Paulo
Varela Gomes, escritor e historiador de arte e da arquitectura,
morreu neste sábado de manhã, aos 63 anos, na sua casa de Podentes, concelho de
Penela, de um cancro que lhe foi diagnosticado há quatro anos.(30 de Abril
2016)
“Tenho
um cancro de grau IV. De cada vez que abro o teclado do computador na intenção
de escrever, ocorre-me a frase, já mil vezes repetida, “Quando estiverem a ler
estas linhas, é provável que o autor já não esteja vivo”.
São
incontáveis os artigos, livros, documentários e filmes sobre pessoas que morrem
de cancro. Nunca vi nenhum porque não aguento o stress mas ouvi dizer que
alguns são eficientes e fazem os espectadores chorar muito. Não vou escrever
aqui um artigo desse género, primeiro, porque não sou capaz, e em segundo lugar
porque a história da minha doença e daquilo que tenho feito para lidar com ela
tem algumas características muito peculiares que podem interessar a todo o
género de pessoas que se preocupam com a vida e a morte e que pensaram com
seriedade no tema deste número da Granta:
“Falhar
melhor”.
Tudo
começou quando acordei uma manhã com um inchaço do tamanho de uma amêndoa no
lado esquerdo do pescoço. Iludido por uma espécie de incredulidade optimista,
pensei que se tratava do resultado de uma infecção nos dentes ou na garganta.
Desenganou-me um médico especialista dessas áreas com quem fui falar alguns
dias depois: “O senhor tem uma massa na garganta. É melhor ir ver isso
rapidamente.” Estava muito grave e sossegado, ele. Percebi depois que nunca lhe
tinha passado pela cabeça que alguém não soubesse o que quer dizer “massa” em
termos orgânicos. Esta foi a única consulta médica a que a Patrícia, minha
mulher e minha “curadoura”, não me acompanhou. Estava a ajudar a Rita a podar
as videiras da Vinha Comprida. Quando lhe telefonei a transmitir a seca
mensagem do médico, percebeu tudo e diz-me que ficou imenso tempo a olhar lá
para o longe, para o pinhal sobre a várzea, com as lágrimas a correr-lhe pela
cara.
Quarenta
e oito horas depois fiz a obrigatória TAC cervical. Despi-me sem preocupações,
coloquei aquela bata ridícula dos hospitais que faz qualquer pessoa parecer que
sofre ininterruptamente dos intestinos, deitei-me na máquina. No fundo,
esperava boas notícias: não tarda, iriam informar-me de que se tratava de uma
chatice menor. Estivemos depois hora e meia debaixo da luz verde escura,
crepuscular, da sala de espera. Quando o radiologista veio falar connosco,
acabou nesse preciso instante a vida que levávamos juntos há mais de duas
décadas. O radiologista tinha a expressão macambúzia de quem apresenta os
pêsames a uma família enlutada: cancro na otofaringe com tumor na cadeia
linfática cervical posterior e metástases no pulmão. Não operável. Tratamentos
em doses muito altas de quimio e radioterapia para, daí a dois a quatro meses,
deixar de poder comer ou respirar.
Decidimos que nunca me submeteria aos tratamentos da medicina oncológica, às suas armas: as clássicas (cirurgia), as químicas (drogas) e as nucleares (radioterapia). Estas armas destroem as defesas próprias do organismo e aceleram frequentemente a sua degradação. Já vi suficientes doentes de cancro entregues nas mãos da oncologia para tremer de horror ao pensar que poderia suceder-me o mesmo.
Decidimos que nunca me submeteria aos tratamentos da medicina oncológica, às suas armas: as clássicas (cirurgia), as químicas (drogas) e as nucleares (radioterapia). Estas armas destroem as defesas próprias do organismo e aceleram frequentemente a sua degradação. Já vi suficientes doentes de cancro entregues nas mãos da oncologia para tremer de horror ao pensar que poderia suceder-me o mesmo.
Quando
voltámos para casa, não houve uma lágrima, um gesto de desespero, um queixume.
Falámos muito pouco. As estradas por onde passávamos tantas vezes pareciam
agora ter uma realidade inverosímil, como se fossem pinturas de paisagem
antiga. Fazia calor e a luz era branca.
