Na
sua primeira visita oficial a Portugal, para receber um prémio que reconhece o
seu contributo para o património cultural europeu, o Nobel da Literatura deixou
um recado: “A herança cultural europeia não se deve limitar à preservação dos
seus monumentos, mas também à preservação dos seus valores fundamentais”
O
escritor turco Orhan Pamuk defendeu esta sexta-feira em Lisboa que “a Europa
precisa de ter uma discussão séria sobre os seus valores fundamentais”. O Nobel
da Literatura de 2006, autor de uma obra literária sobre a procura de uma
identidade turca, dividida entre o Ocidente e o Oriente, entre modernidade
europeia e tradição muçulmana, recebeu esta noite o Prémio Europeu Helena Vaz
da Silva para a Divulgação do Património Cultural na Fundação Calouste
Gulbenkian, com um discurso em que prestou tributo à tradição cultural
europeia, mas que terminou com uma nota crítica.
“A
herança cultural europeia não se deve limitar à preservação dos seus
monumentos, mas também à preservação dos seus valores fundamentais”, disse o
escritor, na sua primeira visita oficial a Portugal. “E temos de ter uma
discussão séria sobre esses valores fundamentais.”
Pareceu
claro que era um recado para a Europa – não por acaso, o presidente da Comissão
Europeia, Durão Barroso, estava presente na primeira fila – embora Pamuk não
tenha especificado o que queria dizer com isso, talvez para não correr o risco
de soar pouco diplomático. Mas o que Pamuk quis dizer terá talvez a ver com o
que respondeu numa entrevista em Dezembro do ano passado, quando um jornalista
colombiano lhe perguntou se se sentia europeu. “Não sei. Não penso nesses
termos. Em primeiro lugar, sinto-me turco. E um turco tanto se sente europeu
como não europeu. Acredito numa Europa que não se baseia no cristianismo, mas
no Renascimento, na modernidade, na ‘liberdade, igualdade, fraternidade’. Essa
é a minha Europa. Acredito nessas coisas e quero fazer parte delas. Mas se a
Europa é a civilização cristã, lamento: nós, turcos, não queremos entrar.”
No
debate sobre a hipotética entrada da Turquia na União Europeia, Pamuk – um turco
cosmopolita e laico que se autodefine como um “muçulmano, mas apenas no sentido
cultural” – emergiu como um intérprete do diálogo entre civilizações. Daniel
Cohn-Bendit disse que foi Pamuk quem o ajudou a “perceber a importância de a
Turquia aderir à União Europeia”. Até mesmo o ex-Presidente americano George
Bush se referiu à obra do escritor como “uma ponte entre culturas”, notando que
ela mostra como “pessoas noutros continentes e civilizações” são “exactamente
como nós”.
Em defesa das pessoas normais
Atribuído
pela primeira vez no ano passado ao escritor italiano Claudio Magris, cuja obra
é notória pela sua deambulação cultural (como a de Pamuk), o Prémio Europeu
Helena Vaz da Silva, no valor de dez mil euros, é uma iniciativa da organização
europeia de defesa do património Europa Nostra em parceria com o Centro
Nacional de Cultura e o Clube Português de Imprensa, com o objectivo de
distinguir um cidadão europeu que, ao longo da sua carreira, tenha contribuído
para a divulgação, defesa e promoção do património cultural e dos ideais
europeus.
O
presidente do Centro Nacional de Cultura e membro do júri, Guilherme de
Oliveira Martins, notou que a atribuição do prémio a Pamuk teve em conta “o
cidadão apaixonado pela defesa do património cultural, mais do que o grande
romancista”, embora o seu discurso tenha sido dominado por referências e
citações constantes do último romance do escritor, O Museu da Inocência(ed.
Presença), publicado em 2008.
Pamuk
confessou-se “lisonjeado e honrado” pela atribuição do prémio, que lhe foi
entregue pelo secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier.
Falando
em inglês, o escritor lembrou como concebeu um romance e um museu ao mesmo
tempo, referindo-se a O Museu da Inocência, ficção sobre um homem que
colecciona todos os objectos tocados pela mulher que amou e que perdeu e ao
edifício com o mesmo nome que abriu em Istambul, a cidade onde nasceu e onde
vive, com objectos que foi juntando para o processo de escrita do livro e que é
hoje, também, um museu sobre a vida quotidiana da classe média turca na segunda
metade do século XX.
“Os
verdadeiros romances centram-se em pessoas normais, no seu dia-a-dia”, disse.
Com a entrada na modernidade, a literatura deixou de se interessar pelos reis e
poderosos para se ocupar da história de pessoas simples, como se fossem reis –
Joyce fê-lo em Ulisses, notou. Pamuk defendeu que os museus deviam fazer o
mesmo. “Deixem de prestar atenção à nação e aos reis e dediquem-se aos pequenos
detalhes das nossas vidas quotidianas. É por isso que defendo que precisamos de
pequenos museus”, disse.
Nesta
segunda edição do Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, foi também atribuído um
prémio especial de carreira ao historiador de arte José-Augusto França por ter
“fomentado a tomada de consciência e o sentimento de orgulho relativamente à
arte portuguesa, relacionando-a com a cultura europeia e mundial”. O júri
distinguiu ainda o jornalista holandês Pieter Steinz com uma menção especial
pela criação de uma enciclopédia de ícones
culturais europeus. (Jornal Público)
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