quarta-feira, 30 de abril de 2014

O bom fotojornalismo no Museu da Electricidade.


Mais de 130 fotografias da exposição do concurso World Press Photo podem ser vistas até 25 de Maio.
Atrai-nos um olhar distante num rosto carregado. Surpreende-nos a resistência e o esforço dos músculos que sobressaem no corpo suspenso da atleta sueca de heptatlo, Nadja Casadei.
O seu fotógrafo, Peter Holgersson, apresenta-nos um conjunto de quatro fotos em que o preto e branco, melancólico, sublinha uma luta em duas frentes, ambas por um primeiro lugar: a competição contra a atleta da Finlândia e a batalha contra o cancro. A força da mensagem veiculada concede ao fotógrafo o 1º prémio na categoria Histórias de Desporto do concurso World Press Photo e pode ser vista a partir de quarta-feira no Museu da Electricidade, em Lisboa.
Além da fotografia vencedora do World Press Photo de John Stanmeyer, que vemos logo depois de subir as escadas da antiga Central Tejo, e da de Holgersson, podem também ser vistas perto de 130 fotografias das obras de outros 51 fotógrafos distribuídas pelas nove categorias do concurso.
Depois de comentar a foto de Stanmeyer - "uma história concreta", mas ambígua, que pode parecer a celebração da passagem do ano mas que representa afinal migrantes africanos a tentar apanhar o sinal de telemóvel na costa do Djibuti -, Femke van der Valk destacou o 1º prémio na categoria Natureza da autoria do fotógrafo da National Geographic, Steve Winter, que captou um puma no Griffith Park, mostrando o regresso destes felinos ao Oeste dos Estados Unidos nos últimos anos. Steve Winter, contou, levou 12 meses para apanhar o puma retratado.
A fotografia de Chris McGrath, capturada em Novembro de 2013 nas Filipinas, foi a vencedora do 1º prémio na categoria Notícias em Geral, mostrando a devastação causada pela passagem do tufão Haiyan mas também a esperança metaforizada pelos filipinos que fazem fila, tentando sair do país, sob um reconfortante arco-íris, conta o fotógrafo numa entrevista que pode ser ouvida através de uma aplicação desenvolvida para smartphones. A aplicação, que orienta o visitante pela exposição, pode ser descarregada de forma gratuita através do site da World Press Photo.
A comissária da exposição salientou também a fotografia com que Markus Schreiber concorreu enquanto foto singular para a categoria de Retratos Observados. O olhar decepcionado e triste de uma mulher no terceiro dia do velório do  antigo presidente da África do Sul, Nelson Mandela, valeu ao fotógrafo o 1º prémio desta categoria.
Os projectos de longa duração foram também salientados por Femke van der Valk, nomeadamente o do fotógrafo Peter von Agtmael, que recebeu o 2º prémio da categoria Retratos Observados, pelo acompanhamento do quotidiano de Bobby Henline, um sobrevivente do Iraque de 42 anos, que usa os seus ferimentos e experiência na guerra para fazer stand up comedy.
À edição deste ano do concurso World Press Photo concorreram 5754 fotógrafos de 132 nacionalidades, tendo sido avaliadas perto de cem mil fotografias.
O resultado da bilheteira da exposição do Museu da Eletricidade (cada bilhete custa dois euros) reverterá para o projecto Unidades Móveis de Apoio ao Domicílio (UMAD), da Fundação Gil, uma iniciativa que apoia crianças doentes. (Jornal Público – 30.04.2014)

sábado, 26 de abril de 2014

Livraria móvel de Lisboa vai editar inéditos de Pessoa.


A livraria móvel de Lisboa "tell a story" vai começar a editar livros ainda antes do verão, anunciou hoje um dos responsáveis do projeto, Domingos Cruz.
A livraria móvel, que funciona numa carrinha a circular por Lisboa a vender livros traduzidos de autores portugueses, passou a organizar passeios turísticos e prepara-se agora para ser editora, nomeadamente de poemas inéditos de Fernando Pessoa.
Em colaboração com o especialista na obra do escritor português, o colombiano Jerónimo Pizarro, vai ser lançado um livro com poemas de Pessoa "escritos em inglês e inéditos", disse Domingos Cruz.
O responsável falava aos jornalistas no âmbito da visita turística "Lisboa literária" e acrescentou que a editora vai lançar uma adaptação em inglês do "Livro do Desassossego", também de Pessoa, com uma escolha de passagens (do mesmo livro) que se concentram em Lisboa.
Por altura do Feira do livro, a nova editora quer também apresentar a primeira tradução do livro de Afonso Cruz, "Jesus bebia cerveja".

