Era
novo e começou por vender pentes, mas não ganhava muito. Por isso, Mário
Ventura decidiu-se pelas fotografias pornográficas. A venda de jornais eram a
sua cobertura para negociar imagens de uma revista sueca, para não levantar
suspeitas junto das autoridades. “Conseguia vender muitas – enquanto um
pedreiro ganhava 60 escudos, eu fazia 2000 por noite”, conta. Aos 69 anos, este
homem já fez de tudo um pouco no Bairro Alto, em Lisboa. Trabalhou numa
mercearia na Rua da Barroca, que já não existe, e na Adega Mesquita, a primeira
casa de fados do bairro.
Desde
então, a zona evoluiu e mudou muito. Ficou irreconhecível. As camaratas, onde
Mário viveu durante algum tempo, desapareceram, assim como os espaços agrícolas
“Havia uma vacaria onde é o Bar Nélson”, recorda. E a população e quem ali
passa também mudou. O Bairro Alto celebra neste domingo os 500 anos da sua
fundação. Por ali passaram jesuítas, nobres, marinheiros, prostitutas,
jornalistas e artistas.
Mas
foi sobretudo a partir do século XIX que as ruas começaram a encher-se de
jornais. Com eles vieram as tascas, os artistas e o bairro acolheu as
actividades que lhe dão fama até aos dias de hoje.
Se
os dias do bairro são pouco agitados, o mesmo não acontece com as noites. A
dinâmica da noite nasceu com as rotinas jornalísticas de então. Ao contrário de
outros serviços ou empresas, os jornais fechavam tarde e os seus profissionais
saíam e não regressavam às suas casas – ficavam pelo bairro, a conviver.
Mas
não foi só esta dinâmica que tornou o Bairro Alto um espaço da cidade especial.
As características morfológicas fizeram com que ali se polarizassem as
actividades ligadas à cultura. “Se não tivesse ruas estreitas e se não tivesse
a ausência de praças no interior do bairro, a apropriação do espaço era
diferente”, considera Pedro Costa, professor do Instituto Superior de Ciências
do Trabalho e da Empresa (ISCTE), de Lisboa, e que desenvolveu uma investigação
em torno do Bairro Alto.
De
facto, no centro do bairro não existe uma única praça, o que lhe confere,
segundo o arquitecto Hélder Carita, uma certa privacidade. “No interior é
privado e as relações mais urbanas e contactos exteriores fazem-se na sua
periferia, características que estão muito relacionadas com a instituição aqui
dos jornais”, explica.
“De
bairro central da produção passa para bairro central do consumo”, adianta
Pedro Costa. “Havia artes performativas e visuais que eram criadas aqui e que,
depois, foram substituídas por outras, como as lojas de roupa cara, galerias e
antiquários”, diz.
Para
o investigador, esta diferença explica-se pela “gentrificação“, um conceito da
sociologia que se refere ao processo de transformação dos espaços quando estes
começam a tornar-se moda e a ganhar valor imobiliário.
“Há
um aumento daquilo que é a marca do bairro. As pessoas começam a frequentar o
espaço e a procurá-lo para viver. E aquilo que são as actividades mais
culturais tem tendência a sair”, explica o investigador que aponta como motivo
as elevadas rendas que estes negócios não conseguem suportar e o facto de serem
actividades alternativas, para as quais o “estar na moda” pode ser negativo.
Mas
outros permanecem no Bairro Alto. Já depois do 25 de Abril, em 1981, Fernando
Fernandes e José Miranda criavam o restaurante Pap’Açorda. Em 1982, Manuel Reis
fundava o Frágil. E de seguida muitos outros negócios começaram a surgir.
Bares, restaurantes, lojas de roupa e decoração. O bairro fervilhava, tanto de
dia como de noite.
O
professor de História e Teoria da Arquitectura na Universidade de Coimbra Jorge
Figueira vê este movimento como o “festejo da democracia” de um Portugal que
não estava habituado a sair à rua, sendo o Bairro Alto "a sua forma mais
exponenciada”. Então espaço de “vanguarda” para novas expressões artísticas,
essa componente “foi-se diluindo” com o passar do tempo.
Segundo
Jorge Figueira, o que se passou nas décadas seguintes explica-se com a
“democratização da vida nocturna”. Volvidos mais de 30 anos, pouca coisa se
mantém igual. De dia está praticamente vazio e à noite o espaço ganha vida.
Há
18 anos que a loja de tatuagens Bad Bone Tattoos permanece na Rua do Norte.