Durou
vários dias seguidos, este silêncio emocional. As palavras que trocámos em casa
foram reduzidas ao mínimo. Uma consulta com um médico do IPO confirmou tudo o
que estava no relatório do radiologista. Mais tarde, algumas instituições com
nomes que tilintam como lingotes de ouro vieram dizer-nos o mesmo: não havia
nada que valesse a pena fazer.
Essas
opiniões não nos importaram, porém. Numa estranha frieza, só quisemos saber o
que faríamos para acabar com a minha vida quando essa altura chegasse. A Patrícia
jurou que não me impediria de morrer, e até me ajudaria se fosse necessário.
Como disse Plotia ao poeta em A Morte de Virgílio de Hermann Broch: “A morte
fecha-se a quem está só, o conhecimento da morte apenas se desvenda à união de
dois seres.”
Sucede
que estes acontecimentos já me parecem um pouco perdidos no nevoeiro do tempo.
Passaram mais de mil dias desde a tarde abafada de 23 de Maio de 2012, quando
fiz a TAC, até à nebulosa e fresca tarde de Primavera em que estou aqui a
escrever isto. Dois anos e onze meses.
Não sei se nesta evolução, que não tem cessado de nos surpreender e a quem nos conhece, podemos adivinhar a lenta condensação de um milagre. Sei que há muita gente a rezar por mim e é com alegria que agradeço a todos.
Mas sei também que tenho recorrido a muitas medidas práticas para evitar a sorte ditada pelos oncologistas.
Não sei se nesta evolução, que não tem cessado de nos surpreender e a quem nos conhece, podemos adivinhar a lenta condensação de um milagre. Sei que há muita gente a rezar por mim e é com alegria que agradeço a todos.
Mas sei também que tenho recorrido a muitas medidas práticas para evitar a sorte ditada pelos oncologistas.
A
primeira foi fazer-me acompanhar, desde algumas semanas depois da TAC, por um
médico homeopático (os médicos encartados não acham graça nenhuma a que se
chame médico a um homeopata, mas tenham santa paciência). Sob sua orientação
comecei por mudar radicalmente de regime alimentar. Em vez de comer produtos
tóxicos como faz a maior parte das pessoas, passei a alimentar-se com produtos
que ajudam o meu sistema imunitário e alguns que combatem o cancro activamente.
Além disso, o médico foi prescrevendo suplementos alimentares e medicamentos
homeopáticos.
Devo à homeopatia a qualidade dos mais de mil dias de vida que levo de vantagem sobre os médicos oncologistas. Duas ou três semanas depois de começar a terapia já começava a duvidar de alguma vez ter tido cancro. Imaginem: um canceroso em estado grave, que pouco tempo antes estava arrasado de cansaço e pessimismo, foi à praia! Confesso que tive medo de entrar na água, eu que vivi junto ao mar e mergulhei nas suas ondas vezes incontáveis. Só no segundo dia consegui decidir-me, e foi tão grande a felicidade experimentada no corpo que percebi que a Idade do Gelo em que tínhamos vivido desde o diagnóstico tinha dado lugar a uma Primavera, incerta e frágil, é verdade, cheia de dias de nuvens, mas tempo de viver e não de morrer.
As
semanas correram e fomos passear a Toledo, a Burgos, a Viseu. Participei em
conferências, orientei alunos, fiz todos os dias companhia à minha mulher e aos
nossos seis cães, andei com a minha neta aos saltos sobre os charcos de água da
chuva. As minhas análises foram durante muito tempo boas, e o meu aspecto muito
diferente da maioria dos desgraçados que frequenta os campos de morte da
oncologia. Além disso, como os leitores e leitoras saberão, escrevi e publiquei
três romances, uma colectânea de colunas escritas para jornais, e finalizei
mais um romance e um livro de contos.
