Ping Pong Pau é o que o Teatro Experimental do Porto foi fazer à
serra de Montemuro com os que lá estão. Depois de Gaia, onde fica até dia 27, a
peça segue para Palmela, Braga e Évora, entre outras salas do país real.
Uma das primas teve essa ideia brilhante de transformar a serração que
o avô deixou em herança na única loja de móveis do país em que o vendedor fala
em verso (o que pode ser ridículo, “mas vai trazer montes de clientes quando
passar no programa da manhã”). Um dos primos acha que isso é tudo “muito
bonito”, mas não tão prioritário como pendurar uma coruja empalhada à porta
“para manter os espíritos lá fora”. A outra prima concluiu, olhando para o
manual de feng shui, que “a oficina está toda errada” e não irá descansar
enquanto não mudar tudo de sítio. E o único primo que de facto sabe o que fazer
com a carpintaria – o mesmo de sempre, móveis, ainda que não haja já quem os
compre – está disposto a admitir que não tem unhas para competir com a Ikea (e
que seria ainda mais suicida passar a fazer colheres de pau, desde que as lojas
de chineses as vendem mais baratas do que a madeira).
Não é muito difícil perceber onde estamos em Ping Pong Pau, o
espectáculo que o Teatro Experimental do Porto (TEP) e o Teatro do Montemuro
apresentam até dia 27, de quarta a domingo, no Auditório Municipal de Gaia. É
mesmo o país real, o país do ajustamento (ou seja, o país das carpintarias
fechadas e da conversa fiada do empreendedorismo), e isso tanto vale para uma
das maiores (e das mais endividadas) cidades do país, como esta onde a peça se
estreou, como para o interior profundo, onde foi criada em cinco semanas de
trabalho intensivo, a maioria das quais debaixo de vários centímetros de neve.
Tal como a serração que os quatro primos (Inês Pereira, Abel Duarte,
Maria Teresa Barbosa e Eduardo Correia, por ordem de entrada em cena no
parágrafo anterior) tentam recuperar, talvez Portugal não tenha salvação. “Não
há solução para esta carpintaria, e por isso não há solução para este espectáculo.
É normal eu não ter soluções para dar e limitar-me a apontar problemas. Mas
neste caso é mais do que óbvio: não há futuro para uma serração numa aldeia do
interior de Portugal”, diz Ricardo Alves, o autor da peça, que aqui adapta a
acidez típica dos seus textos para a Palmilha Dentada, a companhia que tem sido
a sua casa, “à gramática e à estética muito específicas” do Teatro do
Montemuro. “Claro que, defeito meu”, acrescenta, “também quis pôr em Ping
Pong Pau uma reflexão sobre as mudanças e as angústias do momento, sobre
este drama de sermos terrivelmente periféricos e por isso obrigados a lidar com
fenómenos de que só nos chegam ecos distantes”.
Alguns desses ecos vêm da Suécia, via Ikea (palavra que põe o único
primo que sabe fazer móveis a uivar), outros vêm da China. São a maioria, neste
espectáculo que esteve para se chamar Chinatown e em que tudo –
título, texto, cenário, figurinos – concorre para criar uma banda sonora
declaradamente achinesada, sublinha o encenador e director artístico do TEP,
Gonçalo Amorim: “Queríamos fazer imaginar essa espécie de grande nuvem chinesa
que paira por aí, por um lado como um papão assustador, por outro com uma aura
de sabedoria que nos encanta também.”
No início, claro, não havia nada disso: apenas a “vaga ideia” de uma
serração, que depois de trabalhada durante dois dias com o autor, em regime de
laboratório, na serra de Montemuro, seguiu, como sempre nas criações da
companhia de teatro local, “o seu caminho natural”, explica Eduardo Correia. É
o processo habitual do Teatro do Montemuro, tal como é habitual o que acontece
depois da estreia: um grande calendário de apresentações um pouco por todo o
país real, que no caso passará por São Pedro do Sul (dia 28), Palmela (1 e 2 de
Março), Vinhais (7 de Março), Campo Benfeito (10 a 21 de Março), Castro Daire
(22 a 26 de Março), Braga (27 e 28 de Março) e Évora (2 e 3 de Maio).
À medida que vai assentando no palco, e fazendo o seu caminho pelo
mesmo território periférico que de certa forma documenta, Ping Pong Pau também
se transforma. Passando dessa “vaga ideia” de uma serração” a uma alegoria do
próprio teatro, e desse gesto aparentemente condenado ao fracasso que é repetir
a mesma coisa todas as noites (cada vez com mais cansaço, cada vez com mais
olheiras, cada vez com mais sulcos no chão). Os primos que Ricardo Alves atirou
para este Portugal made in China podem não conseguir salvar a
serração, mas também podem morrer – ou, melhor ainda, podem divertir-se – a
tentar. A realidade, diz o autor do texto, às vezes é “tão naïve quanto
isto”. (Jornal Público – 15.03.2014)
Sem comentários:
Enviar um comentário