Se
Eu Fosse Ladrão... Roubava, o filme-testamento de Paulo Rocha que agora, já
postumamente, chega às salas de cinema, é o fim de uma obra iniciada na década
de 1960 com duas obras-primas agora restauradas e também de regresso ao
circuito comercial, Os Verdes Anos e Mudar de Vida. Dados a ver
em conjunto, estes três filmes iluminam o círculo perfeito da obra do cineasta.
Faz
um sentido especial a chegada ao circuito comercial, em simultâneo, do último
filme de Paulo Rocha, Se Eu Fosse Ladrão… Roubava, e das suas duas
primeiras longas-metragens, Os Verdes Anos e Mudar de Vida,
estes dois títulos dados a ver em imaculadas versões recentemente restauradas
pela Cinemateca Portuguesa com supervisão do realizador Pedro Costa.
E
faz um sentido especial porque, se na obra de Paulo Rocha tudo se liga a tudo,
e os seus filmes, mesmo espaçados no tempo, se estão sempre a reencontrar uns
aos outros em rimas, ecos e repetições, Se
Eu Fosse Ladrão… Roubava, que a dado passo o realizador não pode ter
deixado de assumir como um verdadeiro “filme-testamento” ou “filme-súmula”, é
uma obra inteiramente centrada nessas ligações, uma obra que atira luz
sobre elas, e um filme que, em mais do que um sentido, volta incessantemente ao
princípio – inclusive, e tratando da história do pai de Paulo Rocha, a uma
origem familiar – para unir, num círculo perfeito, “fim” e “princípio”. Ora,
fim e princípio duma obra, em circulo perfeito, é o que a exibição conjunta
destes três filmes expõe, e propõe.
Manoel
de Oliveira, por sua vez no seu “filme-testamento” há bem pouco tempo revelado
publicamente (Visita ou Memórias e Confissões), refere a dado passo a sua
admiração por Paulo Rocha, o cineasta português que mais apreciava. Não deixa,
já agora, de ser justo notar o simbolismo latente no facto de a apresentação
pública do filme de Rocha (depois de exibições no Festival de Locarno e na Cinemateca)
suceder tão pouco tempo depois das primeiras exibições públicas deVisita...,
como se isso reatasse um diálogo entre os dois. É certo que Rocha
retribuía a estima de Oliveira, de quem foi assistente no Acto da
Primavera e que talvez tenha sido, com António Reis, quem mais
directamente reflectiu a importância matricial desse filme para o moderno
cinema português.
Rocha
foi um cineasta dos elementos, das tensões “telúricas”, da terra e do mar (como
admiravelmente mostra, por exemplo, Mudar de Vida), mas também foi um
cineasta da representação e do ritual, dados como chave para a “codificação”
(ou “descodificação”) do real. A sua obra será sempre um bom ponto de partida
para mostrar a diferença entre o que é ser “realista” (que Rocha foi sempre) e
o que é ser “naturalista” (que Rocha nunca foi). A sua predilecção pelas formas
da cultura japonesa – o cinema, o teatro, a pintura – mas também pela arte
modernista (o seu filme sobre Amadeo de Souza-Cardoso, Máscara de Aço
Contra Abismo Azul, feito em 1988) são outras manifestações precisas dessa
diferenciação.
Um
tempo em conserva
Quando
vemos hoje Os Verdes Anos (1963)
ou Mudar
de Vida (1966), há um apelo muito imediato. O do tempo que ficou “em
conserva” nesses filmes, o retrato que eles propõem duma época específica de
Portugal. A Lisboa cinzenta dos Verdes Anos, ainda a expandir-se pelo
campo em volta, as ruas e os cafés, as vidas dos que vinham do campo para
avançar pela cidade, como o sapateiro (Rui Gomes) e a sopeirinha (Isabel Ruth)
que compõem o casal protagonista.
Em Mudar
de Vida, que não deixa de ser de vários modos um “reflexo” do primeiro filme de
Rocha, a província (a região de Ovar, a que o realizador estava familiarmente
ligado), as vidas dos pescadores, a sombra da guerra colonial (de onde voltava
o protagonista). Tudo isto, toda esta precisão (“sociológica”, se quisermos), o
tempo não fez mais do que salientar e reforçar, e este sentido de justeza
também é, obviamente, a marca de um grande cineasta.
Mas
que não deve esconder outros aspectos, mormente a extraordinária construção
dramatúrgica desses filmes, o modo como todos os seus elementos, sobretudo
aqueles mais directamente arrancados ao “real” (por exemplo, em Mudar de
Vida, a sequência da festa popular), se inserem numa progressão narrativa
impecável, alimentada por pulsões e mais pulsões, invisíveis mas pressentidas,
e frequentemente de sinal contrário – é essa violência, sanguínea,
contraditória, inexplicável, que toma conta do final de Os Verdes Anos,
por exemplo, esse filme que acabando embora com a morte é um filme pleno de
vida. Nessa perspectiva, Mudar de Vida, sendo mais duro e mais árido do
que Os Verdes Anos, é um filme mais optimista, a fazer bem jus ao título:
a célebre fala final do protagonista, “ainda temos braços”, é uma promessa de
vida, de futuro, um caminho de superação diametralmente oposto ao fechamento,
dir-se-ia “subterrâneo”, para que tendem Os Verdes Anos.
Num
caso como noutro, e como se verificaria ainda em muitos momentos da obra de
Rocha (O Rio do Ouro sendo um caso evidente), esse outro aspecto
fundamental da obra do realizador, e que muito directamente cria uma ligação com Acto... de
Oliveira, aparece em pleno: o seu interesse pela cultura popular, pelas formas
de expressão populares, dadas menos como “documentário” do que como “teatro”,
sempre em sofisticação e ritualização. Se eu Fosse Ladrão… Roubava é
espantoso, entre outras coisas, pela forma como traz isto para o centro do
cinema de Paulo Rocha.
Mais
do que apenas “autobiografia”, e dada a presença nele de uma multitude de
excertos de filmes do realizador, é quase um filme de “crítica” – e se não é
caso inédito andará lá próximo, mas não nos lembramos de nenhum realizador (nem
mesmo Godard, que tanto se tem citado e revisto nos seus últimos filmes) que
tenha feito assim, desta maneira, um filme sobre a sua própria obra.
Mas
na constante fusão entre a ficção filmada contemporaneamente (a história do pai
de Rocha e do seu desejo de “mudar de vida” e partir para o Brasil) e os ecos,
muito concretos, trazidos pelos excertos dos seus filmes, é como se o
realizador propusesse essa questão, a da expressão popular (as canções, por
exemplo), como centro emanador e inspirador do essencial da sua obra.
Assim
articulados, não é sem espanto que percebemos que filmes que pareciam tão
distantes como, por exemplo, Os Verdes Anos e O Rio do Ouro, se
tocam porventura mais do que o que supúnhamos. Ou que entre o cansaço do
protagonista de Mudar de Vida e o cansaço de Venceslau de Moraes em A
Ilha dos Amores há mais em comum do que julgaríamos.
Se
Eu Fosse Ladrão... Roubava é a análise filmada da obra de Rocha que
ninguém fez, mas feita como só ele a podia fazer – sem auto-celebração, com
ironia, e dando todo o destaque à matéria (actores, paisagens, canções) de que
o seu cinema se fez. No fim, a despedida: “Não tenhas medo." Como se a
morte fosse só o regresso ao princípio. (Jornal Público – 14.Maio.2015)
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