O
que era uma paródia a uma série da BBC tornou-se numa das mais populares
comédias britânicas de sempre em Portugal. Tudo por causa de um quadro que toda
a gente queria e de um gerente de café que só queria que o deixassem sossegado.
“René!
Que estás tu a fazer com a criada?”, gritava Madame Edith (Carmen Silvera)
quando apanhava o marido a agarrar as formas bem proporcionadas da criada. “You
stupid woman!” “Sua estúpida!”, gritava-lhe logo em seguida René Artois (Gorden
Kaye), o proprietário do Café René na aldeiazinha francesa ocupada de Nouvion
durante a Segunda Guerra Mundial. “Não vês que estou a consolá-la?”
“You
stupid woman!” Como esta, há outras tantas referências que entraram na conversa
diária ao longo dos anos, em liceus, cafés e pausas para o cigarro, inspiradas
por Alô, Alô!, a série de comédia da BBC criada por Jeremy Lloyd
(1930-2014) e David Croft (1922-2011). "Good meurning", a saudação
habitual do guarda Crabtree (Arthur Bostrom) que achava que sabia falar
francês; "Ouçam muito atentamente, só vou dizer isto uma vez", a
marca registada de Michelle-da-Resistência (Kirsten Cooke); "Sou eu, o
Leclerc", dizia o velhote destrambelhado (Jack Haig) para se identificar
dentro de cada disfarce menos convincente do que o outro. E, acima de tudo, o quadro
daMadona Caída com as Grandes Maminhas de Van Clomp, que servia de
“macguffin” e motor das peripécias que se repetiram ao longo dos 85 episódios
da série, produzida pela BBC entre 1984 e 1992 depois de um piloto filmado em
1982.
O
truque da popularidade de Alô, Alô! era a lista de bordões quase
revisteiros repetidos inevitavelmente em todos os episódios de meia hora. A
popularidade da série entre nós (onde mereceu horário nobre da RTP1 antes de se
tornar presença regular na RTP2, no já defunto SIC Comédia e actualmente na RTP
Memória) foi e é tal que a notícia de um grave acidente de automóvel sofrido em
1990 por Gorden Kaye teve direito a manchetes de jornais. Um porta-voz da BBC
chegou na altura a mostrar-se surpreendido pela quantidade de contactos
realizados por jornalistas portugueses para se inteirarem do estado de saúde do
actor, como se não houvesse noção em Inglaterra da popularidade lusitana de Alô,
Alô!…
Talvez
o mais estranho dessa popularidade fosse que por cá a série era vista como uma
paródia aos filmes de guerra que corria todos, bons e maus, heróis e vilões,
pela mesma bitola de incompetência e desastre. Mas Lloyd e Croft referenciavam
essencialmente uma série dramática da BBC sobre a Resistência francesa, Secret
Army(1977-1979). Alô, Alô! não apenas seguia com alguma rigidez
– pelo menos na temporada inicial – a trama dessa série, como até ia
buscar alguns actores que tinham tido papéis no “original”.
Claro
que, em meados dos anos 1980, quando a série começou a ser exibida entre nós,
não havia necessariamente a consciência de que o humor de Alô, Alô! era
revisteiro e pertencia a um outro tempo. A brejeirice com cheiro a naftalina do
modo como a soldado Helga (Kim Hartman) ou a criada Yvette (Vicki Michelle)
faziam valer os seus físicos que deixavam os homens loucos e faziam o coronel
von Strohm (Richard Marner) pedir o capacete de voo e o aipo húmido, ou a
homossexualidade efeminada do tenente Gruber (Guy Siner) e as constantes
referências ao seu tanquezinho eram “bordões”.
sso
fazia sentido, porque os seus autores vinham precisamente da tradição de music-hall da
comédia televisiva. Croft havia co-escrito com Jimmy Perry duas outras comédias
da BBC ambientadas durante a guerra, Dad’s Army(1968-1977) e It Ain’t
Half Hot Mum (1974-1981); Juntos, Lloyd e Croft já haviam criado uma das
séries mais populares da estação britânica, Are You Being Served? (1972-1985),
sobre o dia-a-dia de um grande armazém de província. Os seus lugares-comuns
eram os mesmos que o nonsense dos Monty Python ou dos Goodies, a
subversão irrisória de Soap/Tudo em Família ou, mesmo por cá, a
lufada de ar fresco do Tal Canal e dasHermanias estavam a deixar
para trás.
Mas
a questão não se colocava nessa altura com a mesma urgência de hoje, e a
verdade era que, neste microcosmos da Segunda Guerra Mundial onde toda a gente
falava inglês com sotaque para identificar a sua origem, eram precisamente os
lugares-comuns identitários que se punham em causa: os ingleses aristocratas
completamente alheados da realidade mas convencidos do seu valor, os franceses
orgulhosos e românticos entre a cobardia e a valentia, os alemães tão
organizados que já não sabiam a quantas andavam às tantas, os italianos
preguiçosos e cheios de bazófia. E René Artois no meio disto a safar-se o
melhor que podia enquanto tinha de lidar com uma esposa mitómana, duas criadas
ninfomaníacas, uma sogra surda que nem uma porta, os aviadores ingleses que não
percebiam nada, os alemães sempre a verem como fazer dinheiro, os planos e
contra-planos da Resistência (normal e comunista), Herr Flick da Gestapo e o
cangalheiro Alphonse mais o seu coraçãozinho frágil.
Alô,
Alô! já então era uma relíquia de outro tempo, e hoje, que os seus
“bordões” já entraram na linguagem, ainda mais – sobretudo porque a BBC teve
“mais olhos do que barriga” e, para forçar uma entrada nas grandesnetworks americanas
que acabou por não acontecer, arriscou produzir uma quinta temporada com 26
episódios (contra a habitual tradição britânica de séries de seis ou sete
episódios) que “esticou a corda”. O erro foi corrigido nas séries seguintes,
mas o mal estava feito. Da Madona Caída com as Grandes Maminhas, contudo,
não ficámos livres. Aqui para nós, ainda bem. (jornal Público – 29.Agos.2016)