O
mexicano David Toscana escreveu um romance que é um delírio quixotesco. O
Exército Iluminadonarra a empreitada delirante e impossível da reconquista do
Texas aos gringos, a bordo de uma carroça.
O
que mais impressiona em O Exército Iluminado, o romance do mexicano David
Toscana (n. 1961), é o delírio quixotesco a que um professor de História e um
grupo de cinco crianças com atraso mental se entregam. Partem da cidade de
Monterrey numa carroça puxada por uma mula para reaver o território do Texas,
perdido para os EUA numa guerra de há mais de um século. “Na minha infância
ainda se viam os buracos das balas nos antigos edifícios coloniais de
Monterrey, a cidade onde cresci”, lembra o autor em conversa com o Ípsilon.
“Brincávamos muito imaginando uma guerra com os EUA, e que no fim conseguíamos
recuperar as terras a Norte do rio Bravo. Venho de uma família em que se
contavam muitas histórias dessa guerra, vinham de geração em geração. Este
romance trouxe-me uma grande nostalgia da infância.”
A
empreitada delirante em que este exército absurdo de crianças se vê envolvido é
organizada por um seu professor, Ignacio Matus, antigo maratonista. Em 1924,
durante os Jogos Olímpicos de Paris, e por não ter dinheiro para viajar para
França, Matus corre pelas ruas de Monterrey a distância da maratona à mesma
hora que a prova decorre em Paris. Com o tempo que faz, ficaria classificado,
caso tivesse ido, em terceiro lugar. Desde essa altura começa a importunar por carta
o atleta americano medalhado para que este lhe envie o troféu (acabará por
recebê-lo 44 anos depois). Mais ou menos entre a alegoria e o delírio épico,
Matus (a quem também chamam general, “o último dos heróis nacionais”) sonha com
a busca do impossível, uma forma de redimir as crianças das suas limitações,
mas também de se redimir a si próprio. “Hoje vi-me à cabeça de um exército de
milhares de homens; íamos em direcção ao Texas, com as botas enlameadas,
murmurando uma canção.” Essa alegoria leva também à rebeldia, e o gordo rapaz
Comodoro anuncia aos colegas de escola na sala de aulas: “Meninas e
cavalheiros, estamos perdidos, não temos outro remédio senão ir apanhar
gringos.”
O
fracasso e a melancolia são temas comuns aos anteriores romances de David Toscana, O
Último Leitor e Santa Maria do Circo (ambos publicados pela
Oficina do Livro). “A literatura deve falar do fracasso, da dor, da morte, de
tudo o que não queremos que esteja presente na nossa vida. A literatura precisa
de conflito para que no fim haja pelo menos a ambígua possibilidade de uma
redenção”, diz Toscana. “Não gosto de romances policiais porque sei que o crime
vai ser desvendado. Interessa-me mais a história de um detective fracassado,
que entra em crise, que não consegue resolver o mistério, encontrar o culpado.
Os meus romances terminam de uma maneira um pouco ambígua, mas as personagens
já lograram qualquer coisa.” Em O Exército Iluminado, em que a derrota é
uma constante, os perdedores são levados ao limite por um sonho, e de certa forma
é isso que os redime.
O
poder da linguagem
A
linguagem deste romance é clara e directa, cuidada, impondo um ritmo constante
à acção, conseguindo alternar passado e presente, quase dissimulando as
fronteiras entre os diálogos e as descrições, os pensamentos e as geografias.
Ao leitor cabe ir juntando os pontos de vez em quando. Este domínio da escrita
é uma das virtudes da obra de David Toscana, para quem “a linguagem é a
literatura”. “Não uso a linguagem para contar alguma coisa, conto uma história
para usar a linguagem. Como leitor interessa-me também sobretudo a linguagem. A
história contada pode ser muito interessante, mas se a linguagem não me seduz,
abandono-a”, diz. O seu uso obedece, nos romances de Toscana, à percepção
estética que o autor tem da personagem e à que quer passar ao leitor, daí ter
de ser tão eficiente. “A linguagem é o que dá mais trabalho ao escritor, e é o
que a maioria dos leitores menos nota, poucos são os que sublinham os livros
pela linguagem.”
Mais
do que um modelo, o Dom Quixote de Cervantes é a inspiração dos
romances de David Toscana. Isso era bem visível em O Último Leitor, que
trata de um Quixote que lê e que conhece o mundo através dos livros. As
aventuras imaginárias enchem também O Exército Iluminado, mas é sobretudo
o seu heroísmo trágico, tão quixoteano, o ponto central. “O Dom Quixote fez-me
como escritor”, confessa Toscana, “foi depois de o ler que decidi ser escritor.
O Quixote é por vezes descuidado com a linguagem, por causa das
repetições, mas muito cuidado quanto ao ritmo e às imagens, o que é uma forma
criativa de usar a linguagem.”
Para
além das influências de Cervantes, Toscana confessa-se fascinado pelas
personagens um pouco loucas de Juan Carlos Onetti, pela falta de lógica, pela
atmosfera opressora e sem saída dos seus contos. Mas também pelos romances do
chileno José Donoso e pelas suas personagens desadaptadas, e pela capacidade de
dizer muito em poucas palavras da escrita de Tchékhov. “Aprendo muito com
eles”, diz, sublinhando porém que os escritores de quem mais se gosta “não são
necessariamente os que mais nos influenciam.”
Mais
do que a verosimilhança de uma história, é o poder de sedução dessa mesma
história que interessa a David Toscana. Não exige – e isso é evidente neste seu
romance em que um grupo de crianças parte para desafiar os “gringos” – que a
história seja verosímil, que respeite a lógica. E dá o exemplo de A
Metamorfose, de Kafka: “O que faz Kafka para que a história seja verosímil?
Nada. Se tentasse que aquilo fosse verosímil, deitava tudo a perder. Imagine-se
que recorria a explicações com o DNA e as mutações para explicar como Gregor
Samsa se transforma num insecto. O que interessa é o que seduz.” (Jornal Público)
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