quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Até ao infinito e mais além.



Quando é que, enquanto espectadores, deixámos de ter a capacidade de nos maravilhar, de ver as coisas sem segundas intenções, sem pensarmos duas vezes se “gostamos” se “não gostamos”, se “seguimos” ou se “amigamos”? Quando é que perdemos aquele olhar, arregalado, deslumbrado, que tivemos perante o desconhecido, o nunca visto? Será que é ainda sequer possível recuperá-lo?
É a pergunta que faz Christopher Nolan em Interstellar e, para lá de toda e qualquer opinião que se possa ter sobre o filme, é essa a chave que “abre” o “hiper-cubo” de leituras que ele permite. Não é por acaso que a viagem interestelar que lhe está no centro é uma “última oportunidade” para uma Terra moribunda, que parte em direcção de um território onde só se chega transgredindo as leis tradicionais da física. Através disso, revela-se que a “suspensão da descrença” que o cinema enquanto “montagem de atracções” começou por ser é o verdadeiro tema de Interstellar. 
Suspender, por um momento que seja, a modorra da realidade quotidiana, cinzenta, condenada; fazer um convite à viagem, ao sonho, à aventura. Resistir, de algum modo, aos avanços do realismo (e dos neo-realismos) que nos remetem constantemente para o mundo lá fora; reafirmar a fé no espectáculo, partir à aventura como os gloriosos loucos que foram à procura do caminho marítimo para a Índia e, no processo, descobriram novos mundos. Mas fazê-lo sem perder de vista aquilo que nos faz humanos: dúvidas, questões, alegrias e tristezas.
A referência evidente de Interstellar é o 2001: Odisseia no Espaço de Stanley Kubrick (1968) - e a partitura de Hans Zimmer, mesmo que mais sóbria do que lhe é habitual, é escandalosamente derivativa no modo como evoca constantemente a reverberação quase infinita de Assim Falava Zaratustra. O novo filme do autor de Memento (2000) e O Cavaleiro das Trevas (2008) parece querer alargar a todo um filme a meia-hora final de 2001, a viagem para lá da “porta das estrelas” que desintegrava as leis do tempo e do espaço em direcção ao in-imaginável – mas, no processo, está também a entrar pela transcendência mística da Árvore da Vida de Terrence Malick (2011), onde o princípio e o fim, o passado e o futuro, eram entendidos como um único todo sensorial.
É aqui que começamos a atolar-nos neste filme de desmedida ambição, que parece espelhar na Terra do futuro transformada num imenso dust bowl as próprias contradições do mundo em que foi concebido. Nolan quer fazer umblockbuster com cabeça num momento em que Hollywood só parece ter olhos para super-heróis e franchises adolescentes. Arrastou dois dos seis grandes estúdios para um filme caríssimo que desafia a massificação do marketing e não se resume em duas linhas. Quer medir-se com os cineastas visionários que Hollywood elevou a mestres - Kubrick, Cameron, Spielberg - numa era em que esse tipo de “fogachos” são desencorajados pelo sistema. E, sobretudo: na era do soundbyte, do telemóvel, do SMS, da desmultiplicação do espectro de atenção, Nolan exige ao espectador três horas de atenção indivisa.
Mas a verdade é que nem por isso Nolan deixa de revelar o calculismo metódico de engenheiro mecânico da sua obra: ao contrário das gélidas simetrias Kubrickianas que deixavam muito em aberto, Interstellar não deixa ponta solta por atar. Sabe que depois de levar o espectador “ao infinito e mais além” tem que lhe dar âncoras ou lemes que lhe permitam reorientar-se. Nada em Interstellar é casual, o inexplicável não o ficará por muito tempo: se ambos são talvez o maior exemplo do que passa hoje por “cinema de prestígio” nos americanos, e partilham uma precisão quase maníaca no modo como planificam ao mínimo detalhe tudo o que acontece nos seus filmes, Nolan está no oposto de David Fincher e do seu prazer quase sádico em escarafunchar no desagradável. Com Em Parte Incerta (2014), outra mecânica de precisão subversiva produzida no interior do sistema, Fincher não hesita em mandar o espectador para casa sem lhe dar a satisfação de um final todo bem arranjadinho.
Nolan não faz nada disso; insiste na “suspensão da descrença”. Como se a frieza robótica de um 2001 onde o computador era mais humano que os tripulantes da nave Discovery não fizesse sentido sem uma fé infindável no amor como único motor de combustão possível para os maiores feitos do ser humano. O que é talvez o maior risco que o cineasta britânico corre neste épico onde a ficção científica e o drama intimista familiar são sugadas ao mesmo tempo para o interior do buraco negro por onde Matthew McConaughey e Anne Hathaway viajam para outras galáxias. Na sua tentativa de conciliar a cabeça e o coração, a ciência mais abstracta e a emoção mais humana de todas, acaba por ser do Abismo de James Cameron (1989), outro objecto fora do seu tempo mal recebido aquando da estreia, que Interstellar se aproxima.
Sem por isso perder aquilo que tornou Nolan no cineasta de estúdio mais polarizador junto da crítica: a sensação de que os seus filmes corporizam, quase sem dar por isso, os grandes debates sociais do momento. EmInterstellar, adivinham-se farpas ao desinteresse político pela ciência, ao Orwellianismo quase involuntário dos “negacionistas” que rejeitam as alterações climáticas, dos economicistas que apenas valorizam resultados, dos revisionistas que querem reescrever a história do modo que mais lhes convém. E, ao fazê-lo, remete inevitavelmente para a epopeia do programa espacial americano tal como Tom Wolfe a escreveu e Philip Kaufman a filmou nos Eleitos (1984) – e a inteireza com que McConaughey ancora Interstellartem algo do Sam Shepard desse filme.
Se vai ficar ou não na história, só o tempo o dirá. A sua ambição tolhe-o aqui e ali, eleva-o a alturas enormes para logo a seguir o fazer quase despenhar-se sob o peso das ideias que projecta. Mas confirma Christopher Nolan como um cineasta que não trabalha num vácuo autista face ao cinema, e ao mundo, à sua volta, e que quer acreditar que ainda é possível recuperar o deslumbre do nunca visto. Como não admirar essa fé?

Sem comentários:

Enviar um comentário