Todavia, não houve um único dia em que não tenha pensado na morte. Nem um. Ao princípio não receei mas também não compreendi essa Senhora de Negro e, portanto, ofereci-lhe de bandeja as inúmeras oportunidades que, demoníaca, busca dentro de nós para nos fazer a vida num inferno ou para nos levar. É verdade que a vontade de viver teve desde sempre mais poder sobre mim do que a desistência perante a morte ou a ida ao seu encontro – já não estaria aqui se assim não fora. Mas vida e morte estão por vezes demasiado próximas e o conflito entre elas que tem lugar no meu espírito é muito antigo e muito complexo. Sou acompanhado por psicanalistas há muito tempo. Aquele com quem trabalho desde há alguns anos, e que é uma das peças-chave do puzzle da minha não-morte, recebeu como uma pancada a notícia do meu diagnóstico e, depois de uma breve conversa entrecortada de angústia e silêncio, lembro-me de lhe ter dito com um ar quase triunfante: “Nem sempre se pode ganhar, doutor…”
Todavia, não houve um único dia em que não tenha pensado na morte. Nem um. Ao princípio não receei mas também não compreendi essa Senhora de Negro e, portanto, ofereci-lhe de bandeja as inúmeras oportunidades que, demoníaca, busca dentro de nós para nos fazer a vida num inferno ou para nos levar. É verdade que a vontade de viver teve desde sempre mais poder sobre mim do que a desistência perante a morte ou a ida ao seu encontro – já não estaria aqui se assim não fora. Mas vida e morte estão por vezes demasiado próximas e o conflito entre elas que tem lugar no meu espírito é muito antigo e muito complexo. Sou acompanhado por psicanalistas há muito tempo. Aquele com quem trabalho desde há alguns anos, e que é uma das peças-chave do puzzle da minha não-morte, recebeu como uma pancada a notícia do meu diagnóstico e, depois de uma breve conversa entrecortada de angústia e silêncio, lembro-me de lhe ter dito com um ar quase triunfante: “Nem sempre se pode ganhar, doutor…”
Quem
é que estava a falar assim pela minha boca? Quem é que experimentava em mim
essa estranha alegria raivosa que emergira quando soube que tinha um cancro e
que este era incurável? Que força psíquica queria que eu morresse, que as
pessoas tivessem misericórdia de mim, se recordassem, me admirassem? Que parte
de mim, velha e zangada, se aproveitava assim deste meu narcisismo para me
arrastar para a morte?
A
vida é muito menos cheia de prosápia do que a morte. É uma espécie de maré
pacífica, um grande e largo rio. Na vida é sempre manhã e está um tempo
esplêndido. Ao contrário da morte, o amor, que é o outro nome da vida, não me
deixa morrer às primeiras: obriga-me a pensar nas pessoas, nos animais e nas
plantas de quem gosto e que vou abandonar. Quando a vida manda mais em mim do
que a morte, amo os que me amam, e cresce de repente no meu coração a maré da
vida. Cada lágrima que me escorre por vezes pela cara ao adormecer, cada aperto
de angústia na garganta que sinto quando acordo de manhã e me lembro de que
tenho cancro, cada assomo de tristeza que me obriga a sentar-me por vezes à
beira do caminho quando vou passear com os cães e interrompe a oração ou a
conversa com o céu que me embalava o espírito, cada um destes sinais provém do
falhanço momentâneo do amor dos outros em amparar-me, e sobretudo do meu em
permitir-lhes que me acompanhem.
Quando,
pelo contrário, decorre um dia em que consigo escrever e gosto daquilo que
escrevo, em que me curvo sobre os canteiros para cortar ervas daninhas, em que
admiro amorosamente a energia da Patrícia sentada ao computador ou a trazer
lenha para casa, quando isto sucede, o meu tempo já não é o Tempo Comum mas
antes um longo domingo de Páscoa: sinto a presença amorosa de todos os que
precisam de mim e d’Aquele de quem eu preciso.
O médico homeopata nunca me prometeu um milagre, e a minha saúde começou a piorar em Janeiro de 2014, cerca de um ano e meio depois do diagnóstico oncológico. Pouca coisa, ao princípio: algumas dores no pescoço, na cabeça e na garganta, mais cansaço, problemas intestinais. Pouco a pouco, desapareceram ou tornaram-se-me impossíveis, um por um, todos os prazeres físicos de cujo timbre e tom já quase me esqueci: o sexo, beber um copo de vinho tinto antes do jantar, fazer uma viagem com mais de duas ou três horas, o gosto da comida sólida a percorrer-me o interior da garganta com os seus variados sabores e texturas, uma corrida com os miúdos ou os cães.
Houve semanas piores, outras melhores, mas o tumor do meu pescoço foi crescendo, rebentou como um pequeno vulcão de pus, e ficou pouco a pouco com um aspecto tão abominável que deixei de aguentar ser eu a mudar o penso todas as manhãs. O terrível panorama estragava-me o dia e a melancólica e repugnante tarefa de cuidar do tumor ficou adstrita à Patrícia, que sabe fazer tudo e não tem nojo de nada. Mais tarde, alternando com ela, começaram a vir regularmente a minha casa as enfermeiras dos serviços continuados de saúde.