Durante algum tempo estas obras serão de venda exclusiva na livraria móvel, mas depois deverão ficar disponíveis nas lojas do aeroporto e em locais turísticos como o castelo da capital. (DN – 26.04.2014)

segunda-feira, 21 de abril de 2014

A British Pathé está no YouTube e o século XX apresenta-se perante nós.


A produtora disponibilizou todo o seu arquivo, registado entre 1896 e 1976. São 85 mil filmes e um total de 3500 horas de imagens.
O século XX exposto perante nós. O histórico: as duas grandes guerras, a revolução russa, as coroações. O artístico: Laurel & Hardy ou Elvis Presley em entrevista, George Orwell enquanto jovem estudante, Ernst Lubitsch em rodagem,uma exposição de Picasso, Alfred Hitchcock à conversa com Ingrid Bergman. O desportivo: os mundiais de futebol, os Jogos Olímpicos, corridas de cavalos. O mundano: crianças em campos de férias, cães que saltam a alturas incríveis, bulício na rua e homens suspensos a centenas de metros para limpar as janelas do Empire State Building.
85 mil filmes de que resultam 3500 horas de século XX (ou, para sermos mais precisos, 3500 horas de mundo, o do Ocidente, registado entre 1896 e 1976) totalmente disponíveis e partilháveis no canal do YouTube onde a British Pathé alojou todos os seus arquivos (https://www.youtube.com/user/britishpathe). O espólio da produtora fundada em Paris em 1896 pelo pioneiro do cinema Charles Pathé, e que abriu um escritório inglês em 1910 (a Associated British Pathé, detentora dos arquivos agora disponibilizados nasceria em 1933), fora digitalizado em 2002 e estava acessível no site www.britishpathe.com. Contudo, os administradores da produtora tinham a convicção de que o material que detinham era demasiado importante para estar restringido ao seu site. Num comunicado conjunto, a British Pathé e a Mediakraft, empresa alemã parceira no projecto, declararam que o objectivo é chegar a estudantes, professores e jornalistas, que verão, partilharão, e darão renovada circulação às imagens preservadas.
“A nossa esperança é que todos aqueles, em qualquer lugar, que tenham um computador, vejam estes filmes e os apreciem”, declarou Alastair White, director geral da British Pathé, citado pelo Telegraph. “Este arquivo é um tesouro inigualável em relevância histórica e cultural que nunca deverá ser esquecido. Carregar os filmes no YouTube pareceu-nos a melhor forma de o assegurar”, acrescentou. “Quer procurem a cobertura [noticiosa] da família Real, o Titanic, a destruição do [zepelim] Hindenburg, ou histórias bizarras de passados britânicos, isso estará no nosso canal. Podemos perder-nos nele durante horas”. Alastair White não está a mentir. E está longe de exagerar. Perdemos mesmo horas a viajar pelos filmes do British Pathé.
A televisão estava ainda a algumas décadas de distância, mas com os seus filmes de actualidades, exibidos antes das sessões cinematográficas a partir de 1908, a Pathé definia em grande parte aquilo que seria linguagem noticiosa televisiva. Os seus filmes, habitualmente curtos de duração (entre um e quatro minutos), ofereciam uma janela para o mundo. Se hoje é certo que, aconteça o que acontecer em qualquer lugar do mundo, haverá uma câmara, de telemóvel ou profissional, para registar o momento, nas primeiras décadas do século XX, era a Pathé que parecia estar em todo o lado. Vemos o Czar Nicolau II a abdicar, enquanto os soldados russos morrem de frio no rigoroso Inverno de 1917 e a população sai à rua para fazer a revolução. Vemos a bola de fogo impressionante em que se transforma o zeppelim Hindenburg à chegada a New Jersey, em 1935, vemos imagens da guerra iniciada quatro anos depois e da explosão atómica Hiroshima que lhe pôs fim. Descobrimos bem mais que essas imagens históricas. O século XX de inventores, trágicos ou gloriosos: um dos primeiros voos dos irmãos Wright está lá, bem como o primeiro e último do alfaiate francês Franz Reichelt, que saltou para a morte da Torre Eiffel, tentando provar que inventara um pára-quedas fiável.

