Se
for uma história de amor, "O Fim da Aventura", de Graham Greene, é
uma história de amor que, no fundo, é sobre a fé. Embora também seja uma
história de fé que, no fundo, é sobre o amor.
Oh,
não há dúvida de que Sarah tinha outros amantes. Antes e depois de Bendrix -
talvez até Dunstan, esse alto funcionário público, chefe de Henry, que não
chegamos mais do que a entrever. Mas se o triângulo amoroso formado por Maurice
Bendrix, Sarah Miles e o entediante marido desta, Henry, se torna a certa
altura um quadrado, o quarto vértice não está ali para perder. Não podemos
procurá-lo no mundo do concreto. Não podemos sequer tocar-lhe. Chamamos-lhe
Deus porque é isso que ele é: o deus cristão, o deus do catolicismo, e é nas
suas mãos, para desgraça de todos os demais, que Sarah coloca o coração.
A
obra-prima de Graham Greene, publicada originalmente em 1951, regressa às
livrarias no momento ideal, porque todos os momentos são ideais para os grandes
marcos da literatura ocidental e do mundo. Traz agora a chancela da Dom
Quixote, mas a mesma tradução e o mesmo prefácio com que Jorge de Sena o
apresentou a Portugal, em 1953, com edição da Estúdios Cor.
Foi
filmado duas vezes: a primeira em 1955, por Edward Dmytryk, com Deborah Kerr,
Van Johnson e Peter Cushing nos principais papéis; e a segunda em 1999, por
Neil Jordan, com Julianne Moore, Ralph Fiennes e Stephen Rea. Mas, embora a
linguagem do cinema seja outra e cada obra contenha a sua integridade para lá
da daquela em que se baseia, em nenhum dos casos atinge a visceralidade e -
sobretudo - o dilema existencial do romance de Greene.
Na
verdade, O Fim da Aventura não é uma história de amor, tanto quanto
uma história de ódio. Isso mesmo declara Bendrix, logo no arranque da sua parte
do jogo polifónico: "E assim é isto um memorial de ódio muito mais do que
de amor." Se for uma história de amor, O Fim da Aventura é uma
história de amor que, no fundo, é sobre a fé. Embora também seja uma história
de fé que, no fundo, é sobre o amor.
De
qualquer maneira, não tem princípio nem fim, como anunciam as magistrais
palavras com que Graham Greene o abre: começa num momento que o autor escolhe
arbitrariamente, ou (melhor ainda) lhe é imposto, como se uma mão lhe segurasse
o braço. Porque também Deus é desprovido de origem e destino, e contar a sua
história, a pobres-diabos de fraco entendimento como são os homens, exige a
sempre vil convenção da técnica.
A
intriga centra-se na relação clandestina entre Maurice, um escritor de razoável
sucesso crítico e fracasso comercial, e Sarah, a mulher de um burocrata de que
o primeiro se aproxima para preparar uma personagem do romance que tem em
curso. Muito em breve, porém, deixam de ser as rotinas do funcionário público a
preencher o seu dia-a-dia. Entrada em cena Sarah, arrebatadoramente bela, os
amantes não tardam a consumar-se, num romance tórrido a que o blitz de Londres
(1940-41) serve ao mesmo tempo de pano de fundo e de manobra de diversão.
De
repente, porém, ela interrompe a relação. Maurice acabara de ficar parcialmente
preso debaixo da porta de um apartamento que as bombas nazis haviam feito
explodir. Ao levantar-se, atordoado, ele percebe que o amor se concluiu. E só
dois anos de perda e luto depois, ao encontrar-se casualmente na rua com Henry,
que lhe pede ajuda no despiste de eventuais derivas adúlteras da mulher, vem a
contratar o detetive privado que fará luz, a ele e ao leitor, sobre a
verdadeira natureza do fim da sua aventura.
A
história é contada num mosaico de analepses e prolepses e alternando a
consciência de Maurice com o diário de Sarah e fugas de diferentes perfis às
interioridades de Henry, Parkis (o detetive privado) ou um certo Smythe,
monstruosa figura física e dedicado prosélito ateísta, de métodos - bem vistas
as coisas - não muito distintos dos dos contemporâneos vendedores do
ama-te-a--ti-próprio e restantes bem-aventuranças do pós-modernismo
desesperado.
Mas,
se é indiscutível que constitui a sua mais bem conseguida experiência de
interceção entre os muitos géneros que praticou - o romance de espionagem, o
romance de entretenimento, o romance político, o romance polemista, o romance
religioso -, a verdade é que nunca, nele, Graham Greene morde o seu próprio
isco (quão tentador terá sido oferecer a Parkis o protagonismo de um desenlace
inesperado, talvez motivado pelo amor também...), mantendo-se fiel ao plano: a
impossibilidade daquele amor a partir da entrada do amante omnipotente em cena
e, perante essa omnipotência, a inevitabilidade da fé, ainda que disfarçada do
ódio mais demolidor e extenuante.
"Apanhei
a fé como quem apanha uma doença", diz Sarah, numa carta deixada a
Maurice. "Caí nos braços dela, como caíra nos do amor. Nunca amara como te
amei a ti, e nunca acreditei em nada como acredito agora. Tenho a certeza.
Nunca tinha tido uma certeza."
Um
romance poderoso, útil para compreender a fé católica do século XXI como todas
as fés antes e depois dela, e que nas edições anglo-saxónicas Greene dedica a
Catherine (ou apenas "C.", no original britânico). Isto é: Lady
Catherine Walston, sua afilhada e amante, e que, como Sarah Miles, em vez de
deixar o marido, escolheu a santidade.
Sarah
escolheu-a por amor. Talvez a realidade não tenha sido tão reconfortante. (DN –
13 Ago 2016)
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