segunda-feira, 30 de maio de 2016

ainda hei-de roubar um Rolex através daquele passa-pratos.


Domingo, 22 de Maio
Regresso a Lisboa e precipito-me para as minhas rotinas de reencontro: atravessar a Baixa e o Chiado, percorrer o Bairro Alto e o Príncipe Real, subir da Escola Politécnica às Amoreiras. Em São Pedro de Alcântara há uma banda cabo-verdiana a tocar coladeiras, com um daqueles guitarristas que eu costumava ouvir na Casa da Morna, e apetece-me logo parar, beber um pouco de mais e pôr-me a dançar.
Não me incomoda assim tanto a nova afluência de turistas, por agora. Talvez porque nestes primeiros dias também eu sou turista. De qualquer modo, ainda antes de partir voltarei a ser lisboeta de corpo inteiro, provavelmente incomodado com eles - e, mesmo depois de voltar à ilha, levarei algum tempo até ser capaz de celebrá-los de novo, num misto de bonomia e gratidão pelo que trazem de possibilidades e de economia.
Portugal precisa de economia. As famílias portuguesas precisam de economia.
Aborrece-me, antes, esta obsessão da cidade com o trend (é assim que se diz?). Com as modas e tendências. Com os conceitos. À noite, num daqueles restaurantes de circunstância a que se recorre antes de um filme de multiplex, peço uma tacinha de ceviche, a especialidade peruana que ainda não tivera a bem-aventurança de provar, e parece que sinto os cochichos à minha volta: "Credo, ceviche. Este tipo acabou de chegar de 2015, ou quê?"
Tudo muda a toda a hora. Lojas que estavam na berra há seis meses são agora decrépitas. Hamburguerias revolucionárias parecem subitamente velhas comparadas com as suas sucedâneas. Ideias morrem, hábitos substituem-se, marcas cavalgam sobre marcas até que outras marcas venham cavalgar sobre estas ainda, numa orgia que me parece menos de dinheiro do que de ânsia e, afinal, de provincianismo.
Parece-me provinciana, de repente, esta cidade - apesar das coladeiras de São Pedro de Alcântara. E quando me detenho naquela nova casa de banho das Amoreiras, em que homens e senhoras se circunscrevem a cubículos diferentes, mas depois lavam as mãos juntos, através de uma espécie de passa-pratos, um de cada lado, esse provincianismo parece-me ainda mais evidente - essa obsessão de surpreender, de denotar diferença, de esmagar tudo o que há tão pouco parecia estimulante.
Ainda hei-de roubar um Rolex através daquele passa-pratos. Mesmo de senhora, mais pequenino. Nunca tive um Rolex, e Lisboa faz-me querer ter um Rolex.
Terça-feira, 24 de Maio
Gostava de ser capaz de escrever das emoções que se concentraram esta noite entre nós - nas palavras do Fernando, na presença dos amigos (os novos, os velhos e os muito velhos), nas proporções que de repente isto tomou. Mas como encontrar agora essas palavras, se tudo é ainda tão maravilhoso e imenso?
Foi no Chiado, ainda há pouco, e quando no fim vou jantar com os derradeiros resistentes - o Sebastião e a Márcia, a Ema, a Catarina - sei que pareço atónito, quase apático. Pareço-o porque o estou, provavelmente.
Rememoro as palavras, sinto ainda os abraços - cada um deles, na sua generosidade infinita -, mostram-me fotos. Recapitulo os rostos que vi e os que não vi. É um momento de celebração, como se tudo fizesse enfim sentido, e porém assolam-me agora os velhos fantasmas: a tentação da vaidade, o impulso da ligeireza.
Penso nos velhos da Terra Chã. Penso nos meus, os pais e os avós. Penso em José Guilherme. Naquela casa. No jardim de que a dotámos e em como os cães se esforçam por destruí-lo, na sua alegria pueril e absoluta.
Penso que tenho de dizer ao Chico que não precisa de sachar os tomateiros, porque o Rodrigo vai passar lá. Penso nos trabalhos em curso na encosta, sob a acácia descendente, e em como talvez não seja preciso esperar as sementes do Galão, porque ainda há um resto de gramíneas na garagem, no balde preto.
Depois voltam as palavras do Fernando. Os rostos e os abraços. Os nomes. As horas infinitas e o calor particular de cada abraço.
Foi no Chiado, não há muitas horas ainda, e agora estou aqui, em frente a este computador, tentando dizer a mim mesmo que tudo está no seu lugar certo, que também eu encontrei um lugar. Mas não sou capaz. Não ainda, pelo menos. Também sobre isto é preciso que a memória opere o seu milagre.
Apago a luz e prometo-me seguir caminho. O resto di-lo-ão os outros, que a eles o cabe. Tudo quanto posso desejar é que, ao menos uma vez, as pessoas que tivemos à nossa volta signifiquem alguma coisa sobre aquilo em que nos tornámos também.

