Jane
Austen ainda tem os seus (poucos) detractores, que talvez lhe não perdoem (nem
compreendam) que, a partir de uma tão limitada e doméstica ‘experiência de
vida’, tenha escrito seis romances canónicos. Mas, duzentos anos após a sua
morte, o que sobretudo surpreende é que a multidão de leitores (e de outros
fanáticos admiradores) da autora de Persuasão não tenha parado de crescer. E a
obra da escritora inglesa soma já uma tal quantidade de edições e traduções, de
adaptações e versões (cinematográficas e televisivas), de estudos e teses, de
citações e homenagens, de paródias e recriações (literárias e outras), que,
quando eu soube que o romance de estreia de Helena Vasconcelos revisitava o
“universo” de Austen, não consegui deixar de abordá-lo com alguma inquietação.
Que depressa se revelou infundada. Não Há Tantos Homens Ricos Como
Mulheres Bonitas Que os Mereçam é, no seu programa algo provocatório e na
sua quase perfeita execução, um exímio romance (podem aproveitar a frase em
futuras badanas).
A
protagonista é uma jovem mulher da classe média lisboeta, com pais cientistas
muito viajados e casa nas Avenidas Novas, que, “contrariando o espírito do
tempo, decidiu seguir uma carreira dedicada ao estudo das Humanidades”. Não
contente com isto, Ana Teresa, assim se chama a heroína, que “não apreciava o
protagonismo tão definidor da sua época” e era “pouco dada a entusiasmos
desnecessários”, decidira seguir o caminho “espinhoso” de “valorizar a sua
própria banalidade”. Adiante se dirá que “ansiava por um casamento com um tipo
normal, heterossexual de preferência, e imaginava uma vida tranquila e
rotineira” (p. 140). Prosseguindo o retrato, sem perda de tempo nem divagações,
Ana, “de acordo com os padrões” actuais, não seria uma “beldade” e “por ser
discreta e bem-educada não constituía uma ameaça nem causava rivalidades
incómodas”. Leitora “voraz”, que “aprendera quase tudo nos livros”, terá
aprendido com Jane Austen que o “prazer sensato” não só é alcançável como é
também desejável. E eis que a nossa austeniana heroína (Ana Teresa também quer
ser feliz à sua maneira, e não lha falta sensibilidade, nem bom senso)
duplamente, e com malícia, nos interpela e provoca: ao fazer da banalidade de
uma vida doméstica imaginada um ideal (tão contrário às vaidades deste século)
e ao propor-se guiar a sua mesma existência pela “filosofia expressa por Austen
nos seus romances”. Tal fé na literatura talvez seja quixotesca, mas Ana
Teresa, ironicamente, tem os pés e a imaginação bem assentes na terra e parte
para Londres. Quer escrever uma tese sobre Austen e sobre a felicidade.
A
primeira parte do romance, perfazendo dois terços das cerca de trezentas
páginas do volume, trata das andanças da heroína por Inglaterra, em busca da
vida e da obra de Jane Austen. A narração é feita na terceira pessoa, por um
narrador insuspeito e seguro, com sobriedade e clareza, muito saudavelmente
desprovidas de qualquer ênfase. Por tão raro, o feito até parece novidade.
Correm paralelamente, a história de Ana e a de Jane. Nenhuma delas parasita a
outra. E tal equilíbrio, em casos semelhantes, não é menos raro. As duzentas
páginas passam num ápice.
Regressada
a heroína a Lisboa, há uma evidente alteração do tempo e do ritmo do romance,
na segunda parte e na brevíssima terceira. Surge uma personagem secundária que
em alguns segmentos assumirá, a partir daí, a narração. Esta personagem, um
ex-professor de Filosofia Política que ganhou muito dinheiro escrevendo best-sellers (de
ficção, certamente) sob pseudónimo, servirá também, mas não fundamentalmente,
para ilustrar um olhar “misógino” sobre a autora de Orgulho e Preconceito.
E também Marianne, a avó de Ana Teresa, que já conhecemos desde a primeira
parte do romance, mulher que vem da geração das utopias e que preferiria que a
neta “se entregasse a Shakespeare” e não à prudente (para não dizermos
conformista) Austen, desata a contar a sua própria história. Esta inesperada
dispersão de vozes narrativas desloca o horizonte da narração para uma antiga
história de amor vivida por Marianne e agora, muitos anos depois, retomada.
Culpa das “redes sociais”. Porque Marianne, não sendo austeniana, acredita em
finais felizes. Esta mudança de foco induz também um olhar retrospectivo sobre
certos episódios da primeira parte do livro. Há, porém, uma perceptível
precipitação do romance em direcção ao seu fim. Que, embora caprichoso, não nos
proíbe que imaginemos a nossa heroína, despachada a tese sobre Jane Austen e a
felicidade e acomodando-se à vida lisboeta (“Quem disse que Lisboa é uma cidade
bonita?”), não nos proíbe, dizíamos, que imaginemos a nossa heroína feliz. Pelo
contrário. (Jornal Público – Mar.201)
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