É um outro mundo que se revela: o da Inglaterra campeã do mundo de futebol, o de Arnold Schwarzenegger que não era ainda Conan, o Bárbaro, muito menos Exterminador Implacável ou governador da Califórnia, mas apenas um monte de músculos reluzentes com um rosto juvenil erguido a Mr Universo em 1969. Um mundo não tão distante, afinal. Veja-se a notícia da invenção de um telefone sem fios, onde até se pode ouvir música – em que ano? 1922. E descubra-se que, tendo 3500 horas de filmes disponíveis e tanta História para investigar, um dos vídeos que a Humanidade online mais tem partilhado exibe um perfeito anónimo como protagonista. Leslie Bowles tinha 3 anos em 1935, pesava mais de sessenta quilos e era apresentado como o bébé mais gordo do mundo. Material perfeito para o frenesim de curiosidades, de vídeos de gatos a apanhados diversos, de que as redes socais se alimentam. Muito actual, portanto. (Jornal Público – 21.04.2014)

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Morreu Gabriel Garcia Marquez.


O escritor e jornalista colombiano, Gabriel Garcia Marquez, morreu esta quinta-feira. O Prémio Nobel da Literatura em 1982 tinha 87 anos e sofria de problemas respiratórios há vários anos. A informação foi avançada por vários órgãos de informação internacionais e confirmada pela família.
O autor de "Cem anos de solidão", que os amigos tratavam por "Gabo", tinha anunciado em 2009 que se retirava, e o livro publicado no ano seguinte, "Eu não venho dizer um discurso", reuniu apenas material disperso das suas alocuções em público, as quais iniciava invariavelmente com a frase "Eu não venho dizer [fazer] um discurso", informou na altura a editora Mondadori.
Em 2012, o seu irmão Jaime García Marquez dava conta de que lhe tinha sido diagnosticada uma demência, que perdera a memória e que não voltaria a escrever.

"Gabo", no verão de 1975, visitou Lisboa, para ver de perto a revolução que se desenrolava, e sobre a qual escreveu três reportagens para a revista "Alternativa", por si fundada. 
A sua bibliografia é de pouco mais de 30 títulos, entre romances, novelas, crónicas, material jornalístico e uma autobiografia, "Vivir para contarla" ("Viver para contar"), de 2002, tendo sido também argumentista com o seu amigo, o escritor mexicano Carlos Fuentes.
"O amor em tempos de cólera", "Notícia de um sequestro", "O outono do patriarca", "Ninguém escreve ao coronel" são alguns dos seus títulos na área de ficção, tendo García Marquez sido distinguido com vários prémios, entre os quais o Romulo Gallegos, Neustadt de Literatura e o Nobel.
O discurso que leu em Estocolmo quando recebeu o Nobel de Literatura, em 1982, "A solidão da América Latina", tornou-se um texto de referência da sua obra literária.
Em 2010, quando editou "Yo no vengo a decir un discurso", em comunicado afirmou: "Lendo estes discursos, redescubro como mudei e fui evoluindo como escritor".

Natural de Aracataca, na Colômbia, onde nasceu no dia 6 de Março de 1927, ficou a viver nesta cidade com os avós, quando os pais se mudaram para Barranquilla. Ultrapassou um cancro linfático diagnosticado em 1999. (rr.sapo.pt – 17.04.2014)

quarta-feira, 16 de abril de 2014



Separadas pelo tempo e pelo espaço, a cidade de Istambul e a região da Capadócia são dois pilares fundamentais para entender o fascínio da Turquia. José Luís Peixoto voltou rendido, sem se importar com as perguntas que ficaram por responder. (In Revista “Volta ao Mundo”)

domingo, 13 de abril de 2014

A vontade e o mundo.