Mas nem disso posso ter a certeza.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Joel Neto, o "guardador da identidade da Terra Chã".


O Livro A Vida no Campo foi apresentado esta tarde em Lisboa. Fernando Alves, jornalista, leu uma carta aberta a Joel Neto em plena FNAC Chiado. E o autor comoveu-se, em Lisboa
A sala estava cheia e quente e ainda o trio sentado à mesa para onde todos os olhares convergiam não começara a falar. Hugo Gonçalves, da Marcador, começou a sessão de apresentação do livro A Vida no Campo, de Joel Neto - que junta um conjunto de textos publicados, diariamente, no Diário de Notícias: "Tal como Hemingway, [Joel Neto] consegue escrever com elegância sob pressão".
Hugo Gonçalves, que já fora camarada de redação de Joel Neto, agora no papel de editor destacou a literatura feita de pequenos nadas do açoriano que regressou às origens, na Ilha Terceira, há quatro anos: "O Joel só precisa de ver uma vaca a atravessar a estrada para escrever um romance". A plateia, mais-que-completa, riu-se. Joel também. Mal sabia o que viria a seguir.
O editor da Marcador seguia a sua "cábula eletrónica" e, quase a terminar, diria que Joel Neto encontrou, depois dos 30, "o amor e a paz de espírito e isso fez dele um escritor melhor."

O microfone - e o livro, estrategicamente colocado para as fotos e a transmissão vídeo em direto - mudou para a outra ponta da mesa. Fernando Alves, jornalista, contou-nos que "implorou a Joel Neto" para apresentar este livro, ainda ele não era livro, era um conjunto de textos publicados no Diário de Notícias. Que tinha "uma relação obsessiva" com aquelas crónicas do DN. "Ia aquela crónica como quem vai ao quarto dos pais", disse. "Ia às crónicas do Joel para me comover".
Depois Fernando Alves dirigiu-se, não à gorda plateia, mas ao autor, sentado à sua direita. E assim desfiou as folhas A4 em que trazia uma carta para Joel - que gostaria que também escutássemos.
O jornalista da TSF leu, então, uma espécie de metatexto do livro que ali se apresentava. Começou no início do livro, a dois dias do Equinócio, seguiu na peugada dos passos de Joel Neto, do cão Melville ("somos íntimos desse rafeiro dourado"), das gentes da Terra Chã: "Cada passagem é uma fajã".
Alves bebera as histórias de Joel com sofreguidão. Traz à salinha respirante e silenciosa o momento em que Joel Neto leva os seus leitores "para dentro de casa, para o único quarto sempre arrumado da casa, o quarto dos pais". Disse então Fernando Alves: "Não será este o único momento em que terei sido tomado por uma irresistível melancolia ou vontade de chorar". Lembrara-se do pai, no quarto dele em África, falar-lhe das constelações Cruzeiro do Sul ou o Sete Estrelo - que também está nas páginas de Joel.
Com estes textos diários (agora semanais, aos sábados) no DN e agora com o livro A Vida no Campo, Joel Neto transformou-se num guardião da memória. "Os teus textos são de alguém que não esquece" diria Alves a propósito do carteiro Emanuel, que citou Borges numa troca de piropos futebolísticos.
"Estás à escuta das palavras da tua ilha, esse magma primordial", disse-lhe o jornalista da rádio, que também quer escutar essas vozes. Alves confessou publicamente o desejo de seguir com o autor e o livro, Terra Chã fora, com o microfone a captar o som das vozes que pontuam o livro. Ouvir, por exemplo, o bombeiro que assistiu o avô de Joel quando este passou mal. Joel comove-se, com a discrição possível no centro dos olhares de uma sala cheia.
Joel, "guardador da identidade da Terra Chã", engoliu as lágrimas. Voltaria a olhar para Fernando e para a casa cheia. Mas o narrador voltaria às raízes das árvores e da família do autor (Joel Neto vive na casa que pertenceu ao avô). Às memórias em que se mexem a cada passeio ou na poda de árvores. Quando Fernando Alves se calou, Joel Neto não conseguia falar.
"É difícil explicar como tudo isto faz sentido". Tinha uma folha dobrada com agradecimentos que não conseguia fazer. Emocionou-se no coração de Lisboa - ele que se comove tanto nos Açores, como disse em entrevista ao DN.
Depois agradeceu à editora Marcador, à Booktailors, ao DN: "[o jornal] arriscou muito quando me pediu uma crónica, um exercício de estilo sobre o meu regresso insular."

