Quando
é que, enquanto espectadores, deixámos de ter a capacidade de nos maravilhar,
de ver as coisas sem segundas intenções, sem pensarmos duas vezes se “gostamos”
se “não gostamos”, se “seguimos” ou se “amigamos”? Quando é que perdemos aquele
olhar, arregalado, deslumbrado, que tivemos perante o desconhecido, o nunca
visto? Será que é ainda sequer possível recuperá-lo?
É
a pergunta que faz Christopher Nolan em Interstellar e, para lá de
toda e qualquer opinião que se possa ter sobre o filme, é essa a chave que
“abre” o “hiper-cubo” de leituras que ele permite. Não é por acaso que a viagem
interestelar que lhe está no centro é uma “última oportunidade” para uma Terra
moribunda, que parte em direcção de um território onde só se chega
transgredindo as leis tradicionais da física. Através disso, revela-se que a
“suspensão da descrença” que o cinema enquanto “montagem de atracções” começou
por ser é o verdadeiro tema de Interstellar.
Suspender,
por um momento que seja, a modorra da realidade quotidiana, cinzenta,
condenada; fazer um convite à viagem, ao sonho, à aventura. Resistir, de algum
modo, aos avanços do realismo (e dos neo-realismos) que nos remetem
constantemente para o mundo lá fora; reafirmar a fé no espectáculo, partir à
aventura como os gloriosos loucos que foram à procura do caminho marítimo para
a Índia e, no processo, descobriram novos mundos. Mas fazê-lo sem perder de
vista aquilo que nos faz humanos: dúvidas, questões, alegrias e tristezas.
A
referência evidente de Interstellar é o 2001: Odisseia no Espaço
de Stanley Kubrick (1968) - e a partitura de Hans Zimmer, mesmo que mais sóbria
do que lhe é habitual, é escandalosamente derivativa no modo como evoca
constantemente a reverberação quase infinita de Assim Falava Zaratustra. O
novo filme do autor de Memento (2000) e O Cavaleiro das Trevas (2008)
parece querer alargar a todo um filme a meia-hora final de 2001, a viagem
para lá da “porta das estrelas” que desintegrava as leis do tempo e do espaço
em direcção ao in-imaginável – mas, no processo, está também a entrar pela
transcendência mística da Árvore da Vida de Terrence Malick (2011),
onde o princípio e o fim, o passado e o futuro, eram entendidos como um único
todo sensorial.
É
aqui que começamos a atolar-nos neste filme de desmedida ambição, que parece
espelhar na Terra do futuro transformada num imenso dust bowl as
próprias contradições do mundo em que foi concebido. Nolan quer fazer umblockbuster com
cabeça num momento em que Hollywood só parece ter olhos para super-heróis e
franchises adolescentes. Arrastou dois dos seis grandes estúdios para um filme
caríssimo que desafia a massificação do marketing e não se resume em duas
linhas. Quer medir-se com os cineastas visionários que Hollywood elevou a
mestres - Kubrick, Cameron, Spielberg - numa era em que esse tipo de “fogachos”
são desencorajados pelo sistema. E, sobretudo: na era do soundbyte, do
telemóvel, do SMS, da desmultiplicação do espectro de atenção, Nolan exige ao
espectador três horas de atenção indivisa.
Mas
a verdade é que nem por isso Nolan deixa de revelar o calculismo metódico de
engenheiro mecânico da sua obra: ao contrário das gélidas simetrias
Kubrickianas que deixavam muito em aberto, Interstellar não deixa
ponta solta por atar. Sabe que depois de levar o espectador “ao infinito e mais
além” tem que lhe dar âncoras ou lemes que lhe permitam reorientar-se. Nada em
Interstellar é casual, o inexplicável não o ficará por muito tempo: se ambos
são talvez o maior exemplo do que passa hoje por “cinema de prestígio” nos
americanos, e partilham uma precisão quase maníaca no modo como planificam ao
mínimo detalhe tudo o que acontece nos seus filmes, Nolan está no oposto de
David Fincher e do seu prazer quase sádico em escarafunchar no desagradável.
Com Em Parte Incerta (2014), outra mecânica de precisão subversiva
produzida no interior do sistema, Fincher não hesita em mandar o espectador
para casa sem lhe dar a satisfação de um final todo bem arranjadinho.
Nolan
não faz nada disso; insiste na “suspensão da descrença”. Como se a frieza
robótica de um 2001 onde o computador era mais humano que os
tripulantes da nave Discovery não fizesse sentido sem uma fé infindável no amor
como único motor de combustão possível para os maiores feitos do ser humano. O
que é talvez o maior risco que o cineasta britânico corre neste épico onde a
ficção científica e o drama intimista familiar são sugadas ao mesmo tempo para
o interior do buraco negro por onde Matthew McConaughey e Anne Hathaway viajam
para outras galáxias. Na sua tentativa de conciliar a cabeça e o coração, a
ciência mais abstracta e a emoção mais humana de todas, acaba por ser do Abismo de
James Cameron (1989), outro objecto fora do seu tempo mal recebido aquando da
estreia, que Interstellar se aproxima.
Sem
por isso perder aquilo que tornou Nolan no cineasta de estúdio mais polarizador
junto da crítica: a sensação de que os seus filmes corporizam, quase sem dar
por isso, os grandes debates sociais do momento. EmInterstellar, adivinham-se
farpas ao desinteresse político pela ciência, ao Orwellianismo quase
involuntário dos “negacionistas” que rejeitam as alterações climáticas, dos
economicistas que apenas valorizam resultados, dos revisionistas que querem
reescrever a história do modo que mais lhes convém. E, ao fazê-lo, remete
inevitavelmente para a epopeia do programa espacial americano tal como Tom
Wolfe a escreveu e Philip Kaufman a filmou nos Eleitos (1984) – e a
inteireza com que McConaughey ancora Interstellartem algo do Sam Shepard
desse filme.
Se
vai ficar ou não na história, só o tempo o dirá. A sua ambição tolhe-o aqui e
ali, eleva-o a alturas enormes para logo a seguir o fazer quase despenhar-se
sob o peso das ideias que projecta. Mas confirma Christopher Nolan como um
cineasta que não trabalha num vácuo autista face ao cinema, e ao mundo, à sua
volta, e que quer acreditar que ainda é possível recuperar o deslumbre do nunca
visto. Como não admirar essa fé?
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