À
volta das imagens registadas pelos exércitos aliados durante a libertação dos
campos de concentração nazis, e da sua montagem de acordo com as indicações de
Hitchcock, o DocLisboa propõe um ciclo de filmes-testemunho sobre o poder e a
capacidade do cinema representar uma realidade difícil de compreender.
Quando,
em 1945, o produtor britânico Sidney Bernstein convidou Alfred Hitchcock para
supervisionar a montagem de imagens recolhidas no terreno durante os últimos
combates da Segunda Guerra Mundial, fê-lo por uma razão muito simples: queria
deixar algo para memória futura. Para que a História recordasse o que os
soldados – americanos, russos, britânicos – haviam encontrado ao longo do seu
percurso de libertação da Europa: o horror apocalíptico dos campos de
concentração nazis.
Essas
imagens, sabemo-lo hoje, deram a volta ao mundo; mas não exactamente do modo
que Sidney Bernstein, então adstrito ao serviço de propaganda do exército
britânico, o tinha pensado. Filmadas por militares treinados para operar câmaras,
seriam usadas em julgamentos como prova dos crimes de guerra cometidos, ou
incluídas parcialmente em jornais noticiosos. Mas o documentário de fundo que
Bernstein quis fazer, um trabalho de “serviço público” sobre o segredo mais bem
guardado do regime de Hitler, nunca foi acabado – até 2014, quando o Museu
Imperial da Guerra britânico estreou, no festival de Berlim, a montagem “final”
desse filme sob o título desapaixonado German Concentration Camps Factual
Survey.
Essas
imagens “que faltavam”, 70 anos depois de terem sido rodadas, servem de ponto
de partida para O Nosso Século XX: O Cinema Face à História, um ciclo
paralelo do DocLisboa que olha para a dimensão de testemunho e registo que o
cinema pode e deve assumir, para os caminhos tortuosos que estas imagens
levaram até chegarem ao écrã. Ou, nas palavras de Cíntia Gil, uma das
directoras do festival, para uma série de questões históricas sobre a
representação dos acontecimentos mais radicais e importantes do século XX. A
atenção que o documentário sempre prestou aos grandes temas mundiais torna este
ciclo significativo para um evento que nunca se quis amorfo nem acéfalo mas em
estreita ligação com o mundo que o rodeia. “No Doc sempre fizemos um esforço
para não fechar a programação em questões temáticas,” explica Cíntia, “mas
também não queremos fazer de um festival tão grande uma série de ilhas sem
comunicação.”
Essa
ligação está presente no modo como o programa enquadra as duas sessões de German
Concentration Camps Factual Survey (quarta, 22, às 22h00, na Culturgest, e
quinta 23, às 19h45, no cinema Ideal), apresentadas por David Walsh, curador do
Museu Imperial da Guerra (por indicações expressas do museu, o filme não pode
ser exibido publicamente sem a presença de um dos responsáveis pela sua reconstituição).
Antes, passará (hoje, à meia-noite, no Ideal) Night Will Fall de
André Singer, making ofconvencional mas eficaz que conta a história destas
imagens, do filme abandonado e das suas várias vidas. Depois, ver-se-á Falkenau:
Vision de l'impossible (sexta 24, às 19h30, na Culturgest, e sábado 25, às
18h45, no São Jorge), registo por Emil Weiss do testemunho na primeira pessoa
do realizador Samuel Fuller, um dos soldados americanos presentes na libertação
do campo de Falkenau. E mostram-se ainda Parole de Kamikaze,testemunho de
um piloto suicida japonês registado por Masa Sawada e Bertrand Bonello (hoje às
21h30 no City Campo Pequeno), ou Veillées d'armes, o trabalho de Marcel
Ophuls sobre o jornalismo em tempo de guerra (sábado 25 às 14h00 no São Jorge;
o programa completo da secção pode ser consultado no site oficial http://doclisboa.org ).
Buraco
negro
Embora
não seja o único tema destes filmes, a Segunda Guerra Mundial torna-se nesta
edição do Doc numa espécie de “buraco negro” no centro da história europeia do
século XX, gerador de testemunhos, histórias e ficções que tecem entre si uma
teia cada vez mais complexa de fios narrativos, que não se limita ao
documentário puro e duro e fica igualmente patente noutras secções do certame.
“A Segunda Guerra Mundial mudou radicalmente a história do cinema, e a relação
entre a prática do cinema e o real que o rodeia,” diz Cíntia Gil. “Pode-se
dizer que a arqueologia do cinema contemporâneo passa inevitavelmente pela
guerra. Mas há uma dimensão de coincidência, porque por exemplo a retrospectiva
que dedicamos ao neo-realismo estava pensada muito antes deste ciclo.”
O
neo-realismo italiano é um produto directo do conflito e do imediato pós-guerra
(visível no filme colectivo Giorni di Gloria ou em Europa '51 de
Rossellini). Mas esse diálogo entre filmes prolonga-se para obras muito mais
recentes que parecem traçar as consequências a longo prazo do conflito. Como os
filmes que olham para as vontades de independência dos satélites soviéticos (as
manifestações na praça Maïdan de Kiev de A Praça de Sergei Loznitsa,
filme de abertura, ou o estatuto de pária em limbo da Abecázia independente
filmada por Éric Baudelaire em Letters to Max, no concurso internacional),
ou a constante memória da guerra nos Alpes italianos filmados por Simone
Rapisarda Casanova em La Creazione di Significato(prémio de melhor
realizador emergente em Locarno, aqui na competição principal). (Jornal Público
- Out 2014)
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