Não
contem comigo para defender o elitismo cultural. Pelo contrário, contem comigo
para rebentar cada detalhe do seu preconceito.
A
cultura é usada como símbolo de status por alguns, alfinete de lapela, botão de
punho. A raridade é condição indispensável desse exibicionismo. Só pertencendo
a poucos se pode ostentar como diferenciadora. Essa colecção de símbolos é
descrita com pronúncia mais ou menos afectada e tem o objectivo de definir
socialmente quem a enumera.
Para
esses indivíduos raros, a cultura é caracterizada por aqueles que a consomem.
Assim, convém não haver misturas. Conheço melhor o mundo da leitura, por isso,
tomo-o como exemplo: se, no início da madrugada, uma dessas mulheres que acorda
cedo e faz limpeza em escritórios for vista a ler um determinado livro nos
transportes públicos, os snobs que assistam a essa imagem são capazes de
enjeitá-lo na hora. Começarão a definir essa obra como "leitura de
empregadas de limpeza" (com muita probabilidade utilizarão um sinónimo
mais depreciativo para descrevê-las).
Este
exemplo aplica-se em qualquer outra área cultural que possa chegar a muita
gente: música, cinema, televisão, etc. Aquilo que mais surpreende é que estes
"argumentos", esta forma de falar e de pensar seja utilizada em meios
supostamente culturais por indivíduos supostamente cultos, e só em escassas
ocasiões é denunciada como discriminadora do ponto de vista sexual ou social.
Isso
são livros de gaja, dizem eles. Às vezes, para cúmulo, há mesmo mulheres que
dizem: isso são livros de gaja.
A
raiz da minha cultura não pertence ao elitismo. Tenho orgulho das minhas
origens, do meu avô pastor, do meu pai carpinteiro, como outros têm orgulho dos
seus longos nomes compostos.
Depois
de um trabalho que encerre convicções profundas, que tenha em conta os
princípios da sua área artística, que seja consciente da história dessa área e
que faça uma proposta coerente e inovadora, acredito na divulgação o mais ampla
possível.
Esconder
uma obra em tiragens de 300 exemplares não lhe acrescenta um grama de valor
artístico. Quando essa falta de divulgação resulta de uma escolha, pressupõe,
quase sempre, falta de consideração pelo público, a crença de que um público
mais vasto seria incapaz de entender tamanha sofisticação.
Acredito
que a poesia pode ser publicada em caixinhas de fósforos, escrita com trincha
ou spray nas paredes, impressa em t-shirts, afixada no facebook. Em qualquer um
desses lugares, será diferente, mas em todos continuará a ser poesia.
É
ridícula a ideia de que a divulgação deturpa. A banalização é sempre tarefa de
quem banaliza e não do objecto banalizado. Quem não for capaz de convocar os
seus sentidos e a sua razão para apreciar uma determinada obra, apenas por
acreditar que se encontra muito difundida, tem problemas graves ao nível do
espírito crítico e da isenção mais básica. Esse é um daqueles casos em que se
aconselha a lavagem de olhos. É aí que reside a deturpação.
Admiro
o povo ao qual pertenço. Não o povo mitificado, admiro o povo quotidiano. Gosto
de ir a feiras. Gosto de comer frango assado com as mãos. Devo tanto à cultura
deste povo como devo a Dostoiévski. Há alguns meses, a personagem de uma telenovela
citou um poema escrito por mim. Toda a gente da minha rua viu e ouviu. A minha
mãe ficou orgulhosa e eu também.
Chamo-me
José ou, se preferirem, Zé. Desprezo o elitismo. O verbo não é exagerado,
adequa-se bem ao que sinto.
Hei-de
sempre divulgar o meu trabalho na máxima dimensão das minhas capacidades. Devo
esse esforço à convicção que tenho naquilo que escolhi dizer. Fico feliz se
vejo os meus livros disponíveis em supermercados, estações de correios, bombas
de gasolina ou bibliotecas públicas.
Aquilo
que faço não existe sozinho, precisa de alguém que lhe dê sentido, o seu
próprio sentido e interpretação pessoal. Se uma árvore cair sozinha na
floresta, sem ninguém por perto, será que faz barulho? Por esse motivo, o
esforço de divulgação é também uma mostra de respeito para com essas pessoas, é
um sinal da minha crença nelas e no seu valor. Exactamente como estas palavras,
que existem porque estás a lê-las.
Escrevo
romances, a minha força de vontade é enorme. Tenho 38 anos, conto estar por cá
durante bastante tempo. Tenho ainda muito por fazer. Habituem-se. Não tenho
medo.
José
Luís Peixoto, in revista Visão (Maio de 2013)
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