O
escritor mineiro Luiz Ruffato foi o herói da cerimónia oficial da abertura da
Feira do Livro de Frankfurt, que começa nesta quarta-feira e em que o Brasil é
o país convidado. Arriscou, pôs o dedo na ferida e foi aplaudido de pé.
Para
o brasileiro Luiz Ruffato “escrever é um compromisso”. O autor de “Estive em
Lisboa e lembrei-me de ti” (que é editado em Portugal pela Quetzal e Tinta da
China) quer “afectar o leitor”, modificá-lo, para transformar o mundo.
“Trata-se de uma utopia, eu sei, mas me alimento de utopias”, disse nesta
terça-feira, na cerimónia oficial de abertura da Feira do Livro de Frankfurt,
que este ano tem o Brasil como país convidado.
O
escritor de Minas Gerais foi escolhido para ser o orador literário da cerimónia
de boas vindas ao país convidado ao lado da presidente da Academia Brasileira
de Letras, Ana Maria Machado, naquela que é a mais importante feira mundial do
sector e que nesta quarta-feira abre portas. Fez um discurso que não deixou
ninguém indiferente, mostrando como o Brasil é um “país paradoxal”: “Ora o
Brasil surge como uma região exótica, de praias paradisíacas, florestas
edénicas, carnaval, capoeira e futebol; ora como um lugar execrável, de
violência urbana, exploração da prostituição infantil, desrespeito aos direitos
humanos e desdém pela natureza.”
Falou
do genocídio histórico dos índios, que em 1500 eram quatro milhões e hoje são
900 mil, das desigualdades sociais, da violência, do racismo, afirmando que a
história do Brasil se tem alicerçado “quase que exclusivamente na negação
explícita do outro, por meio da violência e da indiferença”. No final havia
gente a aplaudir de pé.
Emocionou,
por exemplo, a mais importante agente literária brasileira, Lucia Riff, uma das
veteranas de Frankfurt, e foi ao encontro do que pensa o escritor brasileiro
Paulo Lins, autor de Cidade de Deus e de Desde que o Samba é
Samba (ed. Caminho), que se sentiu muito bem representado e para quem o
discurso do colega mostrou “o Brasil como ele é”. “A gente fica passando essa visão
debaixo do pano, ele falou somente a verdade”, disse ao PÚBLICO, surpreendido
com a opinião daqueles que consideraram não ser a Feira do Livro de Frankfurt o
lugar para se fazer um discurso daquele tipo argumentando que só iria aumentar
o estereótipo. “Não seria o lugar?! Mas qual seria o lugar, no congresso
nacional brasileiro? Ainda mais tendo os escritores um compromisso com a
verdade.” Também o escritor Cristovão Tezza, autor do premiadíssimo O
Filho Eterno (ed. Gradiva) disse ao PÚBLICO ter sentido o discurso de Luiz
Ruffato como “muito autêntico e verdadeiro”, alegando que não reforçava o cliché.
Luiz
Ruffato começou com uma interrogação pertinente: "O que significa ser
escritor num país situado na periferia do mundo, um lugar onde o termo capitalismo
selvagem definitivamente não é uma metáfora? Para mim, escrever é compromisso.”
Lembrou o “mito corrente” da chamada “democracia racial brasileira”, de que não
houve “dizimação, mas assimilação dos autóctones”. “Esse eufemismo, no entanto,
serve apenas para acobertar um facto indiscutível: se nossa população é
mestiça, deve-se ao cruzamento de homens europeus com mulheres indígenas ou
africanas – ou seja, a assimilação se deu através do estupro das nativas e
negras pelos colonizadores brancos.” Silêncio na sala.
O
escritor continuou. “Até meados do século XIX, cinco milhões de africanos
negros foram aprisionados e levados à força para o Brasil. Quando, em 1888, foi
abolida a escravatura, não houve qualquer esforço no sentido de possibilitar
condições dignas aos ex-cativos. Assim, até hoje, 125 anos depois, a grande
maioria dos afrodescendentes continua confinada à base da pirâmide social:
raramente são vistos entre médicos, dentistas, advogados, engenheiros,
executivos, jornalistas, artistas plásticos, cineastas, escritores.” E lembrou
que 75% de toda a riqueza brasileira se encontra nas mãos de 10% da população
branca e apenas 46 mil pessoas possuem metade das terras do país. Disse que
“quem mais está exposto à violência não são os ricos que se enclausuram atrás
dos muros altos de condomínios fechados, protegidos por cercas eléctricas,
segurança privada e vigilância electrónica, mas os pobres confinados em favelas
e bairros de periferia, à mercê de narcotraficantes e policiais corruptos.”
Lembrou
que são “machistas”, ocupam “o vergonhoso sétimo lugar entre os países com
maior número de vítimas de violência doméstica”, e que são “hipócritas”, sendo
reveladores os casos de intolerância em relação à orientação sexual : “O local
onde se realiza a mais importante parada gay do mundo, que chega a
reunir mais de três milhões de participantes, a Avenida Paulista, em São Paulo,
é o mesmo que concentra o maior número de ataques homofóbicos da cidade.”
Mas
o discurso de Ruffato em Frankfurt terminou com optimismo. Além de referir a
conquista da sua geração, a democracia, voltou à pergunta inicial: “O que
significa habitar essa região situada na periferia do mundo, escrever em
português para leitores quase inexistentes, lutar, enfim, todos os dias, para
construir, em meio a adversidades, um sentido para a vida? Eu acredito, talvez
até ingenuamente, no papel transformador da literatura. Filho de uma lavadeira
analfabeta e um pipoqueiro semianalfabeto, eu mesmo pipoqueiro, caixeiro de
botequim, balconista de armarinho, operário têxtil, torneiro-mecânico, gerente
de lanchonete, tive meu destino modificado pelo contacto, embora fortuito, com
os livros. E se a leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma
pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a
sociedade.” (Jornal Público – 09.10.2013)
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