Um dia, vou cansar-me de querer conhecer o mundo. Nessa altura, talvez me pareça estranho que alguém saia de casa, deixe o morninho, para discutir preços com taxistas ou olhar para ementas de restaurantes onde não percebe uma única palavra.
 Às vezes, parece-me que conheço demasiados caminhos. Para ir a certos lugares, não tenho de pensar. Entro no carro e a minha cabeça ocupa-se de qualquer assunto que, naquele momento me pareça importante. Conheço tão bem esses caminhos que quase me surpreendo quando chego ao destino. Às vezes, quero ir a lugares ligeiramente diferentes, distraio-me por um momento e, quando reparo, já estou a fazer esses caminhos de novo. O hábito enganou-me. Então, preciso de voltar atrás, raramente necessito de GPS para encontrar a direcção certa.
Viajar seja para onde for, querer conhecer o mundo, é acreditar que todas as ruas fazem parte de um labirinto mas que não é possível perdermo-nos nele. Está-se sempre em algum lugar. A rosa dos ventos pode ser colocada em qualquer sentido, continuará sempre a ser uma rosa dos ventos.
 Na Tailândia, nenhuma comida tem o sabor das sopas da minha mãe. Na Amazónia, nenhuma paisagem se parece com os campos à volta da terra onde nasci. Nas ruas de Helsínquia, ninguém entende a língua em que penso e eu, estrangeiro, tenho dificuldade até de distinguir palavras na amálgama de sons que essas pessoas dizem quando vão, por exemplo, a conversar nos transportes públicos.
 Um dia vou cansar-me dessa surpresa. Conheço bem o conforto do meu sofá, com mantas em fevereiro, onde poderia passar tardes inteiras a ver programas da televisão portuguesa, com anúncios portugueses, com as notícias portuguesas a começarem à hora certa: pip, pip, piiii. Sei bem o que é atender o telefonema de um amigo que me diz: vem cá. Sei bem o que é poder ir ter com ele naquele momento, estar ao lado dele depois de minutos. Também sei o que é sentir que os amigos deixaram de ligam. A pouco e pouco, convencem-se de que nunca estou, nunca posso, não vale a pena ligar, não vale a pena insistir.
 Sim, um dia vou cansar-me de querer conhecer o mundo, mas hoje ainda não é esse dia. Sinto uma espécie de tontura só de começar a conceber todos os lugares onde posso ir. Tenho os sentidos ávidos por tudo aquilo que me espera. Não tenho qualquer receio de estar sozinho, sem mapa, no centro de Singapura, numa avenida de Caracas, diante de uma paisagem do Alasca. Anseio por esse momento.
 Quero aterrar em todos os aeroportos do mundo, quero conversar por gestos com gente de todos os países, quero provar o sal de todos os oceanos, senti-lo a cristalizar-se na pele. É muito fácil que chegue um dia em que deixe de acreditar em tudo o que acredito agora. A vida é composta por materiais bastante mais transitórios do que estamos dispostos a admitir. Mas, até lá, sempre que esteja diante de uma ementa onde não perceba uma palavra, continuarei a fechar os olhos e a pedir a primeira coisa onde deixe cair o meu indicador.

José Luís Peixoto, in Revista Volta ao Mundo (Abril 2014)

domingo, 6 de abril de 2014

Pedro Xavier vive em 1974 e tem uma página de Facebook.



O que escreveria no seu Facebook um jovem português em 1974? A convite do Teatro Maria Matos, um escritor criou essa personagem e está a contruir a sua história. Dia a dia.
"Saio da camioneta e a luz de Lisboa espanta-me como se a visse pela primeira vez. Mas nem esta luz nem a maresia conseguem disfarçar o cheiro a coisa velha e doente. Sou daqui mas aqui não pertenço." Isto escreveu Pedro Xavier na sua página de Facebook no dia 12 de março de 1974. Não, não nos enganámos na data. É claro que em 1974 não havia Facebook, mas... e se houvesse?
Esse foi o desafio que o Teatro Maria Matos, em Lisboa, fez a um escritor: que inventasse uma personagem, que lhe criasse uma página no Facebook e que imaginasse o que ele iria postar no mês que antecedeu a revolução de 25 de abril. A página está online e a história está a ser contada - por quem é o que se vai saber no fim, o teatro preferiu manter o autor no anonimato para que a atenção do público estivesse apenas focada apenas em Pedro Xavier. (Diário de Notícias - 06.04.2014)

terça-feira, 1 de abril de 2014

Conta lá a história das bibliotecas itinerantes.


