Cresceu
indeciso entre ser astronauta, jogador de basebol ou designer de
videojogos. Mas as mais de 90 milhões de cópias de videojogos vendidas em todo
o mundo e os 3,6 mil milhões de euros em receitas parecem dar-lhe razão na
escolha. O nome Chance Glasco pode não lhe dizer nada, mas se falarmos de Call
of Duty, da empresa Infinity Ward, já compreenderá os números.
Aos 22 anos, Glasco tornou-se o criador de um dos jogos de first-person
shooter mais famosos de sempre, onde as missões de guerra decorrem
sempre na primeira pessoa e a câmara nunca sai dos olhos do jogador.
Actualmente a viver no Rio de Janeiro, o norte-americano Glasco, 35 anos, tem
saltado de conferência em conferência, de país em país, e é em Lisboa que o
encontramos, a convite da escola Restart.
A
inspiração para o Call of Duty chega-lhe da infância. Passou o tempo
a construir fortes no meio do campo que lhe rodeava a casa nos Estados Unidos.
Com três amigos que o acompanharam até à faculdade, desenvolveu personagens e
histórias que inspiraram o jogo. Hoje, o co-fundador da Infinity Ward abandonou
a empresa e já nem sequer joga o franchise que ajudou a criar. Os
seus favoritos são os primeiros dois jogos, Call of Duty eCall of
Duty 2, cuja história se inspira na Segunda Guerra Mundial, mas desde
então a desilusão com a indústria dos videojogos é real e por isso, nos tempos
livres, virou-se para os jogos vintage.
Quando
joga online mantém-se anónimo, até porque “já não é tão bom como
era”. Além disso, “o facto de alguém ser um engenheiro automóvel não o torna um
bom piloto”, sublinha. Não assume nenhuma posição em particular, mas não gosta
de jogar no lugar do atirador. Além disso, prefere jogar com amigos,
porque considera que a comunicação durante o jogo torna-o “muito mais
interessante”. Numa conversa sobre o passado, Chance vira-se para o futuro da
indústria que, acredita, passará pela realidade virtual. Com essa certeza,
apostou na criação de uma empresa que desenvolve simulações para plataformas de
realidade virtual, a Doghead Simulations.
Com
apenas 15 anos, arriscou aquela que foi a sua primeira tentativa de lançar um
videojogo, mas sem sucesso. Call of Duty chegou sete anos depois e
tornou-se um dos videojogos mais famosos do mundo, mas Chance não leva
“demasiado a sério” nem as distinções nem as críticas dos fãs.
O trailer do
novo jogo da saga, Call of Duty – Infinity Warfare, que saiu em Maio
deste ano e já não foi feito por ele, é o segundo vídeo com mais “não gosto” no
YouTube. São mais de três milhões que chumbam o vídeo contra as poucas mais de
três mil dezenas que deram nota positiva ao que já se conhece sobre o novo
jogo. Pior do que este trailer, só mesmo o videoclipe da música Baby de
Justin Bieber. O que correu mal? “Nada. Quando algo se torna tão falado e
famoso, há sempre alguém que vai odiar." O mesmo acontece quando lhe falam
da distinção conquistada há dois anos, quando o Guiness World Records
considerou Call of Duty a melhor série de jogos defirst person
shooter de sempre, derrotando Grand Theft Auto,Pokémon ou Super
Mário. “O que é que torna uma coisa a melhor do mundo? Ninguém vai discutir
qual é a melhor cor”, desvaloriza.
Uma
das perguntas que mais lhe fazem é como se sente por ser odiado por tantas
mães, que vêem os filhos agarrados ao computador, horas a fio, empenhados
“naquela” missão, a adiar o jantar ou as horas de estudo porque “não podem
fazer uma pausa" na sua missão de "destruir o inimigo”. A resposta
chega sem dar espaço para contra-argumentações. “Os pais têm de ser pais. Os
jogos estão classificados como conteúdo para maiores de idade e existe uma
razão para que essa classificação exista”, justifica. “Ninguém diz a um obeso
que a doença irá ser tratada tornando a comida menos saborosa. E o mesmo se
aplica aos jogos. O jogo foi pensado para adultos e foi desenvolvido para ser
um jogo divertido." Não faz sentido diminuir a sua qualidade para se
combaterem eventuais vícios, continua Glasco.
Quando
deixou a Infinity Ward, a equipa estava a trabalhar numa versão espacial do
jogo, mas Glasco, cuja varanda tinha vista para o Centro Espacial John F. Kennedy, na
Florida, e apesar das suas antigas ambições de “homem do espaço”, chumbou a
proposta. “Estava farto do jogo e por isso pensei: vamos ser ridículos. Vamos
colocar dinossauros gigantes, pessoas a montarem dinossauros, armas de laser”,
justifica. O criador de Call of Dutyconfessa que por esta altura já sabia
que iria desistir da empresa, mas não o quis fazer “sem deixar a melhor ideia
de sempre”, pelo menos para ele.
“Falta
inovação na indústria de jogos Triple A”,diz referindo-se à classificação que distingue
os jogos de elevada qualidade. “Passa-se o mesmo na indústria da música. Se
lançares um álbum muito popular, se venderes três milhões de cópias o mais
provável é que te peçam para fazer um álbum igual. E foi isso que aconteceu com
o Call of Duty e todos os outros jogos Triple A”, conta. “A partir do
momento em que há muito dinheiro investido, as probabilidades de os
programadores criarem conteúdo inovador diminui porque o risco é maior.”
Para
Glasco, Modern Warfare 2, lançado em Novembro de 2009, foi “o último jogo
com cenários realistícos” da série Call of Duty, e o último que se
lembra de ter jogado. Desde então, todas as versões lançadas parecem ser feitas
pelo “Michael Bay [realizador de Transformers ] dos videojogos”,
isto é: cheias de explosões e efeitos especiais e com dispendiosos orçamentos
de produção. Desiludido com o rumo do jogo, Glasco decidiu sair da Infinity
Ward da Activision e dedicou-se ao desenvolvimento de aplicações que têm por
base cenários de realidade virtual.
Para
já, o primeiro software em que está a trabalhar está a ser
desenvolvido para ser utilizado por grandes empresas. Para Chance Glasco, a
realidade virtual é o presente da comunicação. Se for necessário marcar uma
reunião, em vez de se gastar dinheiro em deslocações pode “marcar-se esse
encontro na realidade virtual”, sugere o antigo criador de videojogos. Fala
naturalmente, como se a realidade virtual fosse uma conhecida e movimentada
avenida na cidade, e defende que a realidade virtual deverá começar a ser
adaptada de uma forma generalizada num curto período de tempo.
“O
facto de vermos as nossas mãos personificadas no nosso avatar permite-nos
expressarmo-nos de uma forma muito mais natural através da linguagem
corporal." Acredita que esta maneira de comunicar é mais natural do que um
encontro feito por Skype, por exemplo. “E isso é fundamental até mesmo para um
ambiente mais saudável entre equipas de trabalho”, defende. “As pessoas tendem
a pensar a realidade virtual como uma funcionalidade exclusiva dos videojogos”,
o que é bastante limitado. “A realidade virtual permite-nos trabalhar com
pessoas que estejam doentes, tratar traumas ou até mesmo apostar na melhoria de
condições no ensino à distância”, exemplifica.
Jornal
Público - Julho 2016