Natacha Fontinha é a proprietária e defende que a globalização chegou ao bairro
e onde antes havia diversas “tribos urbanas” existem agora pessoas que são
“todas iguais e vêm ao bairro para beber”.
O
charme do bairro histórico
No
outro dia, o Rúben morreu. “Mais novo do que eu, morava ali no terceiro andar.
Do meu tempo conheço aí uns quatro ou cinco”, desabafa Mário Ventura. O
envelhecimento da população não é um dado novo, mas quem por lá passa de dia
pode agora ver mais gente jovem e não apenas turistas.
Ana
Monteiro, 27 anos, fez o mestrado em Psicologia em Coimbra e veio para Lisboa à
procura de trabalho. Há um ano que vive numa das ruas mais movimentadas do
Bairro Alto e admite que uma das razões da escolha foi o preço da renda. Apesar
do barulho da noite, sobretudo ao fim-de-semana, não pondera mudar-se enquanto
não encontrar um apartamento com melhores condições.
Um
estudo urbanístico de 2013 do investigador do Centro de Estudos Geográficos da
Universidade de Lisboa Luís Mendes detecta um número crescente de pessoas em
idade activa a fixar-se no bairro. Apesar de não se tratar ainda de um processo
de “gentrificação” – que implicaria o estabelecimento de pessoas com outro poder
de compra –, o investigador aponta outras características dos novos moradores:
são estudantes, imigrantes qualificados e jovens trabalhadores. Não são
“indivíduos propriamente endinheirados”. Verifica-se, assim, um processo
“gentrificação marginal”.
Este
perfil de morador “sente-se atraído por um espaço histórico e genuíno, com tudo
o que isso empresta à sua distinção social”, continua Luís Mendes. No entanto,
“a sua rede social fundamental não assenta no bairro nem nas pessoas que lá
vivem”, explica.
O
comércio tradicional, já a contas com a crise, acaba por se ressentir. Na
Drogaria Santos & Celestina, na Rua da Rosa, já chegaram a trabalhar seis
pessoas. Restam José Escadeiro e a mulher que, admitem, se lhes fizessem uma
boa proposta, iam-se embora. “O que ganhamos mal chega para os dois”, diz o
proprietário.
Se
a tendência para a “gentrificação” mais agressiva é já uma realidade, Pedro
Costa explica que há certos aspectos que impedem que a transformação do bairro
seja mais acelerada. “Existem restrições em termos de planeamento. O Plano de
Pormenor não deixa construir com certos materiais, não deixa instalar
elevadores, tem restrições ao trânsito. As pessoas não podem parar o seu carro
à porta e as casas são muito pequenas”, enumera.
Um
dos autores do estudo que compara o Bairro Alto a outros bairros culturais no
mundo, Cidades, Comunidades e Territórios, de Junho de 2013, Pedro Costa
dá o caso da Vila Madalena, em São Paulo, como exemplo. “Era um bairro de
habitações familiares que começou a ser ocupado por artistas quando a
Universidade de São Paulo foi para ali. Mas depois virou moda, os preços das
casas subiram e as vivendas, que tinham ateliers, começaram a ser substituídas
por prédios de nove andares”, conta o investigador.
Para
o professor do ISCTE, isso está longe de acontecer no Bairro Alto. E concorda
com Hélder Carita, quando este diz que “há vantagens em não ter havido grandes
processos de reabilitação dos edifícios do Bairro Alto”. “Quando isso acontece,
as pessoas ficam com casas muito boas, vendem-nas e vão para a periferia”,
defende o arquitecto.
Também
têm aparecido outros pólos de criação cultural e de diversão nocturna na cidade
– como o Intendente, a Mouraria, a Bica e o Cais do Sodré –, o que, no futuro,
pode levar a uma dispersão maior por Lisboa. “Isso pode acontecer, mas há um
conjunto de condições relacionadas com a centralidade, a acessibilidade, a
história e a imagem que não se fabricam de um momento para o outro. Não se
consegue plantar um bairro destes na Mouraria, porque não existem as mesmas
redes de pessoas, hábitos e relações”, defende Pedro Costa.
Alexandre
Oliveira, um dos directores do Teatro do Bairro, é da mesma opinião. “Há uma
tradição enorme. Haverá outras gerações a seguir à minha que reinventarão o
bairro de outra forma. Acho é que devemos dar um contributo para ser mais
voltado para a cultura e menos para o lúdico”, refere. Também Hélder Carita
partilha esta ideia: “O bairro vai ser sempre reinventado. Tem uma tradição
transgressiva. Não é um bairro com características ideais. Se fosse, seria um
bairro morto. Tem de viver de tensões.” (Jornal Público – 15.12.2013)
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