Às vezes, dou por mim a falar nisso perante uma plateia que me olha como se estivesse a dar notícias de um mundo meio real, meio imaginário. Não preciso de pensar muito no que estou a dizer porque, por preguiça, utilizo quase sempre as mesmas palavras, basta-me seguir o desejo de exotismo que encontro nos olhos que me fixam. Então, parece-me, sou um pouco como aqueles escritores africanos ou sul-americanos a quem se exige episódios coloridos, personagens singulares, anedotas, contos com moral.
Ainda assim, cada vez mais raramente, acontece estar alguém na sala que também conheceu essas bibliotecas, que também lá esteve. Então, de repente, as palavras voltam a ganhar significado, enchem-se. Ouço essa pessoa contar as suas memórias e, durante aquele instante, somos irmãos no olhar. As descrições têm préstimo, mas há uma presença muito mais funda, invisível, há a certeza de que, afinal, aquele tempo e aquele lugar existiram mesmo. Até eu já começava a duvidar.
As fitas adesivas coladas nas lombadas eram reais.
Uma vez por mês, ao fim da tarde, a carrinha Citroën chegava ao terreiro de Galveias, calhava-nos as quartas-feiras. Ficava estacionada em frente da cooperativa. Em Galveias, depois do 25 de Abril, o clube dos ricos passou a sede da cooperativa. Quando eu chegava, vindo dos lados do São João, já havia outros rapazes e raparigas à volta da carrinha.
Impressionava-me a quantidade de livros. Precisava de me esticar para chegar às prateleiras mais altas e, por isso, parecia-me que não tinham fim. O senhor Dinis conduzia a carrinha, recebia os papéis preenchidos com os códigos dos livros que requisitávamos, foi então que aprendi esse verbo, e era dentista. Eu conhecia-o da sala de espera, aquele cheiro antissético, onde aguardava a minha mãe e as minhas irmãs. Encontrei-o no ano passado na biblioteca de Abrantes, tirámos uma fotografia juntos. Aproveito para lhe enviar um abraço. Espero que esteja a ler estas palavras, com saúde.
Levávamos sempre a quantidade máxima de livros. E, sim, é verdade aquilo que costumo dizer: líamos muito depressa os que tínhamos e, depois, íamos trocando entre nós até ao regresso da biblioteca no mês seguinte.
Esse era também o tempo das sessões de cinema do Inatel no centro paroquial e na casa do povo. Foi dessa forma que, em Galveias, desci a ladeira, passei pela travessa da fonte e cheguei a casa com o rosto incendiado pelo Apocalipse Now. Foi também assim que assisti ao Baile, de Ettore Scola, sentado em cadeiras de tábua dura exatamente como aquelas em que assistia a bailes no salão da sociedade filarmónica. Poderia agora dar muitos outros exemplos.
Conheço as crianças de Galveias. Há dois anos, estive na escola onde também eu aprendi a ler e vejo-as na rua quando lá vou. No entanto, se quero identificá-las, tenho de perguntar-lhes quem são os seus pais. Nos sábados de manhã, ouve-se muito menos crianças a brincar do que no meu tempo. No ano passado, na minha terra, morreram mais de cinquenta pessoas e nasceram apenas duas.
As crianças de Galveias são iguais às de antes. Sinto pena que tenham menos do que eu tinha há quase trinta anos. Não se evoluiu. Na formação e na vida, a televisão não substitui a leitura e o cinema.
Ao falar de bibliotecas itinerantes aos meus filhos ou a essas crianças, sinto que sou como o meu pai quando me contava histórias da sua infância. Eu sabia que se tinham passado com ele mas, para mim, esse conhecimento era muito vago, pareciam lendas. No entanto, esse tempo era tão concreto como este. Um dia, este tempo, hoje de manhã, ontem, este preciso momento, será contado pelos meus filhos e por essas crianças com o mesmo tom com que agora falo de bibliotecas itinerantes. Naquele tempo, dirão. E aquele tempo será isto, tão concreto, tão prosaico, tão isento de magia. Estes objetos sem graça serão esse incrível futuro.
Eu, que estou aqui neste instante, também estava lá, a cheirar aqueles livros, a subir para a carrinha, a escutar a voz do doutor Dinis. Por isso, ainda que use as mesmas palavras até à exaustão, hei de continuar a repetir esta história. Sempre. É a minha história.
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