“A
ficção está acima da verdade. Num outro patamar moral e estético, artístico. A
verdade na memória remete para uma verdade mais objectiva, algo que terá
acontecido. Terá ele visto? Terá ele dito? Terei sentido? Será que fomos? Eu
adoro a memória. A nossa vida acaba por ser só memória. Está sempre a ir embora
a todo o tempo, a mudar.”
As
palavras foram ditas no final de Abril deste ano por James Salter, a quem
chamavam o escritor dos escritores. Foi numa entrevista sobre o seu último romance, e o
primeiro que publicou em Portugal: Tudo o que Conta (Livros do
Brasil), uma reflexão sobre a passagem do tempo a partir da perspectiva de um
homem que não queria ter uma existência comum. A vida passou e esse homem olha
para ela, reconstruindo-a com a memória. A memória que passa, que faz que o fez
dizer : “a nossa vida está sempre a ir embora”.
A
revista Lire considerou Tudo o que Conta o melhor romance
estrangeiro publicado em França em 2014 e dedicou-lhe a capa. Pouco tempo
antes, o jornal The New York Times escrevia que era um dos escritores
essenciais da literatura norte-americana. James Salter morreu na madrugada de
sexta-feira. Tinha feito 90 anos no passado dia 10 de Junho.
A
voz algo trémula, os olhos de uma frontalidade que podia intimidar, sorriso
desenhado no sobrolho, esperava na paragem a camioneta vinda de Nova Iorque. Em
Bridgehampton, pequena vila de Long Island que multiplica a população no Verão,
há uma rotina de província. A paragem do expresso que chega e parte mais ou
menos de duas em duas horas é um ponto de encontro e de trocas. De encomendas,
de abraços. Salter esperava a jornalista enquanto lia um livro: Do Lado de
Swan, de Marcel Proust. Entrou depois no velho Saab e conduziu uns cinco
minutos até à casa de madeira castanha onde vivia com a mulher, a jornalista
Kay Eldredge. Era ali que continuava a escrever, diariamente, menos horas do
que antes, mas num ritmo constante. Contos, ensaio, crítica, argumento,
romance. Era um escritor de escrita lenta.
Tudo
o que Conta demorou-lhe trinta anos e teve várias versões até lhe sair
como queria. Foi fazendo outras coisas. Além da literatura, ensinava escrita.
Desde 1956, ano em que se estreou com The Hunter, publicou seis romances,
três colectâneas de contos, um livro de memórias — Burning the Days (1997)
—, ensaios; escreveu quatro argumentos para cinema — onde se destaca o filme Downhill
Racer, com Robert Redford, em 1966 —, um livro de poesia, e finalmente em 2013
apareceu com Tudo o que Conta. Talvez o exemplo mais brilhante da escrita
de Salter.
“Não
é um livro biográfico, mas tudo o que eu sei está aqui”, declarou então numa
conversa em que tanto quanto responder a perguntas procurava respostas. Queria
saber de novos autores, dos que chegam à Europa. E dos que a Europa tem e não
chegam à América. E sobre a sua escrita dizia que não sabia bem. “Gostava de
poder dizer qualquer coisa mágica”, continuava. Qualquer coisa sobre esse
processo que, no seu caso, tinha qualquer coisa a ver com respiração, música,
um ritmo, e com a leitura em voz alta do que ia fazendo. Seria harmonia? Ele
levantou as mãos no ar, imitou o gesto de um maestro a marcar o compasso e
repetiu: “Pam, Pam, Pam”, para depois cruzar as mãos e referir que não há magia
ou milagre: “Dá muito trabalho.”
A
escrita de James Salter, nome literário de James Horowitz, antigo coronel da
força aérea norte-americana, continha uma clareza e elegância que muitos
escritores admiravam. Graham Green, Vladimir Nabokov, Richard Ford, John
Irving, Bret Easton Ellis, Jay McInerney elogiaram-lhe várias vezes a concisão,
a palavra certeira, os recursos que permitiam que quase tudo o que dissesse
parecesse simples e nessa simplicidade fosse avassalador. Michael Dirda
escreveu um dia no The Washington Post que quando quer Salter “é
capaz de nos partir o coração com uma frase”. Era também um caso exemplar em
algo que não é literatura, mas determina um percurso literário: um escritor sem
vendas raramente consegue ter importância, mesmo que a tenha. Salter tinha-a,
mas os seus livros nunca foram best-sellers.
Foi
pela literatura que James Salter deixou o exército. Natural de Passaic, estado
de Nova Iorque, onde nasceu a 10 de Junho de 1925, filho de um vendedor de
imobiliário, cresceu em Manhattan, fez o liceu numa escola privada no Bronx,
onde foi colega de Jack Kerouac e, para fazer a vontade ao pai — um antigo
militar —, estudou em West Point. Serviu no exército até 1957. Já tinha
publicado The Hunters e queria tentar viver da literatura. Mudou de
vida e de nome. Fala disso sentado numa poltrona junto à janela. Entrava uma
luz de manhã de Primavera com chuva. Ele pousara na mesa em frente Do Lado
de Swan. Voltava a livros antigos. Estava a descobrir alguns a que sempre se
mostrara relutante. Debaixo do Vulcão, de Malcolm Lowry era a sua última
paixão literária. Lera-o no México, onde passava os invernos para escapar ao
frio de Nova Iorque. “São livros formadores”, dissera, sem nunca se alongar nas
suas coisas: a capacidade de observação, a atenção ao outro, os elogios. A
lucidez da escrita é a mesma da conversa. (Jornal Público)
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