Tenho saudades da minha
madrinha a queixar-se de alguma coisa enquanto lavava a loiça num alguidar. Não se queixava da loiça, apesar do
muito que lhe custava manter-se de pé, queixava-se do inverno, maldito inverno,
ou queixava-se da morte, esta vida não presta para nada, porque tinha morrido
algum homem, que era tão novo, pouco mais de oitenta anos. Tenho saudades do
toque de finados da igreja da minha terra. Ecoavam no adro, espalhavam-se por
cima de todos os telhados e chegavam até ao campo, onde se dissolviam na
aragem.
Tenho
saudades do meu padrinho a carregar bolsos cheios de moedas de cinco escudos,
que trocava por copos de vinho tinto nas tabernas. Até a dizer bom dia ou
quaisquer palavras simples, era capaz de escolher expressões que acrescentavam
humor e que nunca agrediam. As portas das tabernas eram sempre um buraco de
sombra na cal. O cheiro do vinho estava entranhado nas paredes. Tenho saudades
do barulho que fazia o vidro grosso dos copos vazios a bater no mármore. Às
vezes, quando se chegava a essas vendas, não estava ninguém. Então, era preciso
bater com a palma da mão no balcão e chamar.
Tenho
saudades de ver a minha madrinha a pentear os cabelos fracos ao espelho do
lavatório. Molhava os dentes do pente na água da bacia. Tenho saudades de caminhar
ao lado do meu padrinho nas manhãs de verão, ao rés da parede, os dois cobertos
pela sombra. Fazia-me perguntas engraçadas acerca das hortas onde eu e os
outros rapazes sabíamos que havia boa fruta para roubar.
Através
da distância do tempo, sou ainda capaz de ouvir as suas vozes. Enquanto escrevo
estas palavras, ouço-os a repetirem frases que me disseram antes, quando
estávamos no mesmo lugar, talvez sem entendermos completamente o enorme valor
de estarmos juntos. Ouço o meu nome dito pelas suas vozes, pela maneira
especial como cada um deles o dizia. Essa lembrança aumenta ainda mais as
saudades. E, no entanto, espero que o futuro nunca me tire essa memória.
Prefiro esquecer episódios, histórias, dias inteiros de cismas, do que deixar
de ser capaz de ouvir a voz dos meus padrinhos. A minha madrinha a chamar-me, o
meu padrinho a chamar-me.
Hoje,
ter saudades desse tempo é espécie de uma felicidade enorme por tê-lo vivido,
por saber como foi. Sinto falta dos meus padrinhos porque os tive, foram meus
e, através das saudades que sinto em dias como hoje, continuam a ser meus
padrinhos, mesmo que os sinos da minha terra já tenham tocado por eles há
tantos anos.
Mesmo
que fosse possível, nunca quereria deixar de sentir saudades dos meus
padrinhos, esses velhos que me encheram a vida inteira com as suas certezas,
com as suas dúvidas também, com a sabedoria e com os erros que fui capaz de
aprender.
A
saudade não é tristeza, é comoção.
A
saudade é o que fica do amor quando perdemos todo o seu lado físico, deixámos
de estar, deixámos de tocar, há uma barreira inultrapassável de espaço ou de
tempo, mas o amor continua, permanece. A saudade é esse tipo de amor.
A
saudade é o amor.
PORTUGAL MAGAZINE – José Luis
Peixoto – Janeiro/2016