Escuela,
a peça de Guillermo Calderón que chegou esta sexta-feira a Lisboa via Próximo
Futuro, é uma história secreta da violência muito latino-americana com que a
esquerda chilena acreditou poder matar a ditadura de Pinochet à queima-roupa.
Mas também é a história de um teatro disposto a fazer o que a democracia
boicotou – justiça, e pelas suas próprias mãos. Por contraponto, e depois de
tantas visitas, apetece perguntar ao teatro português: de que é que tu estás à
espera?
Guillermo
Calderón (Santiago do Chile, 1971) tinha dois anos em Setembro de 1973, quando
o golpe liderado (mesmo que de óculos escuros) pelo general Augusto Pinochet
mergulhou o Chile numa das muitas longas e aparentemente definitivas noites da
segunda metade do século XX latino-americano – uma noite assombrada pelos
passos cada vez mais indiscretos dos militares e pelos fantasmas cada vez mais
numerosos dos mortos e dos desaparecidos que com o tempo passaram de tragédia a
estatística, para citar outro grande teórico e praticante do extermínio em
massa, o pai dos povos Josef Estaline.
Dois
anos, justifica-se o mais internacional dos novos dramaturgos e encenadores
chilenos, é idade mais do que insuficiente para que possa recordar-se do som e
da fúria dos dias que se seguiram ao 11 de Setembro de 1973 – mas entretanto os
dias passaram e transformaram-se em meses, em anos, em décadas, em vidas.
Guillermo Calderón teve duas – uma em ditadura e outra, a mais recente, em
democracia. Continua, agora que já passaram mais de 40 anos sobre o golpe que
enterrou a experiência de governo popular de Salvador Allende, sem grandes
certezas sobre qual delas lhe parece mais habitável, como confessou ao jornal La
Segunda dias antes da estreia deEscuela em Janeiro de 2013, no
festival Santiago A Mil: “De
certa forma a democracia é mais cruel do que foi a ditadura, porque em última
instância durante a ditadura pelo menos havia uma ilusão.”
Escuela,
que chega a Lisboa esta sexta-feira via Próximo Futuro, o programa
de cultura contemporânea da Gulbenkian (até segunda-feira, dia 8, no Teatro do
Bairro), à frente de mais um pequeno contingente de teatro chileno, é a
história dessa ilusão – à sombra devastadora da desilusão que se seguiu, pelo
menos para os que, como as cinco personagens da peça de Calderón, acreditaram
poder matar a ditadura de Pinochet à queima-roupa, sujando conscientemente as
mãos na violência da guerra psicológica e no sangue da luta armada. Disso sim,
Calderón já se recorda: “Na minha família havia pessoas que estavam
comprometidas com a luta contra a ditadura militar. Eu estava a acabar o
colégio [liceu] e fiz parte da geração dos movimentos estudantis, que no final
dos anos 80 estavam extremamente activos. Confrontávamo-nos permanentemente com
a violência policial nas manifestações – e ao mesmo tempo, paralelamente,
muitos jovens estavam a preparar-se para a guerrilha, na clandestinidade. Mas
nesses anos todos os chilenos estavam expostos à violência. Fazia parte do
quotidiano: num dia morria uma pessoa, no outro rebentava uma bomba ao fundo da
rua”, conta ao Ípsilon por telefone a partir de Santiago do Chile, cidade a que
continua a regressar no final das suas agora bastante recorrentes estadias nos
Estados Unidos e na Europa.
É
como se não conseguisse sair dali – o Chile é o seu passado, e o passado
marcou-o “para sempre”. Tornou-se no presente e no futuro de Guillermo
Calderón, tanto quanto ele o vê daqui – olhos nos olhos, sem óculos escuros.
As personagens de Escuela nunca
mostram a cara, como os militantes da extrema-esquerda do Chile dos anos 80.
Geração perdida
No caso de Escuela, não havia
mesmo como escapar a esse passado – para assinalar os 40 anos do golpe de
Estado, o festival Santiago a Mil encomendou-lhe uma obra que examinasse a
ditadura, e que em certo sentido continuasse o trabalho iniciado mais
subliminarmente uns anos antes, em peças como Neva(2007)
ou Diciembre (2009),
que também vimos por cá, e definitivamente assumido em Villa
+ Discurso (2011), a sua última visita ao Próximo Futuro. É um
trabalho cada vez mais político e cada vez mais radical – a continuação de uma
guerra, só que por outros meios. Não suporta a ideia de voltar a ver políticos
pinochetistas, políticos “que são a encarnação do mal”, a saírem das suas peças
em paz, e a irem beber um copo a seguir, como aconteceu depois de uma
representação de Neva, a sua primeira reflexão sobre o papel do teatro em
tempos de cólera como os da Guerra do Iraque (ou, no caso, da Revolução Russa).
Foi por causa dessa visão infernal – a visão de um teatro absolutamente inútil,
por ironia o próprio tema da peça – que decidiu “radicalizar” ainda mais o seu
trabalho, contou ao New York Times: “Talvez isso me leve a um beco sem
saída, porque haverá um momento em que não poderei ser mais radical. Mas esse
episódio obrigou-me a ser mais abertamente político.” (Jornal Público)
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