A sessão terminou com uma longa fila para autógrafos. No sábado, às 23.00, Fernando Alves passa no seu programa da TSFZona Franca todas as músicas de A Vida no Campo. Se já estiver na Terra Chã, Joel Neto escutará no Roberts, o rádio com wi-fi, o único objeto que comprou no regresso aos Açores. (DN – 25 Maio 2016)


quarta-feira, 18 de maio de 2016

O programa "de apanhados" que apanhou a líder do BE em boa ação.



O quinto 'E Se Fosse Consigo' foi com Catarina Martins. Que fez tudo bem, dando uma lição de cidadania que é um inestimável tempo de antena. Conceição Lino, que dirige o programa, pergunta: "Ia discriminá-la porquê?"
"Até já me tinha esquecido de que isto tinha sucedido." Catarina Martins não fazia ideia de que o quinto episódio do programa E Se Fosse Consigo, da SIC, que passou nesta segunda-feira, a teria como protagonista. "Aconteceu há quase um ano. Ia gravar um tempo de antena para as legislativas no Jardim da Estrela, ia ter com a equipa, já atrasada, e vi aquela cena." A cena era, como é regra no programa, uma situação encenada, com atores: desta vez o tema era a violência no namoro e um rapaz estava a ser violento com uma rapariga, a tentar tirar-lhe o telemóvel. Catarina não fez como a maioria das pessoas que passava e fingia não ver: interveio, enfrentou o agressor e até chamou a polícia. Mas, depois de perceber que era um programa de TV, achou "que nunca me iriam passar a mim, que seria naturalmente eliminada".
Não foi, e Conceição Lino, a autora de E Se Fosse Consigo, diz que tal nunca lhe passou pela cabeça: "Só a vimos quando já estava a interagir com a rapariga e o rapaz mas nunca pusemos a hipótese de não passar a Catarina Martins. É um programa sobre discriminação e ia discriminá-la? Pode ser qualquer pessoa, e foi ela. Só foi muito bom para ela porque fez tudo certo."
Catarina Martins, que partilhou o programa no Facebook dando os parabéns à equipa, assume que "o conceito de apanhados é um conceito de que não gosto muito." Mas, prossegue, "este programa aumenta a censura social sobre determinados comportamentos. E é óbvio que se não houver censura social sobre certos comportamentos as coisas nunca mais mudam". E a reação das filhas, de 13 e 10 anos, fez-lhe perceber que "o programa funciona. Veem-no com muita atenção, debatem-no, é ponto de partida para discussões na escola". O facto de se ter atrasado para um compromisso e de se ter sentido numa situação de perigo - "Fiquei imensamente nervosa, porque a dada altura achei que ia também apanhar" - não a levou a reagir mal quando, no fim, lhe surgiu uma jornalista, de microfone em punho. "A miúda já tinha o telemóvel e ia embora e eu preparava-me para ir atrás dela quando aparece a Conceição Lino. Eu tinha chamado a polícia, que nunca mais aparecia, e de repente lembrei-me e disse-lhe. Ela disse que a polícia estava avisada."
Impressionante para a coordenadora do BE foi não ter havido ninguém, durante todo o tempo que a cena durou, a aproximar-se e a fazer o mesmo que ela. "Aquilo que mais me chocou foi que a dada altura a rapariga deixa cair o telefone e uma senhora que estava com o neto disse ao rapaz que estava ali o que ele queria. Veio ajudar o agressor. Inacreditável."
Essa situação não aparece no programa, diz Conceição Lino, porque a senhora em causa não estava no enquadramento. "Só ouvi a voz, não a vimos." Esclarece no entanto que, sendo uma regra pedir autorização às pessoas "apanhadas" para as mostrar no programa, já sucedeu pôr no ar algumas que não autorizaram. "A esmagadora maioria dá autorização e as que não dão eu respeito, mas posso mostrar resguardando a identidade - houve no episódio da homofobia uma pessoa que não autorizou mas que achei relevante mostrar."
Uma questão delicada do ponto de vista deontológico, como de resto são as encenações e a câmara oculta. Afinal, E Se Fosse Consigo é jornalismo? "Aquilo é uma observação da realidade. Quero testar a reação das pessoas; mas sobre a reação das pessoas não interfiro. Todos os assuntos que abordo, o que acontece no programa é jornalismo", responde Lino, que depois de um período a apresentar programas de entretenimento voltou a ter carteira de jornalista. "Porque, o que é que é jornalismo?"

A ideia, explica, "surgiu ao ver na net uma coisa sobre experiências sociais. Achei que podíamos fazer uma coisa desse tipo. Se isto levanta questões? Obviamente que me questiono. Mas de cada vez que chego ao fim de um programa sinto-me muito mais satisfeita por fazer isto do que estaria sendo porta-microfone." Considerando "o interesse público do programa evidente", confessa-se chocada com "o grau de indiferença" evidenciado pela maioria das pessoas nas situações encenadas. E por notar, por exemplo no programa sobre a violência no namoro, que a reação dos turistas era diferente da dos portugueses. Para melhor. (DN – 18.05.2016)

terça-feira, 10 de maio de 2016

A relíquia do tempo das invasões napoleónicas que estava esquecida.


Em dois séculos, o diário de um britânico foi da frente de batalha em Portugal até um canto de livraria australiana. A relíquia foi agora revelada.
Chama-se John Squire e foi um destacado oficial britânico no tempo das guerras napoleónicas. Passou por vários teatros de guerra, entre eles Portugal. O diário deste oficial agora descoberto, e de que a BBC dá conta, é do tempo em que este oficial esteve entre nós, nos princípios do século XIX, altura em que por três vezes as tropas de Napoleão tentaram conquistar Portugal. Sempre sem sucesso.
O diário agora descoberto não será de valor apenas pela história. Segundo a BBC, os interesses deste oficial iam muito além da guerra.
A geografia, a história e a cultura locais eram preocupações deste oficial, que possuía ainda talento para a escrita. Além do mais, o seu nome é referido noutros documentos oficiais da época, nomeadamente em missões diplomáticas.
O diário deste oficial, curiosamente, parece ter viajado ainda mais do que o homem que o escreveu. A relíquia estava escondida no meio de outros livros, num armário da livraria Cracked and Spineless. Esta livraria foi adquirida recentemente e foram os novos donos que se depararam com a descoberta.

John Squire viria a morrer de febre em 1812, já após o exército britânico, do qual fazia parte, ter ajudado Portugal a repelir os invasores franceses por três vezes. (Notícias ao Minuto – 10 Maio 2016)

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Sozinha, uma mulher negra fez frente a 300 neonazis.


O que leva uma mulher a desafiar cerca de 300 neonazis? A protagonista desta história é Tess Asplund, uma mulher de 42 anos, com ascendência africana, cuja sua imagem se tornou viral depois de ter enfrentado sozinha, no último domingo, uma manifestação organizada pelo Movimento da Resistência Nórdica, na cidade de Borlänge, Suécia.
A imagem de Tess Asplund de punho erguido a enfrentar o grupo de extrema-direita está a correr o mundo. Entrevistada pelo jornal britânico The Guardian, Asplund conta que não reflectiu e agiu no momento. “Foi um impulso. Eu estava tão zangada, tive de sair para a rua”, confessa. “Só pensava: nem pensar, eles não podem marchar aqui. Nenhum nazi vai marchar aqui, não está correcto”.
Depois da manifestação, apanhou um comboio para Estocolmo e esqueceu o assunto. Segunda-feira percebeu que a foto estava a correr as redes sociais. Agora teme pelos seus 50 kgs de coragem que lhe parecem pouco quando pensa nos “grandes e loucos” membros do grupo de extrema-direita. “Talvez não o devesse ter feito, quero paz e sossego”, desabafa.
O medo não é em vão. Tess afirma que as acções daquele grupo lhe são familiares e conta que alguns dos seus amigos já foram atacados e obrigados a mudar de casa. A mulher já recebeu telefonemas anónimos a meio da noite onde pessoas lhe gritam do outro lado do auscultador. “É difícil falar sobre o ódio. Sinto vergonha por termos este problema. As autoridades dizem que é um país democrático. Mas estamos a falar de nazis! É horrível”, confessa.
A manifestação de domingo acontece numa altura em que os movimentos de extrema-direita estão a aumentar na Suécia, explica Daniel Poohl, editor daExpo, uma revista anti-racista sueca, à qual pertence o fotógrafo que captou a imagem viral.
O impacto da fotografia foi tal que os meios de comunicação suecos já a compararam a uma outra famosa imagem, capturada por Hans Runesson em 1985, e que ficou conhecida como “a senhora com a mala”. Na imagem, hoje com mais de três décadas, uma mulher usa a sua mala para bater numskinhead do partido neo-nazi sueco, dissolvido em 2009.
As sondagens mostram que os Democratas Suecos, um partido nacionalista, conservador e anti-imigração, conquistam 15% a 20% das intenções de voto dos eleitores e mantêm o poder no Parlamento, enquanto a proliferação do seu discurso se espalha por sites que incitam ao ódio. É no espectro mais extremista desta ideologia que encontramos o Movimento da Resistência Nórdica, explica Poohl.
“Vivemos numa Europa onde as ideias de extrema-direita se estão a tornar cada vez mais populares e também existe uma reacção contra elas”. “Vivemos dias em que as pessoas aguardam por algo que canalize esta necessidade de resistir à Europa que constrói muros e fronteiras contra refugiados, uma Europa com quem não podem cooperar mais. O gesto de Tess capturou um desses conflitos actuais”, analisa.
Recorde-se que a Suécia rejeitou, no início deste ano, a entrada de mais refugiados e migrantes da Ásia e Médio Oriente, alegando receio de que esta vaga ameace a segurança nacional, depois de se terem registado episódios de violência em centros de acolhimento de refugiados. Em Janeiro o país começou a recusar a entrada de migrantes sem documentos.
No último ano, as Nações Unidas consideraram que o país tem um problema específico de Afrofobia.

"O racismo foi normalizado na Suécia. Pensava que a Suécia em 2016 iria ser mais aberta, mas alguma coisa aconteceu”, lamenta Tess. “Espero que algo positivo resulte desta fotografia. Talvez aquilo que eu fiz se torne um símbolo de que qualquer pessoa pode fazer alguma coisa. Se uma pessoa o conseguiu, qualquer um consegue”, conclui. (Jornal Público)

domingo, 1 de maio de 2016

Morrer é mais difícil do que parece - o texto de Paulo Varela Gomes.


Paulo Varela Gomes, escritor e historiador de arte e da arquitectura, morreu neste sábado de manhã, aos 63 anos, na sua casa de Podentes, concelho de Penela, de um cancro que lhe foi diagnosticado há quatro anos.(30 de Abril 2016) 
“Tenho um cancro de grau IV. De cada vez que abro o teclado do computador na intenção de escrever, ocorre-me a frase, já mil vezes repetida, “Quando estiverem a ler estas linhas, é provável que o autor já não esteja vivo”.
São incontáveis os artigos, livros, documentários e filmes sobre pessoas que morrem de cancro. Nunca vi nenhum porque não aguento o stress mas ouvi dizer que alguns são eficientes e fazem os espectadores chorar muito. Não vou escrever aqui um artigo desse género, primeiro, porque não sou capaz, e em segundo lugar porque a história da minha doença e daquilo que tenho feito para lidar com ela tem algumas características muito peculiares que podem interessar a todo o género de pessoas que se preocupam com a vida e a morte e que pensaram com seriedade no tema deste número da Granta:
“Falhar melhor”.
Tudo começou quando acordei uma manhã com um inchaço do tamanho de uma amêndoa no lado esquerdo do pescoço. Iludido por uma espécie de incredulidade optimista, pensei que se tratava do resultado de uma infecção nos dentes ou na garganta. Desenganou-me um médico especialista dessas áreas com quem fui falar alguns dias depois: “O senhor tem uma massa na garganta. É melhor ir ver isso rapidamente.” Estava muito grave e sossegado, ele. Percebi depois que nunca lhe tinha passado pela cabeça que alguém não soubesse o que quer dizer “massa” em termos orgânicos. Esta foi a única consulta médica a que a Patrícia, minha mulher e minha “curadoura”, não me acompanhou. Estava a ajudar a Rita a podar as videiras da Vinha Comprida. Quando lhe telefonei a transmitir a seca mensagem do médico, percebeu tudo e diz-me que ficou imenso tempo a olhar lá para o longe, para o pinhal sobre a várzea, com as lágrimas a correr-lhe pela cara.
Quarenta e oito horas depois fiz a obrigatória TAC cervical. Despi-me sem preocupações, coloquei aquela bata ridícula dos hospitais que faz qualquer pessoa parecer que sofre ininterruptamente dos intestinos, deitei-me na máquina. No fundo, esperava boas notícias: não tarda, iriam informar-me de que se tratava de uma chatice menor. Estivemos depois hora e meia debaixo da luz verde escura, crepuscular, da sala de espera. Quando o radiologista veio falar connosco, acabou nesse preciso instante a vida que levávamos juntos há mais de duas décadas. O radiologista tinha a expressão macambúzia de quem apresenta os pêsames a uma família enlutada: cancro na otofaringe com tumor na cadeia linfática cervical posterior e metástases no pulmão. Não operável. Tratamentos em doses muito altas de quimio e radioterapia para, daí a dois a quatro meses, deixar de poder comer ou respirar.

Decidimos que nunca me submeteria aos tratamentos da medicina oncológica, às suas armas: as clássicas (cirurgia), as químicas (drogas) e as nucleares (radioterapia). Estas armas destroem as defesas próprias do organismo e aceleram frequentemente a sua degradação. Já vi suficientes doentes de cancro entregues nas mãos da oncologia para tremer de horror ao pensar que poderia suceder-me o mesmo.
Quando voltámos para casa, não houve uma lágrima, um gesto de desespero, um queixume. Falámos muito pouco. As estradas por onde passávamos tantas vezes pareciam agora ter uma realidade inverosímil, como se fossem pinturas de paisagem antiga. Fazia calor e a luz era branca.
Durou vários dias seguidos, este silêncio emocional. As palavras que trocámos em casa foram reduzidas ao mínimo. Uma consulta com um médico do IPO confirmou tudo o que estava no relatório do radiologista. Mais tarde, algumas instituições com nomes que tilintam como lingotes de ouro vieram dizer-nos o mesmo: não havia nada que valesse a pena fazer.
Essas opiniões não nos importaram, porém. Numa estranha frieza, só quisemos saber o que faríamos para acabar com a minha vida quando essa altura chegasse. A Patrícia jurou que não me impediria de morrer, e até me ajudaria se fosse necessário. Como disse Plotia ao poeta em A Morte de Virgílio de Hermann Broch: “A morte fecha-se a quem está só, o conhecimento da morte apenas se desvenda à união de dois seres.”
Sucede que estes acontecimentos já me parecem um pouco perdidos no nevoeiro do tempo. Passaram mais de mil dias desde a tarde abafada de 23 de Maio de 2012, quando fiz a TAC, até à nebulosa e fresca tarde de Primavera em que estou aqui a escrever isto. Dois anos e onze meses.

Não sei se nesta evolução, que não tem cessado de nos surpreender e a quem nos conhece, podemos adivinhar a lenta condensação de um milagre. Sei que há muita gente a rezar por mim e é com alegria que agradeço a todos.

Mas sei também que tenho recorrido a muitas medidas práticas para evitar a sorte ditada pelos oncologistas.
A primeira foi fazer-me acompanhar, desde algumas semanas depois da TAC, por um médico homeopático (os médicos encartados não acham graça nenhuma a que se chame médico a um homeopata, mas tenham santa paciência). Sob sua orientação comecei por mudar radicalmente de regime alimentar. Em vez de comer produtos tóxicos como faz a maior parte das pessoas, passei a alimentar-se com produtos que ajudam o meu sistema imunitário e alguns que combatem o cancro activamente. Além disso, o médico foi prescrevendo suplementos alimentares e medicamentos homeopáticos.

Devo à homeopatia a qualidade dos mais de mil dias de vida que levo de vantagem sobre os médicos oncologistas. Duas ou três semanas depois de começar a terapia já começava a duvidar de alguma vez ter tido cancro. Imaginem: um canceroso em estado grave, que pouco tempo antes estava arrasado de cansaço e pessimismo, foi à praia! Confesso que tive medo de entrar na água, eu que vivi junto ao mar e mergulhei nas suas ondas vezes incontáveis. Só no segundo dia consegui decidir-me, e foi tão grande a felicidade experimentada no corpo que percebi que a Idade do Gelo em que tínhamos vivido desde o diagnóstico tinha dado lugar a uma Primavera, incerta e frágil, é verdade, cheia de dias de nuvens, mas tempo de viver e não de morrer.
As semanas correram e fomos passear a Toledo, a Burgos, a Viseu. Participei em conferências, orientei alunos, fiz todos os dias companhia à minha mulher e aos nossos seis cães, andei com a minha neta aos saltos sobre os charcos de água da chuva. As minhas análises foram durante muito tempo boas, e o meu aspecto muito diferente da maioria dos desgraçados que frequenta os campos de morte da oncologia. Além disso, como os leitores e leitoras saberão, escrevi e publiquei três romances, uma colectânea de colunas escritas para jornais, e finalizei mais um romance e um livro de contos.

Todavia, não houve um único dia em que não tenha pensado na morte. Nem um. Ao princípio não receei mas também não compreendi essa Senhora de Negro e, portanto, ofereci-lhe de bandeja as inúmeras oportunidades que, demoníaca, busca dentro de nós para nos fazer a vida num inferno ou para nos levar. É verdade que a vontade de viver teve desde sempre mais poder sobre mim do que a desistência perante a morte ou a ida ao seu encontro – já não estaria aqui se assim não fora. Mas vida e morte estão por vezes demasiado próximas e o conflito entre elas que tem lugar no meu espírito é muito antigo e muito complexo. Sou acompanhado por psicanalistas há muito tempo. Aquele com quem trabalho desde há alguns anos, e que é uma das peças-chave do puzzle da minha não-morte, recebeu como uma pancada a notícia do meu diagnóstico e, depois de uma breve conversa entrecortada de angústia e silêncio, lembro-me de lhe ter dito com um ar quase triunfante: “Nem sempre se pode ganhar, doutor…”
Quem é que estava a falar assim pela minha boca? Quem é que experimentava em mim essa estranha alegria raivosa que emergira quando soube que tinha um cancro e que este era incurável? Que força psíquica queria que eu morresse, que as pessoas tivessem misericórdia de mim, se recordassem, me admirassem? Que parte de mim, velha e zangada, se aproveitava assim deste meu narcisismo para me arrastar para a morte?
A vida é muito menos cheia de prosápia do que a morte. É uma espécie de maré pacífica, um grande e largo rio. Na vida é sempre manhã e está um tempo esplêndido. Ao contrário da morte, o amor, que é o outro nome da vida, não me deixa morrer às primeiras: obriga-me a pensar nas pessoas, nos animais e nas plantas de quem gosto e que vou abandonar. Quando a vida manda mais em mim do que a morte, amo os que me amam, e cresce de repente no meu coração a maré da vida. Cada lágrima que me escorre por vezes pela cara ao adormecer, cada aperto de angústia na garganta que sinto quando acordo de manhã e me lembro de que tenho cancro, cada assomo de tristeza que me obriga a sentar-me por vezes à beira do caminho quando vou passear com os cães e interrompe a oração ou a conversa com o céu que me embalava o espírito, cada um destes sinais provém do falhanço momentâneo do amor dos outros em amparar-me, e sobretudo do meu em permitir-lhes que me acompanhem.
Quando, pelo contrário, decorre um dia em que consigo escrever e gosto daquilo que escrevo, em que me curvo sobre os canteiros para cortar ervas daninhas, em que admiro amorosamente a energia da Patrícia sentada ao computador ou a trazer lenha para casa, quando isto sucede, o meu tempo já não é o Tempo Comum mas antes um longo domingo de Páscoa: sinto a presença amorosa de todos os que precisam de mim e d’Aquele de quem eu preciso.

O médico homeopata nunca me prometeu um milagre, e a minha saúde começou a piorar em Janeiro de 2014, cerca de um ano e meio depois do diagnóstico oncológico. Pouca coisa, ao princípio: algumas dores no pescoço, na cabeça e na garganta, mais cansaço, problemas intestinais. Pouco a pouco, desapareceram ou tornaram-se-me impossíveis, um por um, todos os prazeres físicos de cujo timbre e tom já quase me esqueci: o sexo, beber um copo de vinho tinto antes do jantar, fazer uma viagem com mais de duas ou três horas, o gosto da comida sólida a percorrer-me o interior da garganta com os seus variados sabores e texturas, uma corrida com os miúdos ou os cães.

Houve semanas piores, outras melhores, mas o tumor do meu pescoço foi crescendo, rebentou como um pequeno vulcão de pus, e ficou pouco a pouco com um aspecto tão abominável que deixei de aguentar ser eu a mudar o penso todas as manhãs. O terrível panorama estragava-me o dia e a melancólica e repugnante tarefa de cuidar do tumor ficou adstrita à Patrícia, que sabe fazer tudo e não tem nojo de nada. Mais tarde, alternando com ela, começaram a vir regularmente a minha casa as enfermeiras dos serviços continuados de saúde.
E, de repente, ia morrendo: uma grande hemorragia despertou-me a meio de uma noite de Julho de 2014, encharcado no sangue que brotava de uma veia que o tumor do meu pescoço pôs a descoberto e enfraqueceu. Desmaiei imediatamente e a Patrícia, não conseguindo ao princípio acordar-me, pensou que tudo estava acabado.
Ganhei depois, com lentidão e a custo, uma relativa saúde. Passei dias inteiros deitado. Depois, devagarinho, melhorei. Uma nova hemorragia, em Dezembro, embora não tenha atingido a violência da anterior, obrigou-me a considerar uma transfusão de sangue que fiz num hospital que estava, como quase todos nessa época, mergulhado num tal caos que passei um dia simultaneamente divertido e ofendido a observar a desordem que grassava à minha volta.
As duas perdas de sangue fizeram pender a balança para o lado da minha morte interior: regressei à melancolia com que me sentava à sua cabeceira conversando com ela nas duríssimas semanas do Verão de 2012 que se seguiram ao veredicto do cancro. Como é que vou morrer? Exactamente como?, perguntava-lhe.
Não me referia à chamada morte natural, que nunca me tinha ocorrido desde o primeiro dia da doença. Falava da morte infligida por mim próprio.

Entretanto, porém, o cristianismo, que estava quase esquecido desde o meu baptismo, irrompeu pela minha vida através da palavra de um Padre que é outra peça-chave do puzzle, mas desta vez, e ao invés do psicanalista, do puzzle do meu encontro feliz com a morte.
O suicídio é uma ofensa frontal à vontade de Deus que quer que a morte de cada cristão seja a sua disponibilidade para de se entregar à Cruz no momento em que Cristo quiser e da maneira que Ele decidir. Mas eu e a Patrícia tínhamos jurado que eu morrerei aqui, em minha casa, e que nada me fará embarcar no carnaval de luzes da ambulância para ir morrer a um hospital. Esse juramento mantém-se.
Tomámos esta decisão mal tínhamos saído do parque de estacionamento da clínica onde fiz a TAC e ouvi o diagnóstico. No meu espírito doente, a morte celebrava jubilosamente a vitória desse momento e era-me tão impossível controlar ou combater este sentimento como invocar a luz da esperança, encolhida num canto de mim como um miúdo paralisado de terror. Enquanto regressávamos a casa, eu pensava na dificuldade e nos riscos envolvidos no modo como morreu o meu irmão, pensava no salto de uma ponte, pensava na agonia do veneno, na ignorância sobre medicamentos letais, mas sobretudo no facto de que todos estes caminhos da morte ainda concedem ao suicida o tempo suficiente para se arrepender, precisamente aquilo que eu não queria na altura, mergulhado num tumulto mental que julgava mais voluntário e corajoso do que de facto era.
Experimentei por vezes os movimentos da dramatização da minha morte, uma espécie de novela sem invenção e sem vida cujo maior óbice era o de saber se, na altura definitiva, teria a certeza absoluta de não haver outra solução. Conseguiria deitar fora como se fossem trocos sem valor os restos de vida que continuam a cintilar dentro de mim? E se me enganasse? Se não fossem meros desperdícios? Se valessem mais do que a escuridão silenciosa do túmulo onde vou apodrecer?
Aquando da segunda hemorragia, cheguei-me muito próximo de encontrar uma resposta sem alternativa a estas questões. Depois de fechar os cães e de me despedir brevemente da Patrícia, sufocada de pavor e lágrimas, ajoelhada no chão sem conseguir olhar para mim, saí de casa transportando a arma e uma cadeira de plástico onde me sentar com a coronha da arma apoiada no solo. Quase não tinha forças e tremiam-me as pernas. A minha camisa estava empapada em sangue e, tendo passado a mão pela cara e os óculos, vi as árvores, os arbustos, a casa das ferramentas e do tractor, a encosta, a vinha, através de um nevoeiro vermelho. A decisão com que, apesar da fraqueza física, andei sem hesitar algumas dezenas de passos, surpreendeu-me a mim mesmo. Pronto, ia morrer. Aspirei o cheiro intenso, quase ridente, de uma hortelã-pimenta que nascera ao pé do pinheiro grande sem que, até então, alguém tivesse dado por ela. Coloquei a cadeira junto a uns troncos cortados, sentei-me e, já com os canos da arma na boca, o dedo aflorou o gatilho. Senti o metal como uma coisa sem qualidade, cálida, mortiça, dócil. Tudo me pareceu vagamente ridículo, o meu gesto, os objectos de que me rodeara. Veio até mim mais uma vez o cheiro da hortelã. Ergui os olhos que tinha fixados na guarda do gatilho e vi um pinhal que o sol, através de uma abertura nas nuvens, isolava, dourado, do verde-escuro da encosta. Ocorreu-me de repente uma vaga de alegria inexplicável, como se fosse um sinal da presença de Deus à semelhança daqueles que os textos sagrados referem por vezes. Cheguei à mais simples conclusão do mundo: estava vivo e, enquanto assim estivesse, não estava morto. Fiquei verdadeiramente contente, a vida a fervilhar em todas as veias, mesmo as estragadas. Pousei a arma no chão e regressei a casa. Não olhei para trás, para a cadeira branca e a arma, que ficaram ali completamente indiferentes à minha sorte. Ao abrir a porta, a Patrícia, sem conseguir dominar a torrente de lágrimas que lhe corria pelo rosto, caiu-me nos braços. Ficámos muito tempo agarrados um ao outro, quase imóveis, como se fôssemos o tronco de uma grande árvore.
Não há muito mais a contar. A saúde vai piorando pé ante pé.

Deixei para trás a ideia de suicídio por uma razão muito simples que levou demasiado tempo a descobrir. Ei-la nas palavras que Mateus atribui a Cristo (Mt 10, 39), palavras que iluminaram como um relâmpago – e finalmente resolveram no meu coração – a maneira hesitante como lidei com o sofrimento nestes mais de mil dias:

“Aquele que conservar a vida para si, há-de perdê-la; aquele que perder a sua vida por causa de mim, há-de salvá-la”.
S. Domingos, Podentes, 10 de Abril de 2015
Paulo Varela Gomes,”

revista GRANTA - n.º5