Domingo,
22 de Maio
Regresso
a Lisboa e precipito-me para as minhas rotinas de reencontro: atravessar a
Baixa e o Chiado, percorrer o Bairro Alto e o Príncipe Real, subir da Escola
Politécnica às Amoreiras. Em São Pedro de Alcântara há uma banda cabo-verdiana
a tocar coladeiras, com um daqueles guitarristas que eu costumava ouvir na Casa
da Morna, e apetece-me logo parar, beber um pouco de mais e pôr-me a dançar.
Não
me incomoda assim tanto a nova afluência de turistas, por agora. Talvez porque
nestes primeiros dias também eu sou turista. De qualquer modo, ainda antes de
partir voltarei a ser lisboeta de corpo inteiro, provavelmente incomodado com
eles - e, mesmo depois de voltar à ilha, levarei algum tempo até ser capaz de
celebrá-los de novo, num misto de bonomia e gratidão pelo que trazem de
possibilidades e de economia.
Portugal
precisa de economia. As famílias portuguesas precisam de economia.
Aborrece-me,
antes, esta obsessão da cidade com o trend (é assim que se diz?). Com
as modas e tendências. Com os conceitos. À noite, num daqueles restaurantes de
circunstância a que se recorre antes de um filme de multiplex, peço uma
tacinha de ceviche, a especialidade peruana que ainda não tivera a
bem-aventurança de provar, e parece que sinto os cochichos à minha volta:
"Credo, ceviche. Este tipo acabou de chegar de 2015, ou quê?"
Tudo
muda a toda a hora. Lojas que estavam na berra há seis meses são agora
decrépitas. Hamburguerias revolucionárias parecem subitamente velhas comparadas
com as suas sucedâneas. Ideias morrem, hábitos substituem-se, marcas cavalgam
sobre marcas até que outras marcas venham cavalgar sobre estas ainda, numa
orgia que me parece menos de dinheiro do que de ânsia e, afinal, de
provincianismo.
Parece-me
provinciana, de repente, esta cidade - apesar das coladeiras de São Pedro de
Alcântara. E quando me detenho naquela nova casa de banho das Amoreiras, em que
homens e senhoras se circunscrevem a cubículos diferentes, mas depois lavam as
mãos juntos, através de uma espécie de passa-pratos, um de cada lado, esse provincianismo
parece-me ainda mais evidente - essa obsessão de surpreender, de denotar
diferença, de esmagar tudo o que há tão pouco parecia estimulante.
Ainda
hei-de roubar um Rolex através daquele passa-pratos. Mesmo de senhora, mais
pequenino. Nunca tive um Rolex, e Lisboa faz-me querer ter um Rolex.
Terça-feira,
24 de Maio
Gostava
de ser capaz de escrever das emoções que se concentraram esta noite entre nós -
nas palavras do Fernando, na presença dos amigos (os novos, os velhos e os
muito velhos), nas proporções que de repente isto tomou. Mas como encontrar
agora essas palavras, se tudo é ainda tão maravilhoso e imenso?
Foi
no Chiado, ainda há pouco, e quando no fim vou jantar com os derradeiros
resistentes - o Sebastião e a Márcia, a Ema, a Catarina - sei que pareço
atónito, quase apático. Pareço-o porque o estou, provavelmente.
Rememoro
as palavras, sinto ainda os abraços - cada um deles, na sua generosidade
infinita -, mostram-me fotos. Recapitulo os rostos que vi e os que não vi. É um
momento de celebração, como se tudo fizesse enfim sentido, e porém assolam-me
agora os velhos fantasmas: a tentação da vaidade, o impulso da ligeireza.
Penso
nos velhos da Terra Chã. Penso nos meus, os pais e os avós. Penso em José
Guilherme. Naquela casa. No jardim de que a dotámos e em como os cães se
esforçam por destruí-lo, na sua alegria pueril e absoluta.
Penso
que tenho de dizer ao Chico que não precisa de sachar os tomateiros, porque o
Rodrigo vai passar lá. Penso nos trabalhos em curso na encosta, sob a acácia
descendente, e em como talvez não seja preciso esperar as sementes do Galão,
porque ainda há um resto de gramíneas na garagem, no balde preto.
Depois
voltam as palavras do Fernando. Os rostos e os abraços. Os nomes. As horas
infinitas e o calor particular de cada abraço.
Foi
no Chiado, não há muitas horas ainda, e agora estou aqui, em frente a este
computador, tentando dizer a mim mesmo que tudo está no seu lugar certo, que
também eu encontrei um lugar. Mas não sou capaz. Não ainda, pelo menos. Também
sobre isto é preciso que a memória opere o seu milagre.
Apago
a luz e prometo-me seguir caminho. O resto di-lo-ão os outros, que a eles o
cabe. Tudo quanto posso desejar é que, ao menos uma vez, as pessoas que tivemos
à nossa volta signifiquem alguma coisa sobre aquilo em que nos tornámos também.
Mas
nem disso posso ter a certeza.
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