Procuro
o meu bloco de notas em lugares onde já procurei. Tenho a esperança que, desta
vez, por qualquer milagre, possa estar lá. Não é um bloco extravagante, é preto
e simples, vejo-o na memória enquanto procuro. Há aquilo para que olho, está à
minha frente com todas as suas formas, e há este bloco de capa preta que quero
encontrar e que é concreto na minha lembrança, como uma imagem projetada sobre
aquilo que existe, como um slide antigo, e não adianta estender a mão para
agarrá-lo, não está lá, os dedos atravessariam a luz dessa projeção colorida e
imaterial.
Tento
recordar a última vez que segurei o bloco de notas, ontem. Sei que estava em
casa, isso é certo, mas apenas lembro a sensação viva de ter descoberto um bom
lugar para o guardar. Talvez dentro de uma gaveta, talvez debaixo de alguma
coisa, talvez entre dois livros que, naquele instante, me pareceram
especialmente simbólicos. Escondi-o tão bem que, agora, nem eu próprio o
consigo encontrar.
Conheço
blocos de notas de grandes escritores, edições fac-similadas, póstumas. Os meus
cadernos não são assim. Encho-me de pudor com a simples referência mental às
anotações que faço: frases muito distantes de chegarem a verso, listas de
tarefas, ideias sem forma, fragmentos meus, nus, inocentes, a exporem aquilo
que não quero mostrar. Não são restos de mistério, não têm aquela imperfeição
cuidadosa, perfeita. Aquelas páginas sou eu em cuecas, acabado de acordar,
zombie; sou eu despenteado, camisola com nódoas, meias sem elástico; sou eu
adormecido no sofá, diante da televisão acesa, a babar-me.
Na
semana passada, estacionei o carro num lugar diferente. Entrei em casa, enchi a
cabeça com as coisas de casa, dormi essa noite e, no dia seguinte, quando saí à
rua, sobressaltei-me por não o encontrar no posto de todos os dias. Comecei a
procurá-lo. A possibilidade mais insistente era: roubaram-me o carro. Apressei
o passo e, quando já tinha o telefone na mão, lembrei-me daquele instante na
véspera em que decidi estacionar num lugar diferente.
Escondido de mim, o meu bloco de notas, imóvel, discreto, abriga aquele pequeno mundo. Bastará folheá-lo para que essas palavras se soltem; estão lá, à espera, são como um segredo com corpo. O meu bloco de notas é como o corpo desse segredo.
Escondido de mim, o meu bloco de notas, imóvel, discreto, abriga aquele pequeno mundo. Bastará folheá-lo para que essas palavras se soltem; estão lá, à espera, são como um segredo com corpo. O meu bloco de notas é como o corpo desse segredo.
Ainda
assim, há diferenças fundamentais: esconder para sempre é tentar que algo nunca
tivesse existido. Em coerência, a única forma de levar esse raciocínio até ao
fim é morrer. Comparado com essas decisões, o meu bloco de notas, feito de
papel barato, não é realmente o corpo de um segredo, é apenas o biombo que
cobre esse corpo e, mesmo assim, é um biombo que permite transparências. Por
sua vez, morrer com segredos, carregá-los no peito a vida inteira e morrer,
nunca os partilhando com irmãos ou filhos, é um ato que questiona a própria
morte. Conseguirá a morte ser suficientemente opaca para esconder esses
segredos para sempre?
Um
bilhete achado no interior de um livro antigo pode mudar tudo o que pensávamos
sobre o nosso avô. Uma grande parte do passado ainda está para acontecer.
Além
disso, os segredos retiram lógica ao mundo. Aquilo que se omite priva os outros
de compreenderem as razões dos episódios a que assistem. Porque é que estás
maldisposto? Por nada. Passa-se alguma coisa? Não, não se passa nada. Há algum
problema? Não, não é nada.
Talvez
encontre o bloco de notas quando já não estiver à espera. Então, quase de
certeza, irá iluminar-se o instante em que decidi guardá-lo e as razões que me
levaram a escolher esse lugar que, agora, me parece insuspeito. Será como
quando não consigo recordar um nome ou uma data, faço um grande esforço de
memória, mas nada. Depois, quando já não estou a pensar nisso, de repente, como
um objeto que regressa à superfície, aparece-me na cabeça. Até posso acordar de
noite com a força dessa lembrança.
Conformo-me,
estou cansado de procurar, mas tenho pena. Nesse bloco, tinha anotado a ideia
que ia desenvolver neste texto. Não consigo lembrar como era, só recordo que me
entusiasmou, pareceu-me boa ideia, fiquei contente quando a tive.
José Luís Peixoto, in revista Visão
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