Não se trata de
uma regra, mas é substancial. É uma energia que os artistas canalizam para a
expressão artística, para a criação das suas obras”. Alguns trabalhos tornam
presente esse energia, Veja-se o tromp-l’oeilque espreita da pintura de
Luiz Zerbini, a indeterminação colorida dos seres de Athi-Patra Ruga, as luzes
e o movimento da instalação de Wum Botha. A cor e a diversidade de linguagens
são aspectos que ressaltam e envolvem o visitante. E a par de pinturas, de
esculturas e instalações, encontram-se filmes, pinturas murais, referências a
cidades ou a lugares específicos (a costa do Norte de África, o Mediterrâneo,
Maputo, as ruas de Joanesburgo), inclusive a outras artes (a BD). Como se
articula toda esta diversidade, e o comprometimento que a atravessa, com a
possibilidade de uma intervenção? “Nas conversas com os artistas, houve sempre
um debate em torno do papel interventivo, quer da obra, quer do artista como
cidadão. Que implicações surgem na produção contemporânea e na relação dessa
produção com os cidadãos? As obras e actividades dos artistas desta exposição
não são militantes ou panfletárias, mas partem de um programa individual,
pessoal”.
Fragilizar
a mediação
Algumas
estratégias que ilustram a complexidade, bem como a singularidade, desses
programas podem ser: evocar ou documentar um período negro da história de um
país (é o que fazem o sul-africano Conrad Botes ou a guatemalteca Sandra
Monterroso), confrontar a violência de uma sociedade (nas pinturas de Celestino
Mudaulane, na proposta da artista brasileira Berna Reale) ou explorar
narrativas da história política (Bouchra Khalili). Na maioria destes trabalhos,
o que se evidencia não será um gesto de denúncia, menos ainda de activismo, mas
uma inquietação provocada pelas condições sociais e políticas do real;
inquietação que só se mostra, só emerge se transfigurada pela arte. Repare-se
nas imagens de Bruno Boudjelal. Ao longe, parecem pinturas de paisagens e são
paisagens o que vemos representado. Um olhar mais aproximado, permite descobrir
outra coisa: são fotografias, tomadas, ofuscadas pela luz, da costa argelina e
da costa da Europa do Sul que o artista fez durante uma série de viagens. A
alusão às travessias do Mediterrâneo por jovens africanos que tentam chegar à
Europa vai-se revelando. Escreve o artista no catálogo: “Virando as costas a
África, diante das margens europeias de Espanha ou Itália, regressei aos locais
onde embarcam estes migrantes clandestinos. Estas paisagens brancas fixam numa
mesma fotografia o encandeamento da luz, o desaparecimento da paisagem e as
construções da memória.”
Apesar
da articulação entre temas próximos ou comuns, refira-se que grande parte dos
artistas não se conhecia pessoalmente. “Não houve colaboração entre eles, mas
existiu um processo de debate interno”, nota Pinto Ribeiro. “Houve conversas,
leram-se textos, houve reflexão. Verificou-se um processo de partilha, com
propostas e contra-propostas, trocas de imagens. E mostrei-lhes a história da
exposição anterior, para terem uma perspectiva com que se pudessem relacionar”.
O curador, embora participante, assumiu a fragilização da sua função, atitude
que, no seu entender, modera a autoridade excessiva do mediador. Podemos
intuir, na opção, uma crítica ao mundo da curadoria? “É hoje uma evidência o
excesso de mediação entre os artistas, o público e as instituições. E isso tem
uma razão de fundo que é grande diversidade e a ausência de cânones da arte
contemporânea. Cabe muito do poder de selecção aos curadores. Mas o problema
não são os curadores, e sim o excesso da sua influência e autoridade, que vai
personificando um star-system”. A este problema, acrescem outros obstáculos que
desvirtuam a produção artística: “Há muitas situações de promiscuidade entre
curadores, responsáveis por colecções e críticos. E isso não é nada saudável
para os artistas e as programações”.
Comprometimento
com o futuro
Dos
participantes em Artistas comprometidos? Talvez só se contam dois nomes
portugueses: Pedro Barateiro e João Ferro Martins. Que conclusões se podem
tirar desta parca representação? Que a inquietação que anima esta colectiva não
é partilhada pela actual arte portuguesa? António Pinto Ribeiro admite que sim.
“A responsabilidade não é, contudo, dos artistas. Eles estão inseridos num
processo histórico onde o mercado e as galerias se lhes impõem, não permitindo
outro tipo de orientações. Também não encontro essa inquietação na arte que se
torna panfletária ou naïve. Há uma falta de comprometimento radical. O Pedro
Barateiro e o João Ferro Marins, para mim, têm esse comprometimento com o
futuro, com o devir, mas por razões que terão a ver com os limites de produção,
tendem a fazer obras minimais, com escalas mais reduzidas”.
Uma
escala reduzida é algo que não se encontra emTeoria, peça de Eduardo T.
Basualdo, uma enorme rocha negra, suspensa sobre o foyer da Fundação.
A sua localização inusitada (parece rasar as cabeças dos visitantes) e a sua
queda latente (um fio segura-a ao tecto) interpelam quem passa. Primeiro, o
receio face à possibilidade de uma catástrofe, logo a seguir o encontro com uma
presença surreal, fantasiosa, plena de ilusão. Não é ferro ou granito o que a
constitui, mas folha de alumínio. Entre a aparição violenta e a ironia,
testemunha-se uma transfiguração semelhante à realizada pelas imagens de Bruno
Boudjelal, com a diferença de que aqui é a relação entre os homens e os
objectos, e menos entre os homens e os lugares, aquilo que o artista vem
interrogar.
Regresse-se
à sala principal. Acolhe filmes da autoria de Bouchra Khalili, de Miguel Jara,
de Pedro Barateiro e Solon Ribeiro. Todos lidam com questões distintas, quanto
muito contíguas: a performance, a montagem, a memória do cinema, a animação, a
documentação. Em comum, sobressai um envolvimento com a cultura das imagens e
os arquivos que ela vai construindo. Esse é também um aspecto relevante do
projecto. Mas há outro que surge mais interpelador. A aparição da pintura
mural, nas propostas de Conrad Botes, vindo da BD experimental, de Celestino
Mudaulane (que tem apresentado desenhos e esculturas em edifícios devolutos de
Maputo) e do mexicano Demián Flores, que retoma um “movimento” que marcou a
história da arte do seu país. Pergunta “provocadora”: por que não levar estes
trabalhos para o exterior, para o interior da cidade? “Isso seria um gesto de
falsa rebeldia”, responde o curador. “Não faz sentido, neste contexto instalar
e pintar um muro numa rua da cidade. Seria uma situação de extrema hipocrisia.
Esta é uma exposição que decorre numa instituição. É mais transparente e
honesto propor essas obras no interior da exposição, com os limites possíveis,
do que ir para os subúrbios”. A presença ameaçadora de “Teoria”, do Eduardo T.
Basualdo, sobre as nossas cabeças, no foyer da Fundação, parece dar razão ao
curador. (Jornal Público)
Sem comentários:
Enviar um comentário