O médico homeopata nunca me prometeu um milagre, e a minha saúde começou a piorar em Janeiro de 2014, cerca de um ano e meio depois do diagnóstico oncológico. Pouca coisa, ao princípio: algumas dores no pescoço, na cabeça e na garganta, mais cansaço, problemas intestinais. Pouco a pouco, desapareceram ou tornaram-se-me impossíveis, um por um, todos os prazeres físicos de cujo timbre e tom já quase me esqueci: o sexo, beber um copo de vinho tinto antes do jantar, fazer uma viagem com mais de duas ou três horas, o gosto da comida sólida a percorrer-me o interior da garganta com os seus variados sabores e texturas, uma corrida com os miúdos ou os cães.
Houve semanas piores, outras melhores, mas o tumor do meu pescoço foi crescendo, rebentou como um pequeno vulcão de pus, e ficou pouco a pouco com um aspecto tão abominável que deixei de aguentar ser eu a mudar o penso todas as manhãs. O terrível panorama estragava-me o dia e a melancólica e repugnante tarefa de cuidar do tumor ficou adstrita à Patrícia, que sabe fazer tudo e não tem nojo de nada. Mais tarde, alternando com ela, começaram a vir regularmente a minha casa as enfermeiras dos serviços continuados de saúde.
E,
de repente, ia morrendo: uma grande hemorragia despertou-me a meio de uma noite
de Julho de 2014, encharcado no sangue que brotava de uma veia que o tumor do
meu pescoço pôs a descoberto e enfraqueceu. Desmaiei imediatamente e a
Patrícia, não conseguindo ao princípio acordar-me, pensou que tudo estava
acabado.
Ganhei
depois, com lentidão e a custo, uma relativa saúde. Passei dias inteiros
deitado. Depois, devagarinho, melhorei. Uma nova hemorragia, em Dezembro,
embora não tenha atingido a violência da anterior, obrigou-me a considerar uma
transfusão de sangue que fiz num hospital que estava, como quase todos nessa
época, mergulhado num tal caos que passei um dia simultaneamente divertido e
ofendido a observar a desordem que grassava à minha volta.
As
duas perdas de sangue fizeram pender a balança para o lado da minha morte
interior: regressei à melancolia com que me sentava à sua cabeceira conversando
com ela nas duríssimas semanas do Verão de 2012 que se seguiram ao veredicto do
cancro. Como é que vou morrer? Exactamente como?, perguntava-lhe.
Não
me referia à chamada morte natural, que nunca me tinha ocorrido desde o
primeiro dia da doença. Falava da morte infligida por mim próprio.
Entretanto, porém, o cristianismo, que estava quase esquecido desde o meu baptismo, irrompeu pela minha vida através da palavra de um Padre que é outra peça-chave do puzzle, mas desta vez, e ao invés do psicanalista, do puzzle do meu encontro feliz com a morte.
Entretanto, porém, o cristianismo, que estava quase esquecido desde o meu baptismo, irrompeu pela minha vida através da palavra de um Padre que é outra peça-chave do puzzle, mas desta vez, e ao invés do psicanalista, do puzzle do meu encontro feliz com a morte.
O
suicídio é uma ofensa frontal à vontade de Deus que quer que a morte de cada
cristão seja a sua disponibilidade para de se entregar à Cruz no momento em que
Cristo quiser e da maneira que Ele decidir. Mas eu e a Patrícia tínhamos jurado
que eu morrerei aqui, em minha casa, e que nada me fará embarcar no carnaval de
luzes da ambulância para ir morrer a um hospital. Esse juramento mantém-se.
Tomámos
esta decisão mal tínhamos saído do parque de estacionamento da clínica onde fiz
a TAC e ouvi o diagnóstico. No meu espírito doente, a morte celebrava
jubilosamente a vitória desse momento e era-me tão impossível controlar ou
combater este sentimento como invocar a luz da esperança, encolhida num canto
de mim como um miúdo paralisado de terror. Enquanto regressávamos a casa, eu
pensava na dificuldade e nos riscos envolvidos no modo como morreu o meu irmão,
pensava no salto de uma ponte, pensava na agonia do veneno, na ignorância sobre
medicamentos letais, mas sobretudo no facto de que todos estes caminhos da
morte ainda concedem ao suicida o tempo suficiente para se arrepender,
precisamente aquilo que eu não queria na altura, mergulhado num tumulto mental
que julgava mais voluntário e corajoso do que de facto era.
Experimentei
por vezes os movimentos da dramatização da minha morte, uma espécie de novela
sem invenção e sem vida cujo maior óbice era o de saber se, na altura
definitiva, teria a certeza absoluta de não haver outra solução. Conseguiria
deitar fora como se fossem trocos sem valor os restos de vida que continuam a
cintilar dentro de mim? E se me enganasse? Se não fossem meros desperdícios? Se
valessem mais do que a escuridão silenciosa do túmulo onde vou apodrecer?
Aquando
da segunda hemorragia, cheguei-me muito próximo de encontrar uma resposta sem
alternativa a estas questões. Depois de fechar os cães e de me despedir
brevemente da Patrícia, sufocada de pavor e lágrimas, ajoelhada no chão sem
conseguir olhar para mim, saí de casa transportando a arma e uma cadeira de
plástico onde me sentar com a coronha da arma apoiada no solo. Quase não tinha
forças e tremiam-me as pernas. A minha camisa estava empapada em sangue e,
tendo passado a mão pela cara e os óculos, vi as árvores, os arbustos, a casa
das ferramentas e do tractor, a encosta, a vinha, através de um nevoeiro
vermelho. A decisão com que, apesar da fraqueza física, andei sem hesitar
algumas dezenas de passos, surpreendeu-me a mim mesmo. Pronto, ia morrer.
Aspirei o cheiro intenso, quase ridente, de uma hortelã-pimenta que nascera ao
pé do pinheiro grande sem que, até então, alguém tivesse dado por ela. Coloquei
a cadeira junto a uns troncos cortados, sentei-me e, já com os canos da arma na
boca, o dedo aflorou o gatilho. Senti o metal como uma coisa sem qualidade,
cálida, mortiça, dócil. Tudo me pareceu vagamente ridículo, o meu gesto, os
objectos de que me rodeara. Veio até mim mais uma vez o cheiro da hortelã.
Ergui os olhos que tinha fixados na guarda do gatilho e vi um pinhal que o sol,
através de uma abertura nas nuvens, isolava, dourado, do verde-escuro da
encosta. Ocorreu-me de repente uma vaga de alegria inexplicável, como se fosse
um sinal da presença de Deus à semelhança daqueles que os textos sagrados
referem por vezes. Cheguei à mais simples conclusão do mundo: estava vivo e,
enquanto assim estivesse, não estava morto. Fiquei verdadeiramente contente, a
vida a fervilhar em todas as veias, mesmo as estragadas. Pousei a arma no chão
e regressei a casa. Não olhei para trás, para a cadeira branca e a arma, que
ficaram ali completamente indiferentes à minha sorte. Ao abrir a porta, a
Patrícia, sem conseguir dominar a torrente de lágrimas que lhe corria pelo
rosto, caiu-me nos braços. Ficámos muito tempo agarrados um ao outro, quase
imóveis, como se fôssemos o tronco de uma grande árvore.
Não
há muito mais a contar. A saúde vai piorando pé ante pé.
Deixei para trás a ideia de suicídio por uma razão muito simples que levou demasiado tempo a descobrir. Ei-la nas palavras que Mateus atribui a Cristo (Mt 10, 39), palavras que iluminaram como um relâmpago – e finalmente resolveram no meu coração – a maneira hesitante como lidei com o sofrimento nestes mais de mil dias:
Deixei para trás a ideia de suicídio por uma razão muito simples que levou demasiado tempo a descobrir. Ei-la nas palavras que Mateus atribui a Cristo (Mt 10, 39), palavras que iluminaram como um relâmpago – e finalmente resolveram no meu coração – a maneira hesitante como lidei com o sofrimento nestes mais de mil dias:
“Aquele que conservar a vida para si, há-de perdê-la; aquele que perder a sua vida por causa de mim, há-de salvá-la”.
S.
Domingos, Podentes, 10 de Abril de 2015
Paulo
Varela Gomes,”
revista
GRANTA